Nós, a esquerda, estamos ficando cada
vez mais burros
Márcio
Alessandro de Oliveira
“O que estraga
o Brasil, menino, não é a cachaça nem a saúva: o que estraga o Brasil, menino,
é a burrice.”
(Lima Barreto)
INTRODUÇÃO
Certa vez, ensinou um
professor que os formalistas russos, responsáveis por um dos mais importantes
paradigmas científicos dos Estudos Literários, diminuíram
o valor das influências históricas na Literatura: embora parte dos formalistas estivesse
envolvida com o movimento bolchevista, é possível dizer que eles considerariam
o stalinismo, por exemplo, um mero pretexto para a alegoria de A revolução dos bichos (romance que é de
1945 e, portanto, posterior à Revolução Russa), como se o momento histórico
fosse um fator secundário na produção de um romance ou de um poema. Foram
sábios: a historiografia estava nas mãos da direita e da visão imperialista de
mundo, visão segundo a qual era necessário subjugar territórios em nome do
“progresso” e da civilização, então era arrazoado que se concentrassem na forma de escrever, isto é: nos
procedimentos estéticos e nas técnicas narrativas (cf. EAGLETON, 2006, p. 5).
Hoje, passado praticamente um século, tudo indica que houve um retrocesso,
porque as esquerdas, divididas e cegas como estão, têm seguido o caminho oposto
na medida em que demonstram o contrário da sensatez dos formalistas. Com
efeito: elas adotam os conceitos vulgares de ideologia, como Mikhail Bakhtin,
Paulo Freire e um divulgador contemporâneo da Linguística. Isso fica evidente no
modo como definem a ideologia e a ciência, nos postulados
“científico”-pedagógicos, nos feminismos, no ativismo gay e no ativismo trans.
1. O modo leviano como definem o termo
ideologia e encaram a ciência
É
nula a diferença entre o que as juventudes esquerdistas entendem por ideologia e o que por ela entende um
pasteleiro (com todo o respeito aos pasteleiros). Parece que, desde que o
Ocidente passou a fazer traduções das versões francesas dos livros do Sr.
Bakhtin, virou modinha um “conceito” de ideologia segundo o qual ela é o mesmo
que não-neutralidade. A neutralidade, para Paulo Freire, é impossível, de modo
que toda prática educativa seria de cunho ideológico. Nesse viés estúpido, a
única diferença seria o efeito social da escola: ou a educação é inclusiva, ou é
excludente. Os livros de Freire já completaram pelo menos uns cinquenta anos.
Ora, se de dez em dez anos (intervalo que o Plano Nacional de Educação e a Base
Nacional Comum Curricular aguardam antes da sua próxima renovação ou
atualização) é necessário rever referências bibliográficas em nome de uma
atualização fundamentada num exame que busque a garantia de paradigmas
científicos e epistemologias confiáveis, com pressupostos teóricos seguros, por
que as esquerdas, que adotam o “conceito” mais vulgar e leviano de ideologia — que
é vista como sendo uma parcialidade inevitável de um conjunto de causas e potenciais
intervenções sociopolíticas —, continuam se prendendo a fantasmas de múmias
velhas decrépitas? Por que elas — em cujas fileiras encontramos acadêmicos brasileiros
de Letras que não sabem russo e odeiam incondicionalmente qualquer trabalho de
tradução, encarada como uma traição, embora, é claro, não deixem de adotar os
postulados de Bakhtin — continuam se prendendo à ideia de que, no campo da
ciência e em todos os outros, é inevitável ter ideologia? Eu mesmo li numa
entrevista a afirmação estarrecedora de um linguista contemporâneo: nela, fica
claro que o cientista tem de ter ideologia. Tal convicção, porém, não se
sustenta, pois não contém substância nenhuma. Quando querem impor esta ou
aquela afirmação, esta ou aquela crença, dão carteirada: dizem que é a ciência
que diz isso ou aquilo, como se fosse inquestionável. Com isso dão um tiro no
próprio pé. Ora, a ciência também já disse que a mulher não poderia exercer
atividades intelectuais, e seu “esteio” era o útero, ligado à histeria; também
já foi racista. Se não fosse possível separar a ciência da ideologia, não
haveria conhecimentos dignos de confiança. A função do pesquisador
intelectualmente honesto é justamente a de desmascarar a ideologia — daí a
certeza de que é rematada tolice dizer que o cientista deve ter ideologia, como
se fosse uma obrigação ética.
Afinal, que é
ideologia? Que responda a maravilhosa filósofa Marilena Chauí, a filósofa dos
filósofos:
não é apenas a
representação imaginária do real para servir ao exercício da dominação em uma
sociedade fundada na luta de classes, como não é apenas a inversão imaginária
do processo histórico na qual as ideias ocupariam o lugar dos agentes
históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é
a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o
aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que não
devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por ser o
modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento
ou dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático
de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir. A
sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito
precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas,
anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma
lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para,
através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com
uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante
(CHAUÍ, 1997, p. 3).
Diante do exposto, fica
claro que é uma falácia o conceito bakhtiniano de ideologia, que, pelo visto, é
idêntico ao conceito de São Paulo Freire (o “sagrado” e cultuado “educador” que
nem formado em Pedagogia ou em outro curso de licenciatura era). Infelizmente,
até Umberto Eco cai nessa balela. “Com frequência”, diz ele (2007, p. 22-3),
“para ser verdadeiramente
‘científico’, não convém querer ser mais ‘científico’ do que o exigido pela
situação. Nas ciências humanas, incorre-se frequentemente numa falácia [...] que consiste em considerar o
próprio discurso imune à ideologia”. Umberto Eco está se referindo ao discurso
científico. Pobre coitado: não se pode esperar nada diferente disso, nem oposto
a isso, de um indivíduo que considerava toda tradução uma prótese, uma cópia
qualquer. (Resta saber se esse escrúpulo antitradução impediu que ele recebesse
a sua parte do dinheiro obtido com a venda das várias traduções do romance Il nome della rosa.) Falácia é o que ele
diz, porque a imunidade do discurso à ideologia não só é possível, como também factível.
Ser parcial não é ser ideológico — e o erro dos intelectuais homens até agora
citados é justamente o de misturar alhos com bugalhos: confundem ideologia com
não-neutralidade.
O cientista precisa de
isenção de ânimo para analisar com objetividade e clareza. Se essas tais não
existissem, como talvez nos leve a crer Umberto Eco (que, aliás, pode ter
namorado uma tradutora infiel ao namorado, motivo por que teria raiva do ofício
liberal de tradução literária), então não haveria conhecimento exato, nem
tampouco conhecimento digno de confiança nas ciências naturais — nem nas
humanas. Por que e para que se fazem pesquisas? Por que e para que se
desenvolvem métodos? Se é tudo uma questão de tomar partido, de ter lado, de não
ser neutro num debate (ou, para usar o pedantismo que é tão do gosto dos
acadêmicos metidos a bestas, na dialética), não seria necessário desenvolver
pesquisas, nem levantar hipóteses, nem fundamentar teses: bastaria dizer o que
dizem os apedeutas: “É minha opinião”. Ironicamente, jovenzinhos universitários
adoram dizer: “Opinião não é ciência”. Ora, as opiniões são subjetivas e
impressionistas: não exigem investigação nem apuração dos dados; já as teses,
estas são de caráter objetivo por serem amparadas por argumentos, frutos de
dados apurados e reflexões. O cientista pode tomar partido, mas precisa ter
isenção de ânimo para, conforme for analisando os dados que surgirem, mudar de
lado, se necessário for. E sua função é imune à ideologia, sim, pois que a ele
cabe a difícil tarefa de derrubar mitos, desconstruir afirmações e desnudar as
ideologias (que são as manifestações mais imediatas da ideologia, que esta é
silenciosa e, portanto, não pode ser conhecida em sua totalidade). É quase
impossível fazer isso, porquanto o pensamento ideológico ganhe convincentes
fumos ou aparências de progressismo misturados com ares de ciência, razão pela
qual é muito mais perigoso do que supomos. Quando uma mentira é declaradamente
uma mentira, torna-se fácil (ou muito mais fácil) agir contra ela; quando,
porém, creem que é verdade, contra ela muito dificilmente alguém se revolta. “A
classe dominante, para dominar”, diz Jean-Claude Bernadert (2006, p. 20), “não
pode nunca apresentar a sua ideologia como a SUA ideologia, mas ela deve lutar
para que essa ideologia seja sempre entendida como a verdade.”
Quando ativistas gays,
por exemplo, defendem o núcleo familiar baseado no casal de união homoafetiva,
não estão fazendo ideologia de gênero, pelo menos não obrigatoriamente: estão
mostrando que o modelo heteronormativo de núcleo familiar e os demais modelos
podem coexistir. Deslizar ou deslocar o sentido de casamento gay para o de destruição
da família tradicional, como se esta fosse a única verdadeiramente válida,
é que é fazer ideologia, uma vez que ideologia é o pensamento burguês, que
sempre se baseou na heterossexualidade. Por outro lado, com distanciamento,
desprendimento e objetividade, o cientista da linguagem verbal pode apontar o
fato de que a adoção de crianças por parte de casais gays tenta imitar o modelo
burguês, viés imitativo em que os ativistas estariam, sim, fazendo ideologia.
(Além disso, restam algumas dúvidas: Como iriam se sentir as crianças criadas
por casais gays? Comparar-se-iam aos amigos e colegas cujos pais são
heterossexuais, certo? Isso destruiria a autoestima de crianças adotadas? Quem
não tem fumo não faz trato com cachimbo, e o homem tem três inimigos: a pátria,
a família e a igreja, então só tem interesse em adoção quem tem renda
equivalente à renda de uma família de classe média, cujo ethos pequeno-burguês sempre se manifesta. Tais casais querem
crianças iguais às das propagandas? Querem formar uma família de comercial de
margarina? O que aconteceria com o filho adotado em caso de separação?) Defender
um mundo igual ao do romance Admirável
Mundo Novo, em que há ateísmo e não existem nem famílias, nem pais, nem mães,
seria mil vezes mais contraideológico.
A ciência, aliás, é
anti-ideológica por excelência: a ideologia é a mentira, é um conhecimento
falso, enganoso, ao passo que a ciência é verdadeira e confiável. Obviamente,
para não fazer ideologia, como faziam os “cientistas” racistas e misóginos do
século XIX, o cientista, além de não ter ideologia, deve questionar os paradigmas,
a epistemologia e os pressupostos da ciência que produz ou divulga. E é aqui
que vou concordar com Umberto Eco (2007, p. 4): “Se algo não pode ser usado
para mentir, então não pode ser usado para dizer nada”. Vale lembrar que
“produzir ‘convencimento’ é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo
moderno, substituindo os padres e [outros]
religiosos do passado” (SOUZA, 2018, p. 12). Com efeito: “não existe ordem
social moderna sem uma legitimação pretensamente científica desta mesma ordem”
(idem, ibidem, p. 18). A falsa ciência, que não passa de ideologia, legitima as
injustiças sociais. Cabe à verdadeira ciência desmascarar as mentiras difundidas
por formadores de opinião desonestos (que são o que Gramsci chamava de
intelectuais orgânicos). A desonestidade é mascarada pelo prestígio conferido
pelo diploma ou pelo carisma (como o que hoje tem o youtuber); assim, o especialista, ao ser entrevistado pelo
jornalista, que também tem prestígio, usa a função conativa ou apelativa da
linguagem, e não apenas a função informativa, de que fala Roman Jakobson.
Entretanto, a falsa
ciência jamais fará isto: jamais se denunciará: A ideologia é silenciosa, como
ensina Marilena Chauí: silencia o fato de que é ideologia, porque, se disser o
que realmente é, não poderá exercer a dominação nem legitimar as injustiças
sociais. A mais gritante delas é a gigantesca concentração de renda do 1% mais
rico da população brasileira.
