sábado, 15 de maio de 2021

Nós, a esquerda, estamos ficando cada vez mais burros

 

Nós, a esquerda, estamos ficando cada vez mais burros[1]

 

Márcio Alessandro de Oliveira[2]

 

“O que estraga o Brasil, menino, não é a cachaça nem a saúva: o que estraga o Brasil, menino, é a burrice.”

                                                                                                                                                             (Lima Barreto)

 

INTRODUÇÃO      

 

Certa vez, ensinou um professor que os formalistas russos, responsáveis por um dos mais importantes paradigmas científicos dos Estudos Literários,[3] diminuíram o valor das influências históricas na Literatura: embora parte dos formalistas estivesse envolvida com o movimento bolchevista, é possível dizer que eles considerariam o stalinismo, por exemplo, um mero pretexto para a alegoria de A revolução dos bichos (romance que é de 1945 e, portanto, posterior à Revolução Russa), como se o momento histórico fosse um fator secundário na produção de um romance ou de um poema. Foram sábios: a historiografia estava nas mãos da direita e da visão imperialista de mundo, visão segundo a qual era necessário subjugar territórios em nome do “progresso” e da civilização, então era arrazoado que se concentrassem na forma de escrever, isto é: nos procedimentos estéticos e nas técnicas narrativas (cf. EAGLETON, 2006, p. 5). Hoje, passado praticamente um século, tudo indica que houve um retrocesso, porque as esquerdas, divididas e cegas como estão, têm seguido o caminho oposto na medida em que demonstram o contrário da sensatez dos formalistas. Com efeito: elas adotam os conceitos vulgares de ideologia, como Mikhail Bakhtin, Paulo Freire e um divulgador contemporâneo da Linguística. Isso fica evidente no modo como definem a ideologia e a ciência, nos postulados “científico”-pedagógicos, nos feminismos, no ativismo gay e no ativismo trans.

 

1.      O modo leviano como definem o termo ideologia e encaram a ciência

 

            É nula a diferença entre o que as juventudes esquerdistas entendem por ideologia e o que por ela entende um pasteleiro (com todo o respeito aos pasteleiros). Parece que, desde que o Ocidente passou a fazer traduções das versões francesas dos livros do Sr. Bakhtin, virou modinha um “conceito” de ideologia segundo o qual ela é o mesmo que não-neutralidade. A neutralidade, para Paulo Freire, é impossível, de modo que toda prática educativa seria de cunho ideológico. Nesse viés estúpido, a única diferença seria o efeito social da escola: ou a educação é inclusiva, ou é excludente. Os livros de Freire já completaram pelo menos uns cinquenta anos. Ora, se de dez em dez anos (intervalo que o Plano Nacional de Educação e a Base Nacional Comum Curricular aguardam antes da sua próxima renovação ou atualização) é necessário rever referências bibliográficas em nome de uma atualização fundamentada num exame que busque a garantia de paradigmas científicos e epistemologias confiáveis, com pressupostos teóricos seguros, por que as esquerdas, que adotam o “conceito” mais vulgar e leviano de ideologia — que é vista como sendo uma parcialidade inevitável de um conjunto de causas e potenciais intervenções sociopolíticas —, continuam se prendendo a fantasmas de múmias velhas decrépitas? Por que elas — em cujas fileiras encontramos acadêmicos brasileiros de Letras que não sabem russo e odeiam incondicionalmente qualquer trabalho de tradução, encarada como uma traição, embora, é claro, não deixem de adotar os postulados de Bakhtin — continuam se prendendo à ideia de que, no campo da ciência e em todos os outros, é inevitável ter ideologia? Eu mesmo li numa entrevista a afirmação estarrecedora de um linguista contemporâneo: nela, fica claro que o cientista tem de ter ideologia. Tal convicção, porém, não se sustenta, pois não contém substância nenhuma. Quando querem impor esta ou aquela afirmação, esta ou aquela crença, dão carteirada: dizem que é a ciência que diz isso ou aquilo, como se fosse inquestionável. Com isso dão um tiro no próprio pé. Ora, a ciência também já disse que a mulher não poderia exercer atividades intelectuais, e seu “esteio” era o útero, ligado à histeria; também já foi racista. Se não fosse possível separar a ciência da ideologia, não haveria conhecimentos dignos de confiança. A função do pesquisador intelectualmente honesto é justamente a de desmascarar a ideologia — daí a certeza de que é rematada tolice dizer que o cientista deve ter ideologia, como se fosse uma obrigação ética.

