Márcio
Alessandro de Oliveira
O relógio marcava três horas. Levantara-se em plena madrugada mesmo. Agora, olhava-se no espelho do banheiro. Notou que a barba estava por fazer. (Talvez fosse o caso de desfazer:
seria mais arrazoado o uso do prefixo, embora soubesse que nenhum idioma é
rigorosamente lógico; e pensando nisso decidiu mencionar o fato na aula que,
segundo a sombra da lembrança do calendário, ministraria dali a algumas horas
para amenizar a eterna doença da ignorância viciosa.)
Descartando os rituais de higiene,
pôs-se diante do notebook, o qual ficava
na cozinha do imóvel de quatro cômodos que alugara após a mudança para
Teresópolis; menos de um minuto depois, começou a alterar vários escritos, tais
como relatórios sobre alunos e planos de aula.
(Quando fazia isso, louvava em pensamento a pessoa que criara a tecla backspace.) Para a sua sorte, já se fora com o vento dos
dias o período de avaliações, o que lhe tirava a sobrecarga.
Decidiu fazer café.
Para que tanto esmero? Ganharia um salário baixo vendendo a força de
trabalho como peão do ensino.
Menosprezado por causa da pouca idade e da profissão, desprestigiado
pelo meio acadêmico, que detestava que conciliasse o trabalho docente com o
sonhado mestrado, criticado pelos pais de alguns (ou talvez muitos) alunos por
ser exigente e querer o mínimo de decoro, via, apesar dos pesares, a sala de
aula como o cenário da própria alma.
Pena era saber que sua alma valia vinte reais pela hora-aula ou menos.
Borbulhava a água.
— Você sabia (ouvira alguém dizer
durante um almoço, num restaurante) que ganharia pouco.
— Eu também sabia (retrucara) que
correria o risco de ser assaltado ao sair de casa hoje mais cedo, mas nem por
isso deixei de sair. A ser verdadeiro o
raciocínio por detrás do seu discurso, todos os professores, até mesmo os
lentes, ou deveriam largar a profissão, ou deveriam trabalhar e aceitar, com o
mais alto grau de conformismo, sem reclamação, sem o justo direito ao protesto,
que têm de trabalhar que nem escravos, como acontecia na antiguidade romana. Aliás, isso se aplicaria a outras categorias.
Encheu a xícara, serviu-se de açúcar,
veneno que não lhe tiraria o amargo, misturou-o e voltou ao computador. Este, após a abertura de alguns menus, passou
a emitir música. Agora Ulisses escutava
a voz de Anette Olzon, ex-vocalista do Nightwish. No terceiro gole de café, chegou ao fim do
primeiro refrão:
I cannot cry ‘cause the sholder cries more/ I cannot
die, I, a whore for the cold word. (Não consigo
chorar porque os ombros choram mais/ Eu não consigo morrer, eu, uma vadia para
o mundo frio.)
Valia menos que uma vadia, que uma
meretriz. Ela prostituía o corpo:
vendia-o em troca de um valor digno, um valor que lhe garantia conforto. E fazia isso empregando uma ciência empírica
cuja eficiência já era consagrada desde o início dos tempos. E ele?
Ah, ele mostrava coisas inúteis aos alunos, como, por exemplo, a
diferença entre uma oração subordinada substantiva e uma predicativa. A meretriz prostituía o corpo, ele, a alma —
e por uma miséria.
Seis e meia. Tomou banho, vestiu-se, comeu apenas uma
torrada e, antes de sair, certificou-se de que o casaco escondia os furinhos da
camisa feitos por traças e que o jeans não denunciava ser tão velho; em
seguida, verificou que não faltava nenhum livro na mochila, dentro da qual
havia ração canina e um recipiente; por isso saiu sem retirar nenhum das
estantes, que podiam desabar por excesso de peso.
Do portão ao ponto de ônibus de três
assentos, no qual não havia charcos, apesar da chuva da madrugada, notara o
lixo acumulado em ruas íngremes do Jardim Meudon enquanto espirrava. Ao lado dos três assentos estava deitado um
cão branco, ao lado do qual Ulisses depositou a ração no recipiente. Onde morava, não era permitido ter animais.
Repentinamente, lembrou-se de que
naquele dia não tinha de dar aulas: era dia de conselho de classe, ao qual não
compareceria. Não suportava os
solecismos nem os pareceres danosos de alguns colegas. Decidiu, contudo, ir ao centro mesmo que não
tivesse de vender aulas.