Em tese, caberia aos
analistas do discurso (os de linha francesa, muitos dos quais adoram mencionar
Michel Foucault, em nome do qual enchem a boca, embora, aparentemente, nunca
mencionem Michel Pêcheux (1938-1983)) revelar como e por que certos textos de
caráter “científico” apenas são ideológicos. Estão muito ocupados em avaliar o
discurso de jornalistas e o modo como reproduzem o senso comum, então não
percebem os próprios atravessamentos ideológicos. Na verdade, isso vale para
todos os estudiosos das Ciências Humanas: ocupam-se em avaliar o discurso alheio
e em registrar a avaliação em outro discurso (que, inevitavelmente, por
definição, é um metadiscurso), porém não avaliam o próprio vocabulário:
examinam o modo como os jornais chamam os bandidos de classe média de jovens;
examinam o modo como encaram o feminicídio, e no entanto não deve ser difícil
testemunhar tais analistas usarem, no dia a dia, a expressão mercado de trabalho no lugar do sintagma
mundo do trabalho; falarem em salário, mas não em diminuição dos efeitos danosos da mais-valia; em jovens carentes, mas não em jovens espoliados. Examinam temas
polêmicos e lugares-comuns que, aparentemente, desafiam o senso comum,
conquanto já tenham sido cooptados pelo capital. Um exemplo é a causa gay. O Uber
destinado exclusivamente a mulheres, por outro lado, a menos que eu esteja me
enganando, continua intacto nas análises de discurso: apaga o fato de que as
mulheres motoristas são subproletarizadas, sem FGTS e sem 13º: destaca-se tão
só o “empoderamento” feminino, tão do gosto das grandes companhias privadas. Em
linguagem chula: tais analistas, a julgar pelo que vejo nas divulgações de
artiguelhos publicados em periódicos que confirmam o que, no dizer de Marilena
Chauí, é a universidade operacional, não olham para o próprio rabo.
Se interpretamos
compulsoriamente e por filiação a esta ou àquela corrente de pensamento ou
formação discursiva (que pode ser contra a ideologia ou a favor dela, sendo que
toda ideologia é uma formação discursiva, embora nem toda formação discursiva
seja ideológica), então cabe ao analista, que trabalha fazendo recortes nos
textos, dizer como e por que o emissor e o receptor, inconscientemente,
escolhem determinadas palavras e atribuem determinados sentidos ao texto no
lugar de outros. (Obviamente, tudo isso só pode ser feito dentro da História,
já que, a menos que haja a transcendência, nada disso pode ser feito fora dela,
o que equivale a dizer que os sentidos produzidos por quem interpreta símbolos têm
que ver com a imanência, isto é: com o aqui e com o agora.) O não-dito
condiciona o que é dito: Nunca
é neutra a escolha de palavras, e só parte do dizer é dizível. E não poderia
ser diferente nem o contrário do que é, pois que todo discurso, por definição,
é a prática simbólica que permite a produção e a circulação de sentidos, ou
seja: é o uso de símbolos (que podem ser palavras) que, na interação verbal,
produzem efeito ou efeitos (sentido ou sentidos). Ocorre, porém, que não ser
neutro não é o mesmo que ser ideológico: a não-neutralidade do cientista
consiste justamente em fazer oposição à ideologia ou, pelo menos, em submeter a
ideologia a uma avaliação. Além disso, a memória humana, diferentemente (ou até
ao contrário) da memória registrada em arquivos e outros bancos de dados, é
falha, de modo que, no imediatismo da interação verbal, permite inferências,
criatividade e até mal-entendidos.
Pergunto: uma vez que a
ideologia é silenciosa e consegue manipular discretamente as formações
discursivas que deveriam criticá-la, tais analistas do discurso têm conseguido
identificar, de modo bem-sucedido, as evidências de que discursos de esquerda
têm sido colonizados pelas ideias de direita? Têm percebido, por exemplo, o
fato de que esquerdistas criticam o Estado e os Aparelhos Ideológicos de Estado
sem que critiquem primeiro as ideias liberais que fazem de tais aparelhos os
Aparelhos Ideológicos do Mercado?
Que pensam tais esquerdistas da ausência de Estado? (que não deveria nunca,
JAMAIS, JAMAIS MESMO, ser confundida com Estado mínimo). Estão filiados ao
fantasma de Bakunin? Que sabem eles da Colônia Cecília? Que jornais e revistas
favoreçam o senso comum com sua escolha de palavras, coisa é que não admira nem
consterna: estão sendo coerentes (se bem que, no plano intencional, e não no
plano do inconsciente, pode ser que muitos redatores se julguem progressistas,
ainda que seus atos falhos, para usar um termo de Freud, revelem o contrário).
Agora: que nós não façamos o dever de casa é de estarrecer.
O papel da direita é
exatamente o de ser o que é, de modo que o que tinha de ser analisado para
derrubar a pretensa neutralidade da mídia já foi estudado e divulgado;
portanto, tudo isso já é lugar-comum. O que realmente interessa é o modo como a
esquerda é colonizada pela direita; da mesma forma, cabe à esquerda a tarefa de
ser suficientemente inteligente para, sem vaidade, fazer uma frequente autoavaliação.
Infelizmente, os “analistas” e outros estudiosos da Linguística e das outras
Humanidades estão preocupados em falar e escrever “todos e todas” num ativismo
linguístico inútil e irritante, como se por meio de desnecessárias desinências
de gênero pudessem fazer intervenção milagrosa e simples num problema complexo.
(Muitos “feministos” ou esquerdomachos adoram a suposta feminização da
linguagem.) Quantas vezes por dia tais “cientistas” da linguagem verbal,
apegados à lógica capitalista de produção de artiguelhos acadêmicos (como se a
universidade pública fosse uma organização privada, com linha de montagem e
tudo), no próprio cotidiano, usam as expressões Social Democracia, economia
em vez de mercado, Estado do Bem-Estar Social e neoliberalismo
econômico? Quantas vezes por dia verificam se os jornais e os
periódicos acadêmicos inserem tais termos em suas páginas? A julgar pelo
ativismo que os “cientistas” da linguagem fazem, eu diria que desconhecem tais
conceitos: empregam neologismos estrambóticos quando querem enunciar as causas
das minorias LBTQI+ e falam de Bolsonaro com a regularidade do sol nas redes
sociais, porém não falam de neoliberalismo econômico; dessa forma, fazem um
culto personalista às avessas na medida em que se concentram na imagem de um
indivíduo, quando deveriam, como intelectuais sérios que deveriam ser, apontar
a ideologia neoliberal, da qual Bolsonaro é apenas um representante, um capitão
do mato, um símbolo. Estão fazendo os minutos de ódio, do romance 1984, de George Orwell. Preocupam-se em
divulgar o bolsonarismo; nunca falam das causas econômicas da esquerda.
Não é de surpreender: o
solzinho não quer saber dessas tais: quer apenas capital político do nicho que
lhe cabe nas disputas eleitoreiras. Não se pode esperar outra coisa de um
partido que apoiou a tentativa de golpe de 2013; da mesma forma, não surpreende
que estejamos sendo esmagados pela direita. Não é por acaso que o solzinho é a
“esquerda” que a direita adora. A propósito: se entendesse que a esmagadora
maioria dos eleitores desvia o sentido de direitos
dos gays para o sentido de aberrações,
veria que, num país em que corre esgoto a céu aberto em consequência de várias
deficiências infraestruturais, não podemos nos dar ao luxo de perder votos em
nome de causas que dizem respeito à vida privada de certos grupos. Todavia, a
ordem vem de cima, então, os sectaristas, que, por definição, participam de uma
seita, acatam cegamente as ordens e reagem
sistematicamente a quem a eles se opõe, por isso são reacionários.
E vivam os “multiletramentos”
e os gêneros textuais! Viva
a “educação” linguística “crítica” e “plural”, ditada por pesquisadores que pregam
mudanças curriculares, ainda que nunca tenham lecionado no chão da sala de aula
de ensino básico, motivo por que não têm a empiria, indispensável ao trabalho
do cientista. (Só psicólogos podem formar outros psicólogos; só médicos podem
formar outros médicos — mas gente que nunca lecionou na educação básica pode
formar professores para os ensinos fundamental e médio. Essa mesma gente faz
questão de manter as disciplinas pedagógicas nas licenciaturas. Supõe-se que
tais disciplinas separam as licenciaturas dos bacharelados. Isso, é claro, em
nome da “ciência”. Que se despreze o fato de que a classe média manda os filhos
para os bacharelados, como a Medicina e o Direito, enquanto pobres vão para as
licenciaturas. Essa é a divisão social do trabalho.) O importante mesmo é
manter o Lattes em dia, ainda que
Machado de Assis e Fernando Pessoa não o tivessem. Os rios correm, bem ou mal,
sem o Lattes, e eu prefiro mil vezes
ter a liberdade e a estabilidade proporcionada pelo salário do ensino básico a
ter de me sujeitar a bolsas e ao ofício de pesquisador, que não proporcionam
férias remuneradas nem 13º salário.
É triste saber que tais
“analistas” se perdem na própria torre de marfim. Parece que não admitem que a
ciência da linguagem verbal deveria ser de caráter utilitarista no sentido de
que deveria ser útil à evolução e à felicidade dos leigos, cujos impostos
financiam-na sem que haja um retorno à altura. Em que a Análise do Discurso de
linha francesa tem contribuído para o entendimento mútuo, para a paz e para a
felicidade das pessoas? Vejamos um exemplo:
A classe média conservadora
é seduzida pelos totalitarismos (com exceção do stalinismo, que ela confunde
com o socialismo e com uma fase avançada deste último, uma fase que nunca
chegou a se concretizar: o comunismo). É seduzida pelos despotismos. Quando lê
ou escuta a expressão direitos humanos,
desliza o sentido de tal expressão para o sentido de defesa de bandidos. Que fazemos nós, a esquerda? Ora, crucificamos
sem dó os integrantes da classe média pequeno-burguesa, cujos referenciais são
diferentes dos nossos ou até opostos aos nossos pontos de referência. Em
verdade, eles carecem de referenciais decentes, uma vez que só sabem o que os
veículos de comunicação de massa lhes dizem. Nesse caso, a classe média
conservadora é vítima da violência de tais veículos — vítima, e não o algoz. Ora,
se os analistas de discursos — muitos dos quais compõem o estrato da classe
média brasileira, razão pela qual temem os assaltantes, os farrapos humanos e o
latrocínio tanto quanto os coxinhas a quem criticam — entendem mesmo do
riscado, então devem saber que o efeito que a expressão direitos humanos causa na classe média conservadora é, por
definição, um produto ou efeito da interação verbal. Tais analistas também têm
de saber que essa interpretação da classe média de direita está condicionada à
sua filiação ideológica, que é inconsciente, pois que somos atravessados pelas
ideologias sem que nos demos conta. Os mesmos analistas devem saber que a
formação do sujeito é histórica, e é exatamente por isso que não estamos mais
na forma-sujeito religiosa, predominante na Europa medieval: estamos, como
sabem (ou como deveriam saber) os analistas, na forma-sujeito jurídica,
fundamentada no conceito moderno de cidadania e na diferença entre os direitos
e os deveres do cidadão. Este, por sua vez, não é como o servo ou o vassalo,
tampouco é igual ao escravizado grego da Antiguidade. É muito fácil concluir
que a classe média conservadora e o zé-povinho conservador, ao contrário de
suas respectivas contrapartes (as frações progressistas que correspondem a cada
uma das duas camadas sociais), não odeiam os direitos humanos: o que odeiam é a
impunidade, e o que temem é a morte.
Como não existe em si a
Análise do Discurso (doravante A. D.), mas sim analistas, que são seres de
carne e osso, e não anjos e santos, cabe a cada um deles a tarefa de estabelecer
e divulgar a distinção que acabei de fazer. Ela pode fazer que as classes
sociais revejam sua visão social de mundo e, por conseguinte, passem a lutar
por um estado de coisas em que seja inexistente o conjunto de circunstâncias
que geram o medo e o mal-estar sociais. Isso, contudo, exige isenção de ânimo,
desprendimento e distanciamento, atributos que não podemos inserir no Lattes. Para o nosso azar, insistem em
dizer que tudo é ideológico, quando, na verdade, a função dos cientistas da
linguagem verbal é um dever ético que também cabe aos literatos: o de
desmascarar ou desnudar as ideologias. Se tudo fosse mesmo ideológico, não
haveria meios de resistir à dominação da ideologia, cujo silêncio gera
inquietações; afinal, ela não explica de modo satisfatório os despautérios
gerados pelas injustiças sociais. Não estou querendo dizer que a A. D., como
integrante que é da superestrutura (formada pelas artes, pelas leis, pelas
ciências e pela cultura), possa, sozinha, modificar a infraestrutura (formada
pelo saneamento, pela distribuição de água e energia elétrica, pelas moradias,
pelos transportes e pelos bens e serviços); também sei que ela, sozinha, não
fará o milagre de tornar esclarecidos os segmentos sociais mencionados;
todavia, algum poder de intervenção na infraestrutura ela há de ter. Se
modificada, a infraestrutura poderá deixar de oferecer a espoliação que gera os
temores das classes médias conservadoras de tal forma, que poderão atribuir
outro sentido à expressão direitos
humanos. Afinal, como diz Eni Orlandi, o sentido sempre pode ser outro,
embora não possa ser qualquer um. Não é possível, obviamente, dispensar a
comparação que distingue a moral do passado dos costumes do presente, ou seja:
não é possível prescindir da diacronia. Também não é possível dispensar uma
informação, a saber: o duplipensamento, também conhecido como dissonância cognitiva,
é uma realidade: alimentamos duas crenças opostas sem que percebamos isso. Como
diz Mario Quintana no poema Cocktail
Party (1984, p. 109): “Somos democratas e escravocratas”. Isso só torna
mais urgente que abandonemos a ideia descabida de que o cientista tem de ter
ideologia. Ideologia é exatamente o que ele deve combater.