Afinal, que é ideologia? Que responda a maravilhosa filósofa Marilena Chauí, a filósofa dos filósofos:

 

não é apenas a representação imaginária do real para servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes, como não é apenas a inversão imaginária do processo histórico na qual as ideias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante (CHAUÍ, 1997, p. 3).

 

 

Diante do exposto, fica claro que é uma falácia o conceito bakhtiniano de ideologia, que, pelo visto, é idêntico ao conceito de São Paulo Freire (o “sagrado” e cultuado “educador” que nem formado em Pedagogia ou em outro curso de licenciatura era). Infelizmente, até Umberto Eco cai nessa balela. “Com frequência”, diz ele (2007, p. 22-3), “para ser verdadeiramente ‘científico’, não convém querer ser mais ‘científico’ do que o exigido pela situação. Nas ciências humanas, incorre-se frequentemente numa falácia [...] que consiste em considerar o próprio discurso imune à ideologia”. Umberto Eco está se referindo ao discurso científico. Pobre coitado: não se pode esperar nada diferente disso, nem oposto a isso, de um indivíduo que considerava toda tradução uma prótese, uma cópia qualquer. (Resta saber se esse escrúpulo antitradução impediu que ele recebesse a sua parte do dinheiro obtido com a venda das várias traduções do romance Il nome della rosa.) Falácia é o que ele diz, porque a imunidade do discurso à ideologia não só é possível, como também factível. Ser parcial não é ser ideológico — e o erro dos intelectuais homens até agora citados é justamente o de misturar alhos com bugalhos: confundem ideologia com não-neutralidade.

O cientista precisa de isenção de ânimo para analisar com objetividade e clareza. Se essas tais não existissem, como talvez nos leve a crer Umberto Eco (que, aliás, pode ter namorado uma tradutora infiel ao namorado, motivo por que teria raiva do ofício liberal de tradução literária), então não haveria conhecimento exato, nem tampouco conhecimento digno de confiança nas ciências naturais — nem nas humanas. Por que e para que se fazem pesquisas? Por que e para que se desenvolvem métodos? Se é tudo uma questão de tomar partido, de ter lado, de não ser neutro num debate (ou, para usar o pedantismo que é tão do gosto dos acadêmicos metidos a bestas, na dialética), não seria necessário desenvolver pesquisas, nem levantar hipóteses, nem fundamentar teses: bastaria dizer o que dizem os apedeutas: “É minha opinião”. Ironicamente, jovenzinhos universitários adoram dizer: “Opinião não é ciência”. Ora, as opiniões são subjetivas e impressionistas: não exigem investigação nem apuração dos dados; já as teses, estas são de caráter objetivo por serem amparadas por argumentos, frutos de dados apurados e reflexões. O cientista pode tomar partido, mas precisa ter isenção de ânimo para, conforme for analisando os dados que surgirem, mudar de lado, se necessário for. E sua função é imune à ideologia, sim, pois que a ele cabe a difícil tarefa de derrubar mitos, desconstruir afirmações e desnudar as ideologias (que são as manifestações mais imediatas da ideologia, que esta é silenciosa e, portanto, não pode ser conhecida em sua totalidade). É quase impossível fazer isso, porquanto o pensamento ideológico ganhe convincentes fumos ou aparências de progressismo misturados com ares de ciência, razão pela qual é muito mais perigoso do que supomos. Quando uma mentira é declaradamente uma mentira, torna-se fácil (ou muito mais fácil) agir contra ela; quando, porém, creem que é verdade, contra ela muito dificilmente alguém se revolta. “A classe dominante, para dominar”, diz Jean-Claude Bernadert (2006, p. 20), “não pode nunca apresentar a sua ideologia como a SUA ideologia, mas ela deve lutar para que essa ideologia seja sempre entendida como a verdade.”