Aproximaram-se dois rapazes de uniforme
da rede estadual. Eram esguios,
desengonçados e com a visibilidade prejudicada pelas franjas; não ofereciam
perigo; então não se retirou. Dizia um
deles:
— Sabe aquela canção em que Renato Russo
diz que gostaria de ser uma certa peça de roupa feminina?
— Sei (respondeu o menos alto dos dois).
— Estava eu cantando em voz alta, quando
a vizinha apareceu perto da janela para tirar roupas do varal. Pareceu que fiz de caso pensado...
— Não foi ela que votou em Jorge Mário e
Arlei?
— Sei lá... Acho que sim.
— Então não importa se ficou constrangida.
Surgiram as rodas anunciadas pelo rugido
feroz do motor do ônibus. Fez sinal, e
foi só isso que possibilitou o embarque dos dois. Desistiu de entrar assim que viu o excesso de
troncos espremidos. O ônibus mal havia
retomado a velocidade, quando Ulisses começara, muito decidido, a andar. Isso era útil no exercício de ruminar ideias e
diminuía o frio que acompanhava a neblina, tão densa quanto o verde-exército do
mar de árvores nos morros e barrancos pincelados pela natureza.
Em poucos minutos chegou à esquina da
Rua Paquequer, onde não era visto o sol em virtude das cortinas cinzentas de
nuvens, ladras da luz de Apolo. Muito
justo: ele roubava o brilho das estrelas e causava câncer.
Oito horas. Roncava, em furiosos protestos, o estômago,
cujo vazio tinha de ser preenchido com urgência. Percorreu a calçada da Delfim Moreira sem se
deter para ler manchetes nas bancas.
Na Calçada da Fama, enveredou-se por uma
calçada transversal, onde um mendigo ocuparia espaço, e entrou num café. Pediu um sanduíche, um sonho, um suco e
sentou-se.
Aqui e ali só se falava da crise da
cidade.
— Minha vizinha e os cinco filhos
ganharam cestas básicas. Se não ganhassem...
— Se não pagarem o salário dos servidores,
o comércio vai ser prejudicado também, porque não vão ter dinheiro para gastar,
e nesse caso até os trabalhadores das lojas e das empresas vão correr riscos.
— Tem sido difícil pagar a conta de luz.
— A coleta irregular de lixo vai atrapalhar
o turismo.
Entrementes, a conversa mais audível
começou quando à mesa bem ao lado sentaram-se dois homens de meia idade: um,
esbelto, sisudo, terno e gravata vermelha, alguns fios brancos; o outro, muito
corpulento, calvo, quase sem pescoço, calça e camisa sociais com suspensório
branco, mesma cor dos bigodes, sobre os quais, com a mãozorra típica de quem
tem a circunferência de uma rolha de poço, passava um lenço azul para enxugar o
suor, orvalho em pele, apesar do tempo frio.
— Com a queda de Dilma, a situação vai começar a melhorar (disse o mais
espaçoso dos homens, espremido na cadeira).
— Se pode começar a melhorar (respondeu
o outro), pode também começar a piorar.
Uma coisa pressupõe o seu oposto.
Além disso, e até um direitista há de concordar comigo, porque entre os
de direita ainda há quem tenha o mínimo de consciência, a proposta de impeachment é uma tentativa de golpe.
— Golpe?
Faça-me o favor! A Constituição
prevê o impeachment: é democrático!
— Engraçado, Fernando (disse o outro,
franzindo o cenho). Você não se lembra
de que a ascensão de Chaves e sua permanência no poder eram democráticas antes
de afirmar que era um ditador. Vê os
dois fatos como frutos de falhas, de fraquezas da democracia. Isso, é claro, porque se trata de um finado
líder socialista. Quando, porém, você se
refere ao impeachment, não se dá
conta de que os mais poderosos veículos de comunicação e a direita,
subordinados que estão aos grupos econômicos, querem tirar a presidenta do
poder. A um governo de esquerda você
atribui um golpe, oriundo da própria democracia; a uma manobra da direita você
atribui um caráter justo por ser constitucional e “democrática”.
— Acha que o que o PT fez está certo,
Lúcio? Continua defendendo aquele
partido comunista de ladrões?
— Não está certo: quem comete crime tem
de ser punido, embora na política, um lodo no qual dificilmente pode alguém trabalhar
sem ser atingido por um ou vários respingos de lama, dificilmente seja preso um
corrupto. E não estou defendendo o PT: o
que defendo é a decisão da maioria dos eleitores, decisão que é uma das
principais marcas da democracia, que você supostamente tanto defende. Outra coisa: o PT não é comunista. Ou será que você teve alguma de suas várias
casas expropriadas pelo governo?