Sinto um pouco de
compaixão pelos pobres-diabos que adoram dizer que a ciência não pode ser
separada da ideologia: existe um motivo histórico para tal estupidez: sabe-se
que o Positivismo, de Augusto Comte, alimentava a pretensão de ser neutro,
científico e, portanto, livre de ideologia. O Positivismo já era em si uma
ideologia; virou até religião. Se não me engano, no século XX, a reação da
esquerda foi a de recusar a neutralidade da ciência e aceitar que podia ser
útil ao capital e ao poder. Isso teve o mérito de mostrar que existe a falsa
ciência. Naquele tempo fazia sentido a crítica ao Positivismo, mas hoje não faz
mais. Essa lógica de impossibilidade de ser neutra da esquerda já deve ter... o
quê?... pelo menos uns cinquenta anos? Parece que a esquerda parou no tempo,
como se ainda estivesse em abril de 1964 (na cidade do Rio) ou em maio de 1968
(em Paris). Já deveria ter sofrido uma mudança de paradigma, uma atualização.
Não é isso o que a turminha do oba-oba acadêmico, formada por justiceiros e
ativistas, tanto prega? Não falam na importância do avanço científico? Que raio
de mudança é essa? (que se prende a fantasmas de mais de cem anos). Eh, a “ciência”
ocidental sai dos séculos XIX e XX, mas os séculos XIX e XX não saem da
“ciência”.
2.
Os
postulados “científico”-pedagógicos
Se
é verdade que nunca é neutra a escolha de palavras, então a educação não
poderia ter sido colocada em lado pior. Foi soterrada qualquer isenção de ânimo
ou princípio de isenção. Querem um exemplo? Vejam a balela do projeto
“político”-pedagógico. Ao invés de tirarmos a educação da política, como os
formalistas russos fizeram com a literatura, nós a entregamos de bandeja ao
lobo. Que no passado tenha sido um erro não reconhecer o caráter político da
educação, isso ninguém nega; agora: depois de tantos anos, já deveria ter
acontecido uma mudança de paradigma. A política não é científica: os políticos
não são a classe dominante, mas são a classe dirigente; portanto, estão a
serviço da burguesia. As políticas públicas de educação não são científicas: são
mercadológicas e ideológicas: seguem a cartilha do Banco Mundial, que impõe a
mercoescola como modelo. É isso, aliás, que os ensinos básico e superior têm em
comum.
Não
deveria haver projeto político-pedagógico, apesar de os justiceiros da
igualdade repitirem um mantra segundo o qual toda aula é um ato político:
deveria haver o projeto científico-escolar. É com base em critérios
técnico-científicos que se faz a educação, e não com o fisiologismo, que
consiste em dar cargos públicos nos jogos de interesses e nas relações de
compadrio e poder. Não é coincidência que poucos professores alcancem a
efetivação nos magistérios públicos: sujeitam-se aos infames contratos
temporários.
Enquanto isso, cabos eleitorais e seus protegidos continuam sendo recompensados.
Não é por acaso que querem destruir a estabilidade do servidor público estatutário.
O que é intrigante e estarrecedor é o fato de nas universidades e nos
sindicatos discutirem os direitos de minorias sociológicas e mudanças
descabidas no currículo, quando deveriam discutir o que realmente mais importa.
Ativistas que nunca lecionaram ganham espaço nos sindicatos, ao passo que os
professores, que deveriam ter vez e voz, não podem falar. Aqueles tais falam em
homofobia, visibilidade lésbica e tantos outros temas que são silenciados pelo
currículo oculto. Este, por sua vez, é o conjunto de práticas permeadas pelas
relações de poder da escola, mas ninguém o discute. É que quase ninguém o
conhece. Para tais ativistas, o que importa é ganhar capital político, mesmo
que silenciem a voz de quem tem conhecimentos teórico-metodológicos e
empírico-pragmáticos, conhecimentos que só os professores podem ter.
Como
a “ciência” pedagógica foi feita com o propósito mor de fazer com que peões e
peoas do ensino se convençam dos absurdos e os aceitem como se fossem verdades
científicas, acabamos aceitando que Isadora Faber, a justiceira da Internet, e
Daniel Cara, que também nunca lecionou nos ensinos fundamental e médio, tenham
prestígio na hora de falar de educação. Ora, quem deveria falar da educação
somos nós, professores, e não as duas pessoas que acabei de mencionar.
Curiosamente, os dois indivíduos têm o status
atribuído a quem é formador de opinião (intelectual orgânico). Detenhamo-nos no
prestígio daqueles formadores de opinião.
2.1 Isadora Faber e Daniel Cara
O
mundo escolar hoje é um enorme Big Brother, e ai do professor que discordar
do Grande Irmão. As redes sociais são instrumentos de vigilância e controle de
escala planetária, e justamente por isso só as bestas quadradas celebram o seu
falso caráter libertário (conforme os arrazoados de Marilena Chauí). Alunos
podem falar o que lhes dá na veneta e vários “especialistas” também: Leigos não
dão palpite no trabalho do médico, nem no do advogado, nem no do empresário
(refiro-me ao burguês), mas no trabalho do professor todos podem dar palpite, e
qualquer “intelectual” é especialista em educação escolar, menos o professor, o
homo faber, o peão do ensino a quem
negam o status de intelectual. O
pobre-diabo tem de se sujeitar às imposições das famílias, dos pais e das
comunidades, eivados de senso comum. É só um empregado. E os alunos o denunciam
por qualquer coisa, como fazem as crianças do romance 1984, de George Orwell. Filmam, gravam, fotografam e se valem de reducionistas
e superficiais interpretações atribuídas ao ECA e à LDB. Pergunto: Isadora
Faber, hoje com aproximadamente 20 anos, é professora? Cursou uma licenciatura?
Estuda a história do Brasil e da educação? Que experiência (empiria) tem ela
como professora da educação básica? Que conhecimentos acadêmicos tem? Mais
perguntas: O Diário de Classe
aumentou o salário dos professores? Reduziu os efeitos da mais-valia?
Melhorou as condições materiais de vida dos alunos espoliados das escolas
públicas? Eliminou o otimismo pedagógico? Eliminou as ingerências do Banco
Mundial na escola pública? A resposta a todas as perguntas é um sonoro NÃO. Ativismo,
vigilância, controle, denúncia e conivência com a Rede Globo não vão ajudar a
escola pública.
No
que concerne a Daniel Cara, é preciso fazer as considerações seguintes:
É um despautério o slogan da Campanha Nacional pelo Direito
à Educação: “O direito à educação é base para a democracia e para a justiça
social”. Também é muito grave, porque, por detrás do mote, há o prestígio da
carteirada de “cientistas”. Contudo, Marx ensina que já foi posto tudo de
cabeça para baixo. Não aprenderam a lição. O direito à educação e a educação
escolar não são a base da democracia nem da justiça social: a democracia e a
justiça é que são a base da educação. A prova CABAL disso são as mudanças
curriculares implementadas na ditadura militar.
Num país com esgoto a céu aberto e
moradias precárias, é impossível atribuir ao direito à educação a promoção da
justiça social: tal justiça não começa pela escola nem pela universidade
(lembram o argumento de que é justo que os “ricos” paguem mensalidade na
universidade pública em nome da “justiça” social?): escola não é centro de
assistência social; da mesma forma, professor não é assistente social. Além
disso, a base de todas as abstrações, como direitos, democracia, justiça,
liberdade e educação, é CONCRETA, ou seja: é o conjunto das condições materiais
de vida, formadas que são pela produção e circulação de alimentos, bens e
serviços, pelas moradias e pelo saneamento básico. O slogan da Campanha é um ideal útil ao capital e às classes
dominantes, um ideal que se dá ares científicos e esconde suas intenções
ideológicas, que são silenciosas. É que ele só confirma a transferência de
responsabilidades que não são da escola, conforme a visão liberal e burguesa de
John Dewey, cujas experiências contemplaram tão só crianças (crianças, e não
adolescentes) de classe média. A Campanha carrega um mote idêntico ao do
Escolanovismo, ao do entusiasmo pela educação e ao otimismo pedagógico, três
pragas de direita.
Tenho os panos para as mangas:
Em sua luta por verbas, Daniel Cara defende o CAQi (Custo
Aluno-Qualidade inicial) e o CAQ (Custo Aluno-Qualidade). O “fundamento” da
defesa de tais custos é que farão o Brasil se aproximar dos países mais
desenvolvidos no que concerne à educação. Não sei que poder seus partidários
têm sobre a divisão internacional do trabalho e sobre a hegemonia do
imperialismo; no entanto, está muito claro que o propósito divulgado (o que é
dito em consonância com o não-dito) não será alcançado nunca, a menos que a
Campanha Nacional pelo Direito à Educação (doravante Campanha) tenha o poder de
alterar o mapa geopolítico global. Também será necessário derrubar o poder que
as grandes companhias privadas de educação escolar exercem no CNE.
Parece que, para quem representa a
Campanha, a escola é uma linha de montagem; logo, deve ser aplicada a lógica da
Qualidade Total, disciplina que tem que ver com a produção de bens e com a
economia. Trata-se, pois, da aplicação de uma lógica mercantil. Mais uma vez
aponto a escolha de palavras: a Campanha fala em custo, que é o mesmo que
custeio, e não em esteio. De alguém de direita eu esperaria isso...
É curioso que seja dada atenção ao aluno: se é ele o centro de
gravidade do gasto em educação, então a “ciência” por detrás do CAQi adota o
velho, centenário e ultrapassado paradigma do Escolanovismo, em que novo só existe no nome. Como se trata de
um investimento, espera-se que ele devolva o dinheiro aplicado de alguma forma.
Que se lasque o espaço público das ruas, que é vedado ao jovem quando o prendem
numa escola de tempo integral; que se dane o fato de existirem moradias de
péssima qualidade; que se dane o fato de haver esgoto a céu aberto; que se
danem os Aparelhos Ideológicos de Mercado, que impedem que o professor
catedrático faça bem o seu trabalho: o que importa é aumentar as verbas, manter
o aluno a todo custo na escola, como se ela, sozinha, fosse dar conta da tarefa
que cabe a outros setores sociais e econômicos. É que, com mais verbas, mais
pessoas enriquecem: boa parte do dinheiro vai para empresas que venderão
equipamentos às redes públicas de ensino. Se não me engano, foi Ziraldo que
disse que, no Brasil, alguma coisa só dá certo quando há quem compre e quem
venda.
A influência escolanovista é quase tão imperceptível quanto a
influência neoliberal. (Seriam sempre
perceptíveis tais influências, se houvesse professores mais estudiosos.) Não é
à toa que não há uma defesa ferrenha da estabilidade do professor da escola
pública, cada vez mais ameaçada pelo neoliberalismo econômico. Só percebe tais
influências quem tem formação sólida. Se é tudo uma questão de verbas, então
deveria haver o CPQ (Controle Professor-Qualidade), já que é ele que cria as
possibilidades de construção de conhecimento (sem a conversinha estúpida de que
é um reles “facilitador” da aprendizagem).