Quando ativistas gays, por exemplo, defendem o núcleo familiar baseado no casal de união homoafetiva, não estão fazendo ideologia de gênero, pelo menos não obrigatoriamente: estão mostrando que o modelo heteronormativo de núcleo familiar e os demais modelos podem coexistir. Deslizar ou deslocar o sentido de casamento gay para o de destruição da família tradicional, como se esta fosse a única verdadeiramente válida, é que é fazer ideologia, uma vez que ideologia é o pensamento burguês, que sempre se baseou na heterossexualidade. Por outro lado, com distanciamento, desprendimento e objetividade, o cientista da linguagem verbal pode apontar o fato de que a adoção de crianças por parte de casais gays tenta imitar o modelo burguês, viés imitativo em que os ativistas estariam, sim, fazendo ideologia. (Além disso, restam algumas dúvidas: Como iriam se sentir as crianças criadas por casais gays? Comparar-se-iam aos amigos e colegas cujos pais são heterossexuais, certo? Isso destruiria a autoestima de crianças adotadas? Quem não tem fumo não faz trato com cachimbo, e o homem tem três inimigos: a pátria, a família e a igreja, então só tem interesse em adoção quem tem renda equivalente à renda de uma família de classe média, cujo ethos pequeno-burguês sempre se manifesta. Tais casais querem crianças iguais às das propagandas? Querem formar uma família de comercial de margarina? O que aconteceria com o filho adotado em caso de separação?) Defender um mundo igual ao do romance Admirável Mundo Novo, em que há ateísmo e não existem nem famílias, nem pais, nem mães, seria mil vezes mais contraideológico.

A ciência, aliás, é anti-ideológica por excelência: a ideologia é a mentira, é um conhecimento falso, enganoso, ao passo que a ciência é verdadeira e confiável. Obviamente, para não fazer ideologia, como faziam os “cientistas” racistas e misóginos do século XIX, o cientista, além de não ter ideologia, deve questionar os paradigmas, a epistemologia e os pressupostos da ciência que produz ou divulga. E é aqui que vou concordar com Umberto Eco (2007, p. 4): “Se algo não pode ser usado para mentir, então não pode ser usado para dizer nada”. Vale lembrar que “produzir ‘convencimento’ é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e [outros] religiosos do passado” (SOUZA, 2018, p. 12). Com efeito: “não existe ordem social moderna sem uma legitimação pretensamente científica desta mesma ordem” (idem, ibidem, p. 18). A falsa ciência, que não passa de ideologia, legitima as injustiças sociais. Cabe à verdadeira ciência desmascarar as mentiras difundidas por formadores de opinião desonestos (que são o que Gramsci chamava de intelectuais orgânicos). A desonestidade é mascarada pelo prestígio conferido pelo diploma ou pelo carisma (como o que hoje tem o youtuber); assim, o especialista, ao ser entrevistado pelo jornalista, que também tem prestígio, usa a função conativa ou apelativa da linguagem, e não apenas a função informativa, de que fala Roman Jakobson.

Entretanto, a falsa ciência jamais fará isto: jamais se denunciará: A ideologia é silenciosa, como ensina Marilena Chauí: silencia o fato de que é ideologia, porque, se disser o que realmente é, não poderá exercer a dominação nem legitimar as injustiças sociais. A mais gritante delas é a gigantesca concentração de renda do 1% mais rico da população brasileira.

Em tese, caberia aos analistas do discurso (os de linha francesa, muitos dos quais adoram mencionar Michel Foucault, em nome do qual enchem a boca, embora, aparentemente, nunca mencionem Michel Pêcheux (1938-1983)) revelar como e por que certos textos de caráter “científico” apenas são ideológicos. Estão muito ocupados em avaliar o discurso de jornalistas e o modo como reproduzem o senso comum, então não percebem os próprios atravessamentos ideológicos. Na verdade, isso vale para todos os estudiosos das Ciências Humanas: ocupam-se em avaliar o discurso alheio e em registrar a avaliação em outro discurso (que, inevitavelmente, por definição, é um metadiscurso), porém não avaliam o próprio vocabulário: examinam o modo como os jornais chamam os bandidos de classe média de jovens; examinam o modo como encaram o feminicídio, e no entanto não deve ser difícil testemunhar tais analistas usarem, no dia a dia, a expressão mercado de trabalho no lugar do sintagma mundo do trabalho; falarem em salário, mas não em diminuição dos efeitos danosos da mais-valia; em jovens carentes, mas não em jovens espoliados. Examinam temas polêmicos e lugares-comuns que, aparentemente, desafiam o senso comum, conquanto já tenham sido cooptados pelo capital. Um exemplo é a causa gay. O Uber destinado exclusivamente a mulheres, por outro lado, a menos que eu esteja me enganando, continua intacto nas análises de discurso: apaga o fato de que as mulheres motoristas são subproletarizadas, sem FGTS e sem 13º: destaca-se tão só o “empoderamento” feminino, tão do gosto das grandes companhias privadas. Em linguagem chula: tais analistas, a julgar pelo que vejo nas divulgações de artiguelhos publicados em periódicos que confirmam o que, no dizer de Marilena Chauí, é a universidade operacional, não olham para o próprio rabo.