Chegou à mesa o pedido dos dois: pães de
queijo e duas xícaras de café. Lúcio
bebeu dois golinhos antes de ouvir a resposta de Fernando:
— É por causa dessa sua forma de ver o
mundo que meu pai não gostava de você.
— Não precisava mencionar meu falecido
sogro, que nunca se importou muito com a única filha. Se bem que é das propriedades deixadas por
ele que quero falar. Minha esposa e eu
achamos que você não merece administrar um patrimônio tão extenso, até porque
seu pai deixou um testamento que dá margem a que ela conteste a situação atual,
já que o falecido não fez predileções nem por você nem por ela, os únicos
herdeiros.
— Olhe, Lúcio, vim aqui para conversar
como um amigo, mas se você acha...
— Não sou amigo de cabos eleitorais,
muito menos de um que se beneficia com a mudança de prefeito e não me paga o
dinheiro suado e limpo que deve, ainda que eu não me surpreenda com isso. Afinal, de um parasita que dependeu do pai a
vida toda não se pode esperar atitude oposta às suas.
Fernando, que suava como nunca, engoliu
em seco. Levantou-se Lúcio. E acrescentou:
— Foi inútil vir aqui. Só estamos neste lugar porque minha esposa
pediu que eu conversasse com você como advogado dela. Mas nossa conversa será litigiosa, e não
informal. Adeus.
Lúcio se dirigiu ao caixa, pagou a conta e saiu do recinto. Segundos depois, com mais dificuldade e
lentidão, saiu Fernando, impassível.
Tanto um como o outro viraram o rosto para o outro lado quando viram o
mendigo ali perto, a quem Ulisses, depois de deixar dinheiro no caixa, deu os
pães de queijo abandonados.
Estava na Delfim Moreira, quando, por
uma fração de segundo, olhou para o Dedo de Deus, o dedo médio! Fora um engano, sem dúvida. Olhou com mais atenção: era o indicador. As forças da natureza não seriam tão
audaciosas nem tão ultrajantes.
Na persuasão de que receberia o
pagamento atrasado pelo trabalho do mês anterior, preencheu o tempo da tarde livre
indo ao município vizinho. Nada
obteve. Isso lhe despertou a lembrança
do ano anterior.
Em outra cidade, praticamente levara
calote. E, ao cobrar o que lhe era de
direito, fora tratado que nem criança.
Quanto mais teria de envelhecer para ser respeitado? Quanto mais teria de estudar para não ser
humilhado? E quanto tempo seria
necessário para convencer os detentores dos meios de produção, os empresários,
os burgueses, de que o salário era sacrossanto, e que sua ausência podia fazer
qualquer um verter pelos olhos quilos de sal?
Ao invés de se darem conta disso tudo e agirem de acordo, os caloteiros
em questão disseram, indiretamente no momento de falar, diretamente no momento
de agir:
— Rapazinho, vai demorar o pagamento,
pelo qual os vários, revezados e anônimos responsáveis não se
responsabilizam. Então, fique quietinho
como o bom desafortunado que é. Não
queremos ouvir seus queixumes. Quem
pensa que é? Só porque trabalhou e não
recebeu no tempo prometido acha que pode nos pressionar? Faça o favor de não desperdiçar o tempo que
poderíamos preencher tomando banho de mar como pessoas que têm mais dinheiro
que você, um peão insignificante.
***
Vinte horas. Deitado na cama, imaginava-se arrancando as
tripas dos caloteiros. Em devaneios mais
rápidos que o sono, o qual lhe pregaria os olhos, degolava os antagonistas em
movimentos marciais que nem Akira Toriyama nem Ed Boon imaginariam.
***
O relógio marcava três horas. Levantara-se em plena madrugada mesmo. A barba era apoucada, como o dinheiro. Passando os dedos por ela em frente ao
espelho do banheiro, sentiu as espinhas e, repentinamente, se deu conta do que
era uma verdade espinhosa: Ulisses no nome — Telêmaco na cara. E esta verdade foi prelúdio de outras,
imediatamente posteriores, como a chuva e o frio que caem depois do trovão:
Voltara a Teresópolis, mas parecia que estava na Grécia. O passado era angustiante, o futuro,
promissor, mas o presente — presente de grego.
(Teresópolis, 22/12/2015.)