Por falar em aprendizagem, lembro que, pelo menos uma vez, no Twitter, Daniel Cara referiu-se às
teorias pedagógicas sem as distinguir. Para ele, que, pelo visto, ignora que o
aluno precisa de conteúdos atitudinais (sem os quais não pode se comportar que nem
um monge beneditino), e que se opõe ao Ensino à Distância (este se tornou um “palavrão”
“atenuado” pelo eufemismo ensino remoto) sem reconhecer que ele é válido
e preserva professores e alunos dos riscos da pandemia, vale mais a
socialização do que a concentração e o esforço. Já que ele aparentemente
conhece as teorias ou tendências pedagógicas, deve saber da escola dualista: os
pobres vão para a escola pública ou para as escolinhas particulares de fundo de
quintal; já as outras classes vão para a escola particular. Esta forma futuros
servidores públicos, futuros profissionais liberais e futuros capitalistas, ao
passo que aquela forma mão de obra barata. Não sei se Daniel Cara conhece tão
bem as teorias, mas não é necessário conhecê-las para saber que ele e outros
políticos, quer fossem de esquerda, quer fossem de direita, matriculariam os
filhos em escola particular, caso os tivessem. (Nem sei se ele tem filhos.)
Será que em algum momento ele já defendeu a ESTATIZAÇÃO de todas as escolas
particulares?
Honestamente: não sei de onde tira tanta
segurança para falar com propriedade. Eu não me lembro de ele mencionar
referências bibliográficas nem experiências realizadas em sala de aula, e no
entanto ele dá palpites com a autoridade de formador de opinião para poderosos
veículos de comunicação de massa (o que não é um bom sinal para mim). Se ele
disser, por exemplo, que a LDB deve garantir o aprendizado, e não a
aprendizagem, todos abaixarão a cabeça, mesmo que a lei, por si só, não garanta
as condições para o aprendizado de ninguém. Só abaixaria a cabeça quem não
tivesse os referenciais básicos.
É preciso que os
ativismos sejam escorraçados das discussões sobre educação, e precisamos que
outros professores da educação básica e eu, que temos a EMPIRIA proporcionada
pelo chão da sala de aula, tomemos o lugar de Daniel Cara e o de outras pessoas
que falam de um trabalho que não fazem. (A propósito: é o ativismo que permite
a interferência irracional dos Estudos Culturais no currículo. Não vejo a
diferença entre eles e o Esquenta, o
programa televisivo de Regina Casé. Querem um currículo diferente para os
espoliados, mas não querem dar aulas nas escolas onde estudam; querem impor,
como de fato já impuseram, a Declaração de Salamanca sem consulta aos
professores da educação básica, todavia, não querem discutir as objeções à “inclusão”,
nem querem trabalhar com os alunos especiais.) Deveríamos ter vez e voz. Sem
isso, vemos slogans absurdos, slogans que não reconhecem as relações
entre as condições materiais de vida (a infraestrutura) e os direitos
garantidos pelo Estado (a superestrutura). Acham que berimbau é gaita! Berimbau
não é gaita, não!
2.2 Paulo Freire, a vaca sagrada da
pedagogia
Estou farto da
banalização do nome de Paulo Freire. De um lado, os direitistas neoliberais o
criticam e a ele atribuem fracassos pelos quais não pode o bacharel
pernambucano ser responsabilizado, como o fracasso no Pisa; de outro, há guardiões
do legado freiriano que
nunca trabalharam numa sala de aula de escola pública. A verdade é que estão todos
errados.
Para começo de
conversa, os postulados de Freire, defendidos em textos de caráter ensaístico
(e, portanto, de caráter subjetivo e desprovido do rigor metodológico inerente
ao trabalho de comprovação científica), acertam parcialmente quando se referem
ao lado político do trabalho docente, mas erram feio quando dão destaque aos
alunos, influência do movimento Escola Nova, o qual o pernambucano criticava
por não levar em conta a realidade social dos alunos, mas com o qual
simpatizava. Prova disso é a afirmação freiriana segundo a qual a didática
tradicional é extremamente dissertativa, extremamente expositiva e
transmissiva. Ora, o que Freire fez em boa parte da vida foi dissertar! Mais:
ele usava a lousa para fazer a análise sintática de frases de Jorge Amado! O
curioso é que ele não prova a ineficiência da didática tradicional na medida em
que ele mesmo se servia dela e na medida em que nunca apresentou provas que
pudessem refutar os postulados de Comênio, Pestalozzi e Herbart. Sim, amigos freirianos:
já havia uma ENORME literatura pedagógica antes de Paulo Freire nascer.
Freire, que, até onde
sei (ou até onde penso saber), nunca cursou uma licenciatura (era bacharel em
Direito), tem um lugar de ouro no altar dos sagrados pedagogistas modernos,
muito embora ele tenha morrido em 1997, o que quer dizer que não viu a ascensão
das tecnologias de informação imediata nem o modo como seus postulados foram (e
continuam sendo) cooptados pelo Banco Mundial e pelas estatísticas que garantem
generosas verbas, boa parte das quais vai para os bolsos de donos de editoras
que vendem livros didáticos para o Ministério da Educação.
As teorias freirianas
continuam sendo vendidas em livrarias como se fossem universais, muito embora
nada na educação escolar seja universal (com exceção talvez da obrigatoriedade
da escolarização, contra a qual ninguém lutou por ninguém a ver como violência
simbólica). É muito fácil achar um livro dele na Saraiva, mas nunca vejo livros
de Dermeval Saviani. (Este, por sua vez, reconhece que é preciso fazer uma
ponte entre os saberes eruditos e os saberes do senso comum, e isso só se faz
com a liberdade e o fortalecimento da cátedra.)
Boa parte da empiria de
Paulo Freire (que chega a ser tão rala quanto a de muitos acadêmicos que nunca
puseram os pés numa sala de aula do ensino básico como professores) vem do
convívio com adultos analfabetos do campo. Ele nunca experimentou a
precariedade das relações de clientelismo de escolas públicas e nunca carregou
nos ombros os ônus oriundos das responsabilidades que têm sido transferidas
para a escola por causa do otimismo pedagógico, uma crença que consiste em
fazer da educação a salvadora da sociedade, apesar de já ter sido comprovado
que a escola sozinha não vai fazer a sociedade mudar para melhor; afinal, ela,
a escola, é condicionada pela economia (leia-se: pelo mercado) tanto quanto o
restante da sociedade. Mesmo assim Paulo Freire, numa posição muito cômoda de
intelectual ou de gerência (e não na posição de chão de fábrica), dita o que a
educação pode e o que não pode ser: o achismo dele, revestido que é de uma
autoridade quase divina ou santificada sete vezes, reforça o otimismo
pedagógico, contra o qual ninguém se rebelou. É esse otimismo que faz com que a
escola tenha de ser centro de assistência social e tenha de aceitar qualquer um.
E ai do professor que não se submeter ao otimismo pedagógico: sem concursos
públicos para o provimento de cargos efetivos e com contratos temporários, ele
se torna um empregado de quinta dos pais, que vão desde as classes populares
aos integrantes de uma classe média estúpida e semiletrada. (Obviamente os
professores evangélicos neoliberais não devem se queixar desse estado de
coisas: na verdade, por uma questão de coerência, devem lamber as botas de seus
patrões com gratidão e amor a Deus, pois essa é a vontade Dele.)
(O otimismo pedagógico
merece mais atenção. Minha hipótese é a de que, como fruto do escolanovismo,
tem sido o motor de diretrizes absurdas, impostas, é claro, pelo Banco Mundial.
Ele e todas as diretrizes de inclusão geram uma inclusão social às avessas
partindo de um pressuposto não-científico: o de que a evasão escolar gera a
desigualdade e a exclusão sociais, quando, na verdade, ocorre o contrário: a
desigualdade e a exclusão sociais, que assumem a forma de pobreza ou até de
pobreza extrema, é que geram evasão escolar. Os defensores da lógica do
otimismo pedagógico lucram de alguma forma com ela e dizem que, assim como no
hospital, a escola deve dar prioridade aos que estão no pior estado. Essa
analogia, é claro, é absurda, porque no hospital é preciso tratar de verdade a
doença, enquanto na escola é oferecido “placebo”.)
Os defensores de Paulo
Freire, que o defendem por defender sem que saibam por que deve ser defendido,
e seus detratores, que o atacam sem que saibam pelo que deve ser criticado, não
perceberam, mas os postulados freirianos são extremamente úteis ao
neoliberalismo econômico. É uma pena: Freire afirmava que a curiosidade ingênua
deveria ser promovida à curiosidade epistemológica e que a consciência ingênua
deveria ser promovida à consciência crítica. Só me resta esperar que seus
defensores, metade dos quais nunca deve ter lido livros dele, sejam menos
superficiais e menos tacanhos e passem a ler a obra dele. A melhor forma de
honrar a memória de Paulo Freire não é fazer dele a vaca sagrada em que foi
transformado pela academia: a melhor forma de honrar o legado dele é criticar as
teorias dele.
Lembro que, quando
expus críticas minhas num grupo de Facebook
mantido por estudantes de Letras, um deles disse que ensinar é mais do que
transmitir conhecimentos e que o aluno é um ser humano. Paulo Freire, a seu
turno, dizia que muitas escolas haviam se transformado em centros de
transmissão de conhecimento: eram, em seu achismo revestido de autoridade quase
divina, antidialógicas: não permitiam o debate (ou dialética), tão do gosto da
teoria freiriana (baseada em Hegel). Trata-se da crítica ao que Freire chamava
de educação bancária. Ora, quando o tal estudante disse que ensinar é mais do
que transmitir conhecimento, admitiu, implicitamente, que ensinar também
é transmitir conhecimento, tal como o próprio São Paulo Freire admitira. Ora,
assumiram um princípio FALSO, e contra ele fizeram um cavalo de batalha.
Acontece que é IMPOSSÍVEL transmitir conhecimento: é construído na interação verbal, em que quem lê ou escuta a mensagem
assume o que Bakhtin chamava de atitude responsiva-ativa. Portanto, nunca houve
alunos passivos. Também é de estarrecer que tenha mencionado a humanidade do
aluno: é como se um ensino rigoroso lhe negasse o que tem de humano. Nada mais
falso: os estudos e o rigor da didática de cada disciplina escolar são
inerentes aos seres humanos, porque só nós podemos usar a razão, faculdade que
tem sido cada vez menos usada. Não culpo o tal estudante; da mesma forma, não
culpo outro estudante, que quis me dar carteirada ao mencionar o que fez num
país desenvolvido da Europa como aluno de intercâmbio: o depoimento de cada um
deles é a confirmação do fracasso dos departamentos de Educação das
universidades públicas.
Sinceramente: sou de
esquerda e social democrata de carteirinha, mas não suporto Paulo Freire nem
Darcy Ribeiro. Muitas pessoas insistem em atribuir a cada um dos dois uma aura
divina. Para elas, não restam dúvidas: Deus no Céu, Paulo e Darcy na Terra.
Nenhum dos dois lecionou na escola pública de ensino básico, mas são
autoridades inquestionáveis. A LDB é uma afronta: tomou o lugar de um projeto
que não tinha sido aprovado pelos donos das escolas particulares, que até hoje
exercem muita influência no CNE. Os CIEPs, estes foram apenas um modo de
arranjar votos (que são um capital político). O ideário deles consistia em
transferir para a escola o trabalho que deveria ser de outras partes da
sociedade e da economia. Todo projeto de educação em tempo integral tem a
influência nojenta e nefasta do escolanovismo, corrente educacional que era do
gosto da burguesia. Mas ai de quem disser que não se combate a pobreza por meio
da escola: o Banco Mundial está com o chicote nas mãos para refutar os dizeres
do desgraçado que ousar cometer a heresia de se rebelar contra o dogma. Afinal,
como diz tio Paulo Freire, se com a educação a sociedade não muda, sem ela
tampouco. Viva o otimismo pedagógico! Viva a licenciosidade! (contra a qual o
pernambucano aparentemente se opunha). Viva a vontade de ser mais dos anjos e
santos! (que são as crianças e os adolescentes politicamente corretos e chegados
à cultura do cancelamento). Viva o ego! Viva o individualismo! (tão do gosto da
moral burguesa e do neoliberalismo econômico). Viva a fraqueza do “oprimido”! E
que ninguém ouse lembrar o fato de os escritos de Freire e Ribeiro datarem de
cinquenta anos ou mais, mesmo que a turminha do oba-oba pedagógico insista na
importância de atualizar as referências bibliográficas de dez em dez anos, como
se a ciência tivesse um tempo programado para avançar, e a diacronia fosse
incapaz de analisar e contextualizar, de modo sensato, o que foi dito em eras
passadas. (Ignorar o passado em nome de algo maior é o que se faz no romance 1984, de George Orwell.) Para Freire,
vale a lógica da adaptação das espécies, numa espécie de darwinismo social:
quem não acredita na educação nela não deve trabalhar: deve procurar outra
coisa. Que se adaptem os professores à lógica do absurdo ou, por falta de
salário digno, que busquem a luz de um dia melhor em outra profissão. Na lógica
freiriana, é irrelevante o fato de 66% dos professores adoecerem ou pedirem
licença para tratamento da própria saúde.
Que fique claro que
Freire tem o mérito de ter criado um método de alfabetização baseado numa
palavra geradora, isto é: numa palavra que tenha que ver com a realidade de
quem é alfabetizado. Há evidências científicas de que foi bem-sucedido o seu
método, então, ponto para ele. Acontece que o que pregava Paulo Freire não
serve para todos os estudantes: não se sustenta em todos os níveis de ensino;
também não serve em todas as modalidades. Tantos são os erros epistemológicos
de Paulo Freire, e tão grosseiros, que só há duas hipóteses que expliquem o
fato de os alunos e os lentes das licenciaturas não os denunciarem: uma é a
ignorância; a outra, a desonestidade intelectual.
Quem serve a dois
senhores não serve bem a nenhum. É muito claro o dilema teórico-metodológico do
magistério da educação básica: ou segue uma educação mais clássica, mais
tradicional, mais livresca, mais
erudita e mais conteudística e muito, muito mais respeitadora da autoridade e
da cátedra do professor, ou segue Paulo Freire (que, aliás, nem formado em
Pedagogia era: era bacharel em Direito; e nunca vou me cansar de repetir isso).
A educação popular confirma o Escolanovismo, o otimismo pedagógico e o
entusiasmo pela educação, doutrinas da direita. Também confirma as estratégias
neoliberais do Banco Mundial, que acha que, fazendo da escola pública um
depósito de alunos, vai combater a pobreza, quando, com toda a hipocrisia da
inclusão (que, na verdade, é uma inclusão às avessas), apenas faz com que a
delinquência chegue à escola pública, e o professor que assuma a linha de
frente sem colete, como se ele tivesse de ser psicólogo, assistente social e
qualquer outra coisa, menos professor. Na verdade, tanto na lógica freiriana
quanto na lógica do Banco Mundial (existe diferença entre as duas?), ele, o
professor, é “educador” e, portanto, tem responsabilidades sociais. Obviamente
tais responsabilidades não deveriam ser dele, mas o jogo do neoliberalismo
consiste em mascarar a verdade. O neoliberalismo econômico apresenta muitas
faces e se infiltra onde menos esperamos. A história das metodologias ativas,
por exemplo, é do gosto do Banco Mundial, que praticamente segue a cartilha do
Escolanovismo, do otimismo pedagógico e do entusiasmo pela educação, três
pragas da direita. Há cem anos vemos o fiasco dessa história de metodologias
ativas. É o que acontece quando os “pesquisadores” dos departamentos de
educação não estudam nem pesquisam. Se não tivermos uma educação escolar mais
tradicional, mais livresca, mais clássica e mais conteudística, continuaremos
vendo a consolidação de seitas intolerantes, irracionais e anti-iluministas.
Também continuaremos vendo médicos que receitam cloroquina e invermectina.
Meu caminho é muito
claro: não acato o que diz Paulo Freire, que ataca a didática tradicional,
muito embora dela tenha se servido. E sabem o que é mais curioso? A turminha do
oba-oba pedagógico adora dizer que é preciso uma atualização e que de dez em
dez anos devemos atualizar nossas referências bibliográficas. Ora, Paulo Freire
publicou seus livros há aproximadamente CINQUENTA anos! E toda essa conversa de
metodologias ativas começou há praticamente UM SÉCULO! A turminha quer que os
OUTROS se atualizem, porque, sendo incapaz de aplicar a diacronia e a sincronia
em suas “leituras”, considera-se imune à necessidade de se atualizar. Para ela,
o erro está só nos outros.
A respeito da LDB, vale
registrar o seguinte:
Infelizmente, a atual
LDB equivale àquela que foi idealizada por Darcy Ribeiro, e não ao texto que
propusera o deputado Otávio Elísio (PMDB/MG). Refiro-me ao projeto de lei
1.258, de 1988, para o qual o relator escolhido foi o deputado Jorge Hage
(PDT/BA), que “ouviu as entidades da sociedade civil e outros parlamentares e
apresentou, em agosto de 1989, o primeiro substitutivo do Projeto Otávio
Elísio, que contou com o apoio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública”
(MARTINS, 2008, p. 93). Para o nosso azar,
a vitória de
Collor priorizou as propostas educacionais do empresariado industrial. No
início de 1990, Jorge Hage apresentou o segundo substitutivo, mas os defensores
dos interesses privados criaram uma série de mecanismos para que esse
substitutivo não caminhasse na Câmara dos Deputados. Collor reuniu aliados para
barrar o projeto do deputado Jorge Hage; assim, foram criados vários empecilhos
que impediram a votação do projeto na Câmara dos Deputados. Em 1992, Darcy
Ribeiro apresentou outro projeto de LDBEN, que também foi assinado por Maurício
Correa (PDT/RJ) e Marco Maciel (PFL/PE). Logo em seguida, o projeto do deputado
Jorge Hage foi retirado do Congresso, o projeto de Darcy Ribeiro foi votado e
transformou-se na nova LDBEN, Lei 9.394, promulgada em 20 de dezembro de 1996
(MARTINS, 2008, p. 93).
Até hoje a LDB é
conhecida como Lei Darcy Ribeiro. Reflete as contradições da educação pública
brasileira e define a educação como dever do Estado e da família. Esta, é
claro, é religiosa e tacanha, e por isso mesmo não respeita a liberdade de
cátedra do professor. Para o azar dos professores progressistas, “as esperanças
dos educadores, de ter uma educação fundamentada, discutida e organizada sob os
princípios da dimensão crítico-social foi abortada pela Lei Darcy, que não
representa a vontade e o sonho dos educadores brasileiros” (THOMAZ; CARINO,
2008, p. 149).
2.3
Pelo fim das licenciaturas e pela valorização dos Bacharelados como maneiras de
garantir a formação de bons professores, ou: pelo fim dos abusos e das abusões
da pedagogia
Desde
o Escolanovismo, marcado que é pelo entusiasmo pela educação e pelo otimismo
pedagógico (duas ideologias educacionais estúpidas), o didaticismo, a
psicologização do ensino e a supervalorização do umbigo do aluno têm estendido,
de modo impenitente, as garras que garantem que, hoje, seja seguida servilmente
a cartilha do Banco Mundial, cujas diretrizes economicistas e neoliberais
garantem a pobreza dos países periféricos e inviabilizam uma educação escolar
de qualidade mais alta e mais humanista. Como forma de garantir a
profissionalização do magistério, tornou-se obrigatória a licenciatura, que
impõe aos futuros peões e às futuras peoas do ensino a ideologia pedagógica,
que, como toda ideologia, é burguesa e, portanto, mascara a realidade em nome
do status quo. Dá-se à pedagoga a autoridade “científica” para avaliar o
professor, mesmo que ela nunca tenha assumido a regência de uma turma. Ocorre
que esse é um erro baseado numa desonestidade intelectual, a saber: a falsa
premissa de que a pedagogia pode dominar todos os procedimentos de ensino.
Essa
arrogância da pedagogia é evidenciada no livro Didática Magna (1621-1657), de João Comênio (1592-1670). Naquele
livro, numa revelação de consciência ingênua (a mesma de que fala São Paulo
Freire, que era bacharel em Direito, e não pedagogo), afirma o autor:
Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo
a Todos
ou
Processo seguro
e excelente de instituir, em todas as comunidades de qualquer Reino cristão,
cidades e aldeias, escolas tais que toda a juventude de um e de outro sexo, sem
excetuar ninguém em siveiarte alguma, possa ser formada nos estudos, educada
nos bons costumes, impregnada de piedade, e, desta maneira, possa ser, nos anos
da puberdade, instruída em tudo que diz respeito à vida presente e à futura,
com economia de tempo e de fadiga, com agrado e com solidez (p. 11).
Pensava Comênio que realmente
podia criar um método de ensino universal, capaz de ensinar tudo a todos,
embora dividisse o livro em capítulos, cada um dos quais é dedicado a uma
disciplina diferente. Essa é uma ingenuidade idêntica à dos enciclopedistas, que,
por sua vez, achavam que poderiam saber tudo.
Para a nossa sorte, ainda existem
pedagogistas com um pingo de decência e honestidade. É o caso do Sr. Luckesi.
Para ele,
o método pode
ser entendido dentro de uma concepção teórica ou de uma compreensão técnica. O
autor compreende Metodologia como a concepção segundo a qual a realidade é
abordada. Esta é uma concepção teórica do método. Porém, afirma que há uma
compreensão técnica do método que também atravessa o conteúdo, visto que “são
modos técnicos de agir que estão dentro do conteúdo que se ensina” (p. 138).
Exemplo: o modo de extrair raiz quadrada (Matemática) ou o modo de proceder
numa análise sintática (Língua Portuguesa). Tanto uma quanto a outra perpassam
os conteúdos tratados nas diferentes disciplinas curriculares (GRUMBACH e
SANTOS, 2012, p. 33).
Com efeito: “Todo conhecimento é
atravessado por uma metodologia e é possível descobrir no próprio conteúdo
exposto o método com o qual ele foi construído” (LUCKESI, 1995, p. 138 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 34).
Se fosse mesmo verdade que toda
pedagoga está apta para avaliar quem é mais instruído do que ela, a partir do
tecnicismo, tendência pedagógica reconhecida pela Lei 5.622, de 1971, no tempo
do regime implementado pelo golpe militar, não seria necessário elaborar para
ela um plano de aula com cabeçalho e objetivos. O ofício burocrático e
irracional de explicitar procedimentos de ensino que não domina já é em si uma
prova de que as pedagogas não dominam o conhecimento, porém querem dar
carteirada mesmo assim. Com isso apenas revelam a ignorância maciça. E sabem o
que é mais curioso? O modelo de plano de aula tecnicista é inspirado pela
Psicologia behaviorista, de Skinner. Pergunto: ele era bacharel ou licenciado?
Se é verdade que todo conteúdo é condicionado, permeado e atravessado
por uma metodologia, então toda metodologia também é atravessada por um
conteúdo de uma disciplina específica, o que quer dizer que a pedagoga, que
está abaixo de Luckesi, só pode dominar os procedimentos de ensino do professor
quando ela é formada ou versada na disciplina que ele leciona, hipótese em que
ela teria duas graduações. Isso quer dizer que é um despautério o que aconteceu
na rede estadual de ensino do Paraná: Segundo notícia veiculada em 6 de outubro
de 2019 pelo site Plural, pedagogas
estariam vigiando professores em sala de aula. Em tempos de Escola sem Partido,
pedagogas evangélicas e disseminação dos dizeres de Olavo de Carvalho, isso só
pode soar como forma de desrespeitar a liberdade de cátedra do professor,
garantida por lei.
Está mais do que claro que a
formação científica do professor não depende da licenciatura, mas sim do
bacharelado. Aliás, todo indivíduo com diploma de curso superior é, por
definição, bacharel. A pedagogia deve se voltar apenas para a educação
infantil, para o primeiro segmento do ensino fundamental, para a alfabetização
de jovens e adultos e para a formação das normalistas, que, infelizmente, ainda
são submissas ao patriarcado e a uma moral fálica ou falicizada, como se
estivéssemos no século XIX (quando muito, fazem um feminismo de farmácia,
extremamente superficial). O curso Normal é “uma escola sem mestres, um
estabelecimento anacrônico, onde as moças vão tagarelar, vão passar o tempo a
ler romances e a maldizer o próximo, como vocês sabem melhor que eu...”
(CAMINHA, 2001, p. 255). Com efeito: “Aquilo é uma sinecura, não temos
educadores, é o que é” (CAMINHA, 2001, p. 256).
As citações acima foram tiradas do
romance A Normalista, de Adolfo
Caminha. Foi publicado em 1893, no século XIX, portanto. Mudou alguma coisa?
Enquanto a pedagogia não parar de
se meter onde não é chamada, não será ciência: será, no máximo, falta do que
fazer ou um curso que prepara pessoas acríticas que cortam e colam papel.
2.4
A infâmia dos mestrados profissionais e o baixo nível do magistério
Já
se tornou comum o desfile de horrores e obscenidades promovido nas educações
básica e superior pelo Banco Mundial e pelo neoliberalismo econômico. Tal
desfile consiste em implementar “cientificamente” (leia-se: por meio da
ideologia, uma visão social e enganosa de mundo que nunca se revela como
ideologia, mas sim como “ciência” ou, no caso da religião, como conhecimento
divino) uma formação anti-intelectual, anti-iluminista, acrítica e cheia de
oba-oba pedagógico. É de estarrecer a quantidade de heresias proferidas por
gente que se acha habilitada para falar do que não sabe só por causa de um
pedaço de papel.
Um exemplo são os
mestrados profissionais: neles defendem as metodologias “ativas”. Pergunto:
quando criaram as metodologias passivas? O uso das palavras método e metodologia já se tornou tão vulgar na boca e no teclado dos que
tentam dar ar científico ao próprio discurso com uma terminologia
“técnico-científica”, que já não há ligação entre os significantes e os
significados. A turminha do oba-oba pedagógico não tem distanciamento reflexivo
nem força intelectual para notar as sandices que repete só porque gente com
algum prestígio determinou que seus postulados de meia tigela são verdades
científicas.
Isso tem que ver com o
Escolanovismo, tendência pedagógica não-crítica, desgraça da minha vida, ruína
da educação, cadáver de cem anos adotado por Anísio Teixeira que fede a mofo e
cinzas e até hoje estende suas garras pútridas no lodo do otimismo pedagógico e
do entusiasmo pela educação (ideologias dos liberais de direita). Que o Sr.
Kilpatrick, discípulo e sucessor do Sr. Dewey, seguisse a pedagogia de projetos
(adotada por Freinet) e as tais metodologias ativas, coisa é que se entende e
se aceita, porque tudo isso se encaixava na disciplina dele: a Física. Mas quem
não se prende a fantasmas nem a cadáveres de um século sabe que, de dez em dez
anos, é bom rever as referências bibliográficas. Com efeito: em 1995, o Sr.
Luckesi (p. 138 apud GRUMBACH e
SANTOS, 2012, p. 34) declarou o seguinte: “Todo conhecimento é atravessado por
uma metodologia e é possível descobrir no próprio conteúdo exposto o método com
o qual ele foi construído”. Isso quer dizer que os procedimentos de ensino e
pesquisa (duas coisas inseparáveis) estão embutidos nos conteúdos e vice-versa:
estes são atravessados por aqueles. Daí a falácia do “aprender a aprender” e da
interdisciplinaridade. O método de identificação e classificação do sujeito de
uma oração absoluta, por exemplo, está dentro da própria matéria que se
examina, e o exame só é possível dentro de uma educação clássica, conteudística
e rigorosa.
A ser verdade o que diz
Luckesi (e eu sei que é), a pedagogia de projetos é um erro, além de um insulto
ao trabalho do professor cuja formação acadêmica é sólida. O que diz o
pedagogista só pode partir do pressuposto de que só o professor de língua
conhece os procedimentos de ensino e avaliação de sua disciplina, de modo que a
pedagoga deve se abster de quaisquer críticas e se dedicar tão só aos níveis
mais básicos de educação escolar. Em verdade, ele parte do pressuposto de que
só o professor especializado domina os procedimentos de ensino desta ou daquela
disciplina. Em outras palavras: só o professor de Física conhece os
procedimentos de ensino de Física, só o professor de Matemática conhece os
procedimentos de ensino de Matemática.
Como falar em
referências bibliográficas, quando doutores de departamentos de Pedagogia de
universidades PÚBLICAS defendem o que prega a cartilha do Banco Mundial? Essa
gente, que se vale de pedaços de papel (capital simbólico), acha que com mais
baderna e mais barulho em sala de aula os alunos vão aprender ou vão aprender
mais. Defendem o uso de tecnologia, na contramão dos avisos do professor
Kawamura, para quem as tecnologias digitais são vendidas aos países emergentes
de tal modo, que causam a ilusão de ascensão social, do que se depreende que há
um imperialismo mercantil. Como falar em referências bibliográficas, se o
intelectual é malvisto, odiado? Como falar em referências bibliográficas, se
existem professores que caem na ilusão de que os alunos vão aprender ou vão
aprender mais com tecnologias digitais? Como falar em referências
bibliográficas, se quase não há bibliotecas públicas? As poucas que existem
estão sucateadas, e há professores que acham que isso é bom, porque
supostamente vai salvar árvores. Ora, o silício e o papel poluem, porém há um
mal-entendido ou uma séria dificuldade de interpretar e compreender a questão:
o papel e os eletrônicos poluem, mas estes poluem MAIS do que aquele. Eu gosto do
que diz Ronaldo Lima Lins, professor emérito do departamento de Letras da UFRJ,
no livro O livro e seus algozes (Rio
de Janeiro, Mauad X, 2017, p. 36) sobre a “ecologia” da eletrônica: “O
argumento ecológico, em seu favor, não se sustenta. Também produz lixo em altas
quantidades de peças que não se desfazem. E o papel, não obstante derrube
árvores, não atinge florestas, suas árvores podendo ser replantadas com
idêntico propósito”.
A turminha do oba-oba
pedagógico, cuja visão é extremamente tacanha e, portanto, limitadíssima,
ignora isso tudo, e o que ela ignora preenche livros e livros. É que o
psiquismo dela não foi formado pela convivência com as páginas dos fortes
autores. A mesma turminha insiste em não enxergar algumas verdades, a saber:
1ª: é mentira que as faculdades não
preparam professores para a educação básica (a despeito de vermos a ascensão e
a consolidação de uma categoria anti-intelectual numa era em que futuros
professores entram na faculdade, ainda que ela não entre neles): elas preparam,
e sou uma prova disso; muitos alunos é que não estão preparados para a sala de
aula, de modo que cabe ao Estado impedir que os maus alunos prejudiquem os
bons; e não aceito que ativistas venham me repreender, pois que ativismo, tão
do gosto da turminha daquilo que no vocabulário moderno é conhecido como
lacração, não (não, NÃO!) é ciência;
2ª: a raiz dos problemas de ensino e
evasão escolares não está no currículo, muito menos nos métodos: a raiz está
nos problemas infraestruturais, isto é: nas condições materiais de vida dos
alunos, que são históricas e paupérrimas, e isso tem que ver com as divisões
social e internacional do trabalho;
3ª: o professor, em tese, está mais do
que apto para ensinar (e por isso o investimento em educação deve começar
sempre pelas universidades, e não pela educação básica, pois é a universidade
que forma o professor dos ensinos fundamental e médio): os alunos é que carecem
do que a pedagogia, em seu vocabulário pedante, chama de CONTEÚDOS ATITUDINAIS.
Negar as três verdades
acima é fazer o jogo do capital, ou seja: é perpetrar a ideologia, que, por
definição, é o pensamento das classes dominantes. Negar o que listei também é
culpabilizar o professor por mazelas das quais ele é vítima. Qualquer caminho
diferente do meu ou oposto a ele é um modo de transformar a vítima em algoz.
Não surpreende, porém, que continuem pregando mentiras na educação: num país em
que os Institutos Federais, num exercício neoliberal de valorização do
tecnicismo deixado pela ditadura militar, são mais valorizados do que as
universidades, prospera a falta de pensamento crítico e reina a precarização da
formação continuada dos professores. Ora, o compromisso com a formação de
qualidade sempre foi assumido pelas universidades, mas isso tem mudado, de modo
que muito me preocupa a estúpida celebração em torno dos Institutos (doravante
IFs). Essa só pode ser também uma herança de FHC. Cabe a pergunta: por que os
magistérios, principalmente os públicos, os quais, em tese, deveriam ser os
guardiões das ciências humanas, estão celebrando a ascensão e a consolidação do
tecnicismo dos IFs?
Enquanto não houver a
valorização de uma educação mais conteudística e clássica, continuaremos a ver
o desfile de obscenidades e heresias que são difundidas, reconstruídas e implementadas
como se fossem ciências: os professores continuarão sendo vítimas da
subproletarização e dos contratos temporários no contexto do domínio do
neoliberalismo econômico, a escola continuará sendo administrada como se fosse
uma empresa, os professores continuarão adoecendo por se sentirem culpados
(afinal, a “ciência” pedagógica os culpa), os alunos continuarão sendo
aprovados de modo automático, continuarão saindo da escola sem que saibam que a
ditadura não (não, NÃO!) foi uma “ditabranda”, médicos continuarão receitando
cloroquina sem base científica, as pessoas ficarão cada vez mais dependentes da
tecnologia e os “leitores”, em suas desleituras, continuarão caindo em notícias
falsas num gesto de automatismo psíquico. Nem é preciso lembrar que o currículo
propedêutico, o utilitarismo, o caráter danoso do bônus-desempenho, a
mais-valia
e tantos outros temas que professores desconhecem continuarão sendo silenciados
na sala dos professores, onde nunca são mencionados. E por que seriam? O que
importa mesmo é o Big Brother Brasil
ou o time do Flamengo.
2.5
Mitos e reducionismos
Em
tempos “pós”-modernos (ou hipermodernos), em que há a “pós”-verdade e outras
tolices, a juventude carece de ritos de passagem: prolongam-se a infância e a
adolescência ao mesmo tempo que, num gesto que contraria o autor de O Anticristo, defende-se a fraqueza. Na
visão de certos psicólogos e assistentes sociais, a criança e o adolescente não
podem nunca, jamais, jamais mesmo, sofrer. Como vão crescer e se tornar adultos
responsáveis, isso eu não sei. Talvez queiram adultos suscetíveis ou
vulneráveis ao id, isto é: vulneráveis à pulsão infantil, característica
necessária ao consumo. Peter Pan é agora o patético modelo a ser seguido; a
morte, o horror que crianças nunca devem descobrir em nome da preservação da
preciosa flor de sua inocência.
Está
muito claro que, de todas as evidências de que a epistemologia que presidiu à
elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente é tão falsa quanto as outras
interpretações reducionistas e cínicas a ele atribuídas, a que mais se destaca
é a defesa dos direitos. Refiro-me ao cinismo de que são sujeitos de direitos e
os adultos, de deveres, como se as obrigações anulassem os direitos. Ora, a
existência dos ônus sempre pressupõe a dos bônus, por isso tanto os adultos
quanto os menores têm deveres, e negar isso é regredir à Idade Média, quando
não havia o cidadão. Curiosamente, o protagonismo e a autonomia do aluno seguem
o individualismo, que “foi e continua de certo modo querendo ser o eixo da
moral burguesa” (CÂNDIDO, 1952, p. 4). Numa era em que o indivíduo tem de ser
empresário de si mesmo por imposições do neoliberalismo econômico e do mercado
financeiro, que causam muito mais danos e mortes do que a corrupção política,
não é de surpreender que a pedagogia, a psicologia e o serviço social tentem se
certificar de que crianças e adolescentes sejam jogados, largados ou
depositados em escolas, que fazem as vezes de centros de assistência social ou
até de prisões. A rua e os outros espaços públicos da pólis são malvistos, de
modo que os adolescentes devem ser poupados de tais espaços “deletérios”. E ai
do professor que reclamar: a “ciência” pedagógica lá estará para dizer que ele
“escolheu” isso. Ora, não existe livre-arbítrio: existe, no máximo, um
princípio de escolha, e ninguém escolhe pagar contas. É possível fazer jejum
quando há comida, mas não há escolha quando o indivíduo precisa comer sem
alimento nenhum em casa.
A
verdade é que tanto os ativistas de esquerda quanto as Damares da vida, que
ignoram a verdadeira ciência e falam do lugar cômodo de quem nunca terá de
lidar com a marginalidade da sala de aula da escola pública, defendem motes e
dogmas demagógicos. É pura hipocrisia a “proteção” de crianças e adolescentes.
O que querem é a garantia de verbas e votos dentro dos jogos de interesses
político-partidários. Estes, é claro, são incompatíveis com a ciência. As salas
superlotadas, os rankings das infames
avaliações externas, a “inclusão” social, tudo isso representa mais dinheiro. E
que se abram as porteiras do inferno, que na escola entrem todos e se danem os
bons alunos, que serão prejudicados por não poderem arcar com os custos de uma boa
escola particular.
É
muito clara a divisão social do trabalho, e a teoria da escola dualista (que,
pelo visto, na ânsia de falar de verbas e do Plano Nacional de Educação, o Sr.
Daniel Cara ignora) não me deixa mentir. Ora, se há uma distinção entre
perdedores e vencedores, então é melhor fazer com que a escola seja apenas um
direito, e não uma obrigação. Os estudos não são para todos, e a aprovação
automática é muito mais nociva do que a reprovação. Meu avô materno, por
exemplo, só estudou até um nível que corresponde a uma parte do que hoje é o
primeiro segmento do ensino fundamental, porém,
dentro da lógica que separa as classes sociais, conseguiu se arranjar
relativamente bem, tanto que foi funcionário de uma empresa estatal, a empresa
responsável pelos trens do estado do Rio. Teve de vender a força de trabalho desde
muito cedo. Não foi justo o que lhe foi imposto, mas o sistema, naquele tempo,
ao menos era declaradamente elitista, razão pela qual era muito mais fácil
criticá-lo; hoje, no entanto, é mais perverso e mais perigoso, pois assume
fumos convincentes de justiça e equidade.
Um
dos “fundamentos” da luta por igualdade, equidade e direitos infantojuvenis
(leia-se: luta por verbas públicas) é aquela interpretação reducionista segundo
a qual crianças e adolescentes teriam apenas direitos, ao passo que os adultos
teriam apenas deveres. Sujeitos de deveres acabam temendo sujeitos de direitos
(até porque as poucas punições e os poucos procedimentos disciplinares que
podem ser realizados em nome da apuração dos fatos, da verdade e da justiça,
que são valores coletivos que deveriam estar muito acima da proteção de apenas
um indivíduo, qualquer que seja a idade dele, são inviabilizados pelo conjunto
de práticas escolares. Tal conjunto de práticas é o currículo oculto, que
valoriza as salas superlotadas e as verbas). Não é por acaso que se criou uma
geração de preguiçosos imprestáveis, narcisistas, egocêntricos e egoístas.
Curiosamente, a idade adulta, do ponto de vista legal, começa aos dezoito anos;
assim, num dia, o indivíduo tem dezessete (dezoito anos incompletos); no dia
seguinte, o dia do 18º aniversário, não tem mais regalias. Que diferenças
ocorrem na maturação biológica do cérebro de um dia para o outro eu não sei.
Uma coisa eu digo: crianças e adolescentes são eternamente responsáveis pelos
próprios atos — e se a lei não concordar comigo, cogitarei de usar a
desobediência civil.
A
propósito da maturação biológica: o argumento imbecil de que o cérebro de adolescentes,
tratados que são como se fossem retardados, não é maduro (pelo menos não na
parte que corresponde ao medo e aos limites necessários ao uso do instinto de
sobrevivência) só pode se basear numa epistemologia falsa, tão falsa quanto a
que dizia que a mulher, em função do útero, não poderia exercer atividades
intelectuais e era suscetível à histeria. A “ciência” que afirmava isso se
baseava numa epistemologia falsa — e o que é falso deve ser atirado ao fogo.
Espero estar vivo para ver o dia em que a “ciência” moderna será desmascarada.
A ser verdade o argumento, a maturação biológica só é concluída quando o
indivíduo atinge os vinte e poucos anos. Se é isso mesmo, corremos o risco de
ver uma alteração nos Códigos Civil e Penal: poderá chegar o dia em que, em
nome da “ciência”, a maioridade começará aos vinte e quatro anos ou aos vinte e
sete.
Chama
atenção o fato de recorrerem a uma explicação biológica, e não cultural: Mesmo
que seja verdade o inacabamento da maturidade (ou maturação) cerebral dos
adolescentes, isso não seria desculpa para as decisões descabidas que têm sido
tomadas. A cultura, aliás, tem tirado deles os ritos de passagem, necessários
ao amadurecimento. Com efeito:
James Barrie [autor de Peter Pan] criou então um mito,
pois, ao falar primeiramente de si mesmo, ele falou de todos e deu forma a uma
obsessão geral. Seu grande mérito é ter percebido logo no começo do século XX
algo que iria se tornar cada vez mais verdadeiro, enorme e visível, até
obstruir todo o horizonte. Os novos Peter Pans que surgiram em grande número a
partir da década de 1980 estão em sintonia com uma sociedade que inventa o
conceito de “pós-adolescência”, como se tudo valesse para não ser adulto. O
historiador Philippe Ariès lembra que, contrariamente, na sociedade no Antigo
Regime não se conhecia o conceito de adolescência: a princesa casada aos 15
anos, o oficial de 18 anos comandando suas tropas são mulheres e homens
formados. Hoje, isso é difícil de imaginar. O que aconteceu com o Ocidente? O
que se tornaram seus adultos? (CANI, 2008, p. 20)
A
direita e a esquerda estão empenhadíssimas em fazer o jogo do capital: superprotegem
crianças e adolescentes em nome do id, da pulsão infantil, necessária que é à
sociedade de consumo. As leis, dizem, são uma conquista. Realmente, são uma
conquista — uma conquista do capital. A mercoescola acaba
sendo a Terra do Nunca. A superestrutura, no entanto, com suas leis, laudos e
receitas médicas para crianças “hiperativas”, não vai modificar a
infraestrutura e suas mazelas, não dessa forma. Só celebra esse tipo de coisa
quem não trabalha em escola pública, como os palestrantes da educação.
(Uma
das coisas que J. K. Rowling me ensinou numa das entrevistas que concedeu é o
fato de os modelos dos adolescentes reais serem os adolescentes falsos ou
inverossímeis da Nickelodeon. Posso
incluir os da Disney no balaio. É
essa geração que depois vai fazer ativismo.)
São
uma falsidade as conquistas e os supostos avanços nas leis em nome dos quais
enchem a boca. Há TRINTA ANOS existe o ECA, há TRINTA ANOS vemos as mazelas, há
TRINTA ANOS escutamos reclamações. Será que ninguém vai submeter o Estatuto da
Criança e do Adolescente a uma crítica séria? Será que não percebem que são
outros os tempos, e que portanto deve haver alterações? Obviamente seus
defensores não se abrem ao debate: são dogmáticos e intolerantes. Esperar que
sejam feitas mudanças sérias deve ser um sonho tão distante quanto a saída do
PSDB de São Paulo, estado que o partido governa há pelo menos três décadas. Um
plebiscito sobre o tema jamais veria a luz do dia: os ativistas de esquerda
levantariam todas as barreiras: sabem que, numa decisão democrática, o ECA
sofreria alterações.
No fundo, os ativistas
que defendem crianças e adolescentes alimentam um antigo mito: o de que a
próxima geração deve redimir a antecessora, como se apenas a potência juvenil
fosse capaz de fazer intervenções na Terra. Obviamente todos envelhecem; por
isso nada se resolve e tudo é passado para a geração seguinte, que nem uma
praga ou uma maldição de família.
3.
Os
feminismos
Estendo às feminazi
toda a minha compaixão: são como eu: não contam com amor, nem com afeto.
Portanto, elas e eu somos mal-amados ou não amados. Paciência. Isso, no
entanto, não tira a acidez de minha crítica: não vejo diferença entre as
feminazi e Damares. Tanto nas fileiras da direita quanto nas das esquerdas
estamos testemunhando a consolidação de pudicas, pessoas carolas eivadas de uma
repressão sexual e um puritanismo que não vemos desde a era vitoriana. Os
psicanalistas têm muitos objetos de estudo.
Não se sustenta a “tese” da objetificação do
corpo feminino: carece de critérios objetivos. No meu entendimento, o discurso
de muitas feministas é uma forma hipermoderna de puritanismo; por isso eu o
considero ideológico, e não científico. Ora, a ideologia é o pensamento das
classes dominantes, além de ser anticientífica. Não me surpreende que em tempos
de neoliberalismo e bolsonarismo tenhamos tanto “empoderamento” e mulheres que
dirigem Uber só para outras mulheres, sem décimo terceiro, sem férias
remuneradas e sem FGTS (o capital corrompeu os feminismos). Ironicamente, o
conceito científico de assédio é o legal: é a lei (que por definição é também
ideológica) que vai determinar, objetivamente, o que é assédio, o que é
importunação sexual, o que é estupro e o que é presunção de inocência, e não os
ativismos feministas, que estes, por sua vez, pregam o extremo oposto do que
diz Jorge de Sena (que citarei mais adiante). O princípio de presunção de
inocência, aliás, está sendo cada vez mais desprezado.
O que se vê não é o
corpo da mulher em si: o que se vê, nas praias e nas ruas (espaços públicos), é
a luz que no corpo delas bate. São donas do próprio corpo, porém não são donas
da luz. A
propósito desse efeito da luz: vale citar Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa (1986, p. 224):
PASSA
UMA BORBOLETA por diante de mim
E
pela primeira vez no Universo eu reparo
Que
as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim
como as flores não têm perfume nem cor.
A
cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No
movimento da borboleta o movimento é que se move,
O
perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A
borboleta é apenas borboleta
E
a flor é apenas flor.
Não se trata só do
corpo: trata-se, também, do prazer sexual, e desse prazer ninguém é dono, nem
os homens, nem as mulheres. Sem distanciamento e sem reflexão, os ativismos não
farão crítica à ideologia: apenas criarão outras ideologias, tentáculos do
capital. Não foi à toa que cem artistas francesas fizeram um manifesto contra o
puritanismo sexual.
A liberdade de transar bêbado,
por exemplo, já não existe, e o Estado, com uma nova moral mercantil, como
sempre, interfere na vida particular das pessoas em nome das ideologias.
Cito também Jorge de
Sena (2006, p. 250 apud ERTHAL, 2013,
p. 28):
Moralmente
falando, sou um homem casado e pai de nove filhos, que nunca teve vocação para
patriarca, e sempre foi a favor de a mais completa liberdade ser garantida a
todas as formas de amor e de contacto sexual. Nenhuma liberdade estará jamais
segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido, ou um grupo de
cidadãos hipersensíveis, possa ter o direito de governar a vida privada de
alguém.
Está
mais do que claro que os feminismos erraram a mão.
4.
Os
ativismos gay e trans
4.1.
O ativismo gay
Vejo
em tal ativismo a defesa de identidades úteis ao mercado. As passeatas gays são
momentos de esbórnia, de oba-oba, e não de reflexão. Quantas vezes, em tais
eventos, alguém segurou o microfone para ler em voz alta textos cujo tema fosse
a opressão que sofre a população LGBTQI+?
Falta articulação:
parte do movimento LGBT não caminha com outras lutas progressistas ou de
esquerda: A impressão que eu tenho é a de que a grande maioria se conforma com
a influência de telenovelas e com memes de “Félix, bicha má”. Também noto que
se reforçam os valores burgueses e condicionam a aceitação da homossexualidade
ao fato de poderem consumir e de serem bem-sucedidos os gays, e não ao valor
intrínseco da vida. Parece que não suspeitam da influência do neoliberalismo
econômico no movimento.
Quando têm de defender a causa, dão carteirada: falam em nome
da “ciência”. Isso é falar de mais alto, como diria o padre Antônio Vieira.
Essa, na verdade, é uma característica de qualquer ativismo.
4.2 Em defesa de J. K. Rowling: críticas
ao ativismo trans
Não quero apagar a
identidade de ninguém; da mesma forma, não quero que este desabafo seja um
gatilho de pensamentos suicidas. O que quero é dizer o seguinte: Virou modinha
a tática do “cancelamento”. Mas NINGUÉM (NINGUÉM!) pode “cancelar” J. K.
Rowling, que é muito inteligente e prestigiada. Infelizmente, está em xeque a
liberdade de expressão. Em grupos de Facebook
que supostamente são dedicados aos estudos, à reflexão e ao debate, eu também
já tinha sido, por assim dizer, cancelado. Pessoas que se dizem progressistas
ou de esquerda apresentam traços claramente fascistas sem que se deem conta de
seus mesquinhos atravessamentos ideológicos, que tentam mascarar com fumos
pífios de progressismo.
Se Rowling tivesse
conseguido chegar a um meio-termo, a uma tese que agradasse a todos, ela a
apresentaria fundamentada de público, porém, na visão dela, apagar o sexo
biológico como único fator de identidade de gênero é apagar a feminilidade; por
isso e por outros motivos se sente ameaçada. Acho que tem razão, e não quer
ofender ninguém nem gerar gatilhos psicológicos para o suicídio de pessoas
trans: não quer ferir ninguém: apenas sustenta a mesma tese sustentada por pessoas
de esquerda. No seu ensaio, J. K. Rowling lembra que o feminismo (e acho que se
referiu ao feminismo de esquerda) abraça os homens trans porque, biologicamente
ou de nascença, são mulheres.
Tenho certeza de que,
se houvesse um caminho que a levasse a um consenso no que concerne à disforia
de gênero, ela o teria trilhado de bom grado. Acho que ela gostaria de dizer: “Ativistas,
vocês estão certos, no entanto, por favor, lembrem que o sexo TAMBÉM é um dos
fatores de identidade de gênero, conquanto tal identidade seja determinada por
outros fatores; e procurem lutar por mais e mais pesquisas sobre disforia, pois
há quem tenha se arrependido da cirurgia de mudança de sexo; ah, e identidade
não depende só de fatores genéticos: o meio de criação também conta”. Se ela,
que é claramente progressista ou de esquerda, não reconhece o que afirmam os
ativistas e acha que só o sexo determina o gênero aos olhos da sociedade, então
algum pano para manga ela tem.
O curioso é que ela é
mulher tanto do ponto de vista do sexo quanto do ponto de vista da identidade
de gênero, mas mesmo assim dois homens (dois homens cis) refutaram o que ela
disse e foi “cancelada”.
Existem tantas pessoas
trans agredidas devido à condição delas, que acabaram criando um forte
mecanismo de defesa, a exemplo de ativismos de gays e lésbicas: passaram a
enquadrar qualquer discurso contrário ao delas no conceito de fobia. Acho que
estão errando a mão, o que eu consigo entender: afinal, muitas pessoas trans
são rejeitadas só por serem trans. Contudo, é injusto o que fazem contra a
autora dos livros de Harry Potter, que, aliás, já é rica
(riquíssima) e muito famosa; portanto, como eu já disse, é impossível “cancelá”-la.
Eu não gosto do modo como ela encara a caridade (que deve proporcionar um bom
abatimento no imposto de renda), mas nem por isso a “cancelei”. Se bem que ela
ainda paga muitos impostos. Seja como for, o mundo não precisa de caridade,
conforme Isabel Allende, mas sim de justiça.
Acho que Rowling erra a
mão quando critica a pornografia, porém é essa a convicção dela e não vejo
motivo para boicotar o que ela diz.
Viva J. K. Rowling!
Viva o direito de discordar!
Certa vez, li o texto
de uma pessoa trans. Criticava Rowling. Segundo o texto, a autora britânica se
fia a uma noção biologizante de mulher. Isso sugere que, ao contrário do que
diz a turminha da lacração e da carteirada, a Biologia ainda dá razão a
Rowling.
De acordo com outra
pessoa, que me bloqueou (ou seja: que me “cancelou”), existe uma corrente
antropológica que discorda do binarismo sexual. A causa do bloqueio foi o fato
de eu ter dito que, certa vez, graças ao ADN (DNA), foi descoberto que um
assassino em série era do sexo masculino: o criminoso deixara vestígios. Se não
é binário o sexo, então como foi possível a descoberta? O que não é binário,
pelo visto, é a identidade de gênero. Esta não deveria ser confundida com o
sexo, que é biológico. O curioso é que a pessoa, além de não ter enunciado
corretamente a corrente da Antropologia que diz que sexo não é binário, não
soube resumir o que ela postula nem demonstrar com o exemplo. Um
dos argumentos de quem me bloqueou é o de que a dicotomia XX/XY é ultrapassada,
além de ser usada pela ala bolsonarista evangélica. Esqueceu (ou fingiu
esquecer) que mesmo no PSOL há, de modo estrutural, quem não aceite o que
postulam os ativistas da causa trans: Eu mesmo conheci uma militante do PSOL
que se recusava a aceitar que “mulher” trans fosse mulher, e aposto que ainda
hoje se recusa. A minha suspeita é que as descobertas sobre mutações,
peculiaridades ou idiossincrasias de seres humanos com mais de um Y ou mais de
um X (e esse deve ser o caso dos hermafroditas) estão sendo interpretadas ao
bel-prazer de ativistas, que usam a “ciência” nas suas carteiradas. Obviamente
partidos ganham capital político com a causa trans tanto quanto clínicas de
cirurgia de mudança de sexo. Nesse caso, a ciência deixa de ser ciência na
medida em que é subservientemente útil ao capital.
Sei que a discussão
perde o sentido quando os interlocutores partem de premissas ou de referenciais
diferentes uns dos outros ou até opostos uns aos outros. Mas, no nosso caso, a
pessoa podia ter tido a paciência de me ensinar. É como se me considerasse um
parvo indigno de explicação, como se ele não devesse se rebaixar.
De qualquer forma, não
vejo ciência: vejo tão só um ativismo. Se opinião não é ciência, ativismo
também não é.
CONCLUSÕES
Aí estão as
provas cabais da burrice das esquerdas, cada dia mais incapazes de um gesto de
união. Sua inépcia em coletar dados, estudar, explicar e demonstrar pelo
exemplo é evidenciada pelos insultos, pelas agressões e pela tática covarde do
cancelamento. Como não sabem dizer por
que defendem o que defendem, boicotam, sob o infame signo da carteirada,
que é um tipo de violência simbólica, os que contestam este ou aquele ativismo.
Isso, é claro, é muito grave: os que deveriam ser os guardiões da liberdade de
pensamento, da liberdade de expressão, agora destroem a liberdade de discordar.
Acho que nunca se viu uma geração de adolescentes e jovens adultos tão
farisaica quanto a deste início de século: poucas vezes na história pessoas
jovens devem ter lutado por proibições, punições, vigilância, censura e
boicote. Dificilmente eu vou achar um militante de esquerda que não seja a
favor do que eu acabei de enumerar.
A cultura do cancelamento só não demonstra
mais infantilidade do que as carteiradas, que, como diria o padre Antônio
Vieira, são o falar de mais alto, o gesto favorito de quem, nos debates, por
falta de argumentos, eleva o tom de voz. (Esse é um dos motivos por que não
gosto da dialética freiriana: o aluno, que está obrigatória e inevitavelmente
abaixo do professor, tem pouco conteúdo; em consequência disso, nos debates em
aula, prevalece o senso comum e ganha quem fala mais alto. Na didática tradicional,
ao contrário, prevalece, graças à maiêutica, a voz de quem pode criar as
possibilidades de construção de conhecimentos que os alunos jamais imaginariam.)
A carteirada é o gesto de quem está muito certo das próprias certezas e, por
isso, não questiona os próprios paradigmas nem a epistemologia do saber de que
se considera porta-voz prestigiado.
Em tal perspectiva, é uma heresia
não ter “ideologia”, isto é: é odioso não assumir a própria bandeira. Pior
ainda, na visão dos militantes de smartphone,
é dizer que é preciso ser neutro, porque lhes é impossível a neutralidade ou um
princípio de neutralidade, e é justamente por causa dessa confusão, uma mistura
doida de alhos com bugalhos, que esquecem o compromisso com a objetividade, com
a isenção de ânimo, e se declaram porta-vozes desta ou daquela “ideologia”,
entendida também como conjunto de ideias ou ideais. Essa última definição
qualquer pasteleiro poderia enunciar. A esquerda, que menospreza quem não tem
os referenciais que ela supostamente tem, acaba aceitando os conceitos mais
vulgares de ideologia, quando deveria se guiar pelos conceitos eruditos, que
foram mencionados, explicados e relativamente bem exemplificados neste escrito.
Isso seria equivalente à tão alardeada atualização, de que os cientistas das
humanidades supostamente são capazes quando produzem artigos acadêmicos.
O papel da verdadeira ciência é o
de desmascarar a ideologia; portanto, não pode ser ideológica. Temos de ser tão
sábios quanto os formalistas russos; para isso, devemos abandonar conceitos de
fantasmas (refiro-me a Paulo Freire e Bakhtin). Em outras palavras: devemos
desfazer o engano segundo o qual a ciência é ideologia, ou seja: é preciso
separar aquela desta, assim como os formalistas retiraram os Estudos Literários
das influências ideológicas e políticas da Historiografia do seu tempo. No caso
da nossa era, a primeira coisa que um bolsonarista dirá é que fazemos
ideologia, embora eu, por exemplo, esteja me esforçando justamente para
desmascará-la. É com o prestígio científico que venceremos a guerra, e não com
a “assunção” de que temos “ideologia” e lutamos pela inclusão, como se fôssemos
anjos e santos.
Outra evidência do engano ledo e
cego dos militantes universitários está em que ignoram que o intelectual não
pode estar preso a cangas nem pode transferir aos seus interlocutores a visão
social de mundo por ele enunciada. Isso equivale a dizer que não pode nem deve
ter compromisso com o sectarismo de um partido; da mesma forma, deve
conscientizar-se de que é incompatível com
o poder a função do intelectual. Não posso, é claro, criticar tão só a
juventude militante: lentes de quarenta anos ou mais caem nos conceitos
vulgares de ideologia e em outros erros. Numa reunião organizada por estudantes
de um diretório, eu mesmo já refutei o dizer infeliz de um professor
universitário. De acordo com o dito dele, a esquerda deveria dar consciência de
classe ao povo. Ora, a consciência não pode ser doada! É intransferível tanto
quanto o próprio conhecimento!
Apoiar um partido que lute pela
coalizão e pela justiça social é uma coisa; calar-se diante de seus erros, como
se fosse religião, é outra, diametralmente oposta. Marilena Chauí, por exemplo,
já fez críticas negativas ao PT. Ela também refutava visceralmente um dos
maiores orgulhos do partido: o surgimento de uma “nova” classe média. Para ela,
não existe essa tal, e por isso discorda do Partido dos Trabalhadores, que se
gabara do surgimento da “nova” classe média. O que houve foi um crescimento dos
direitos econômicos da classe trabalhadora. Pelo que entendi, considera absurda
a ideia de uma nova classe média: os direitos econômicos não podem ser uma
exclusividade da classe média.
Que
estejamos sendo derrotados com a regularidade do sol deve-se muito, muito,
muito mais aos erros das esquerdas do que aos êxitos da direita. Perdemos muito
tempo atacando a imagem de um indivíduo, quando deveríamos enunciar, explicar e
exemplificar os benefícios da intervenção estatal na economia e a importância
do salário indireto em forma de imposto, capaz de garantir o espaço público e
os direitos sociais e políticos, tais como saúde pública e escolas públicas. Quando
dissemos que é necessária uma justa (e ainda inexistente) distribuição de
renda, que só é possível no Estado do Bem-Estar Social, não estamos fazendo
ideologia, mas sim enunciando uma verdade científica, fundamentada que é em
fatos e métodos objetivos. Esse estado de coisas não só é possível, como também
é factível: já vigorou na Europa (e ainda vigora em países europeus, apesar da
assustadora ascensão da extrema direita por lá). Se muitos inocentes úteis soubessem
o que realmente é a Social Democracia, não teriam votado em Bolsonaro. Bastaria
listar cada um dos atributos dela e cada um dos atributos do neoliberalismo sem
dar nome aos bois e sem dar nome a partidos nem a personalidades
político-partidárias: o Estado do Bem-Estar Social ganharia de lavada em
qualquer pesquisa.
Mesmo
se não fosse factível (isto é: mesmo se não houvesse experiências prévias
bem-sucedidas), tratar-se-ia de uma utopia, e não de uma ideologia. E a utopia
é viável, conforme o dizer de Michael Löwy (1987, p. 12):
O pensamento
utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações sociais, o que
lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo
explosivo. O sentido estreito e pejorativo do termo (utopia: sonho imaginário
irrealizável) nos parece inoperante, uma vez que apenas o futuro permite que se
saiba qual aspiração era ou não “irrealizável”.
Se separarmos de vez a
ciência da ideologia, admitiremos que uma é inimiga da outra, garantiremos que reconheçam
que nossa luta por justiça é fundamentada em dados, e não em “ideologia”,
garantiremos prestígio à luta e recuperaremos a chance de desmascarar os
despautérios de tal forma, que contra eles poderá se revoltar a população.
Teremos de seguir o exemplo dos formalistas russos. Se as cavalgaduras que
lotam os campi não puderem fazer
isso, talvez os pasteleiros possam: estes devem ser humildes, enquanto aquelas
não, e a humildade permite que o estudante se abra para o conhecimento e
questione seus pressupostos.
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