Se interpretamos compulsoriamente e por filiação a esta ou àquela corrente de pensamento ou formação discursiva (que pode ser contra a ideologia ou a favor dela, sendo que toda ideologia é uma formação discursiva, embora nem toda formação discursiva seja ideológica), então cabe ao analista, que trabalha fazendo recortes nos textos, dizer como e por que o emissor e o receptor, inconscientemente, escolhem determinadas palavras e atribuem determinados sentidos ao texto no lugar de outros. (Obviamente, tudo isso só pode ser feito dentro da História, já que, a menos que haja a transcendência, nada disso pode ser feito fora dela, o que equivale a dizer que os sentidos produzidos por quem interpreta símbolos têm que ver com a imanência, isto é: com o aqui e com o agora.) O não-dito condiciona o que é dito:[4] Nunca é neutra a escolha de palavras, e só parte do dizer é dizível. E não poderia ser diferente nem o contrário do que é, pois que todo discurso, por definição, é a prática simbólica que permite a produção e a circulação de sentidos, ou seja: é o uso de símbolos (que podem ser palavras) que, na interação verbal, produzem efeito ou efeitos (sentido ou sentidos). Ocorre, porém, que não ser neutro não é o mesmo que ser ideológico: a não-neutralidade do cientista consiste justamente em fazer oposição à ideologia ou, pelo menos, em submeter a ideologia a uma avaliação. Além disso, a memória humana, diferentemente (ou até ao contrário) da memória registrada em arquivos e outros bancos de dados, é falha, de modo que, no imediatismo da interação verbal, permite inferências, criatividade e até mal-entendidos.

Pergunto: uma vez que a ideologia é silenciosa e consegue manipular discretamente as formações discursivas que deveriam criticá-la, tais analistas do discurso têm conseguido identificar, de modo bem-sucedido, as evidências de que discursos de esquerda têm sido colonizados pelas ideias de direita? Têm percebido, por exemplo, o fato de que esquerdistas criticam o Estado e os Aparelhos Ideológicos de Estado sem que critiquem primeiro as ideias liberais que fazem de tais aparelhos os Aparelhos Ideológicos do Mercado? Que pensam tais esquerdistas da ausência de Estado? (que não deveria nunca, JAMAIS, JAMAIS MESMO, ser confundida com Estado mínimo). Estão filiados ao fantasma de Bakunin? Que sabem eles da Colônia Cecília? Que jornais e revistas favoreçam o senso comum com sua escolha de palavras, coisa é que não admira nem consterna: estão sendo coerentes (se bem que, no plano intencional, e não no plano do inconsciente, pode ser que muitos redatores se julguem progressistas, ainda que seus atos falhos, para usar um termo de Freud, revelem o contrário). Agora: que nós não façamos o dever de casa é de estarrecer.

O papel da direita é exatamente o de ser o que é, de modo que o que tinha de ser analisado para derrubar a pretensa neutralidade da mídia já foi estudado e divulgado; portanto, tudo isso já é lugar-comum. O que realmente interessa é o modo como a esquerda é colonizada pela direita; da mesma forma, cabe à esquerda a tarefa de ser suficientemente inteligente para, sem vaidade, fazer uma frequente autoavaliação. Infelizmente, os “analistas” e outros estudiosos da Linguística e das outras Humanidades estão preocupados em falar e escrever “todos e todas” num ativismo linguístico inútil e irritante, como se por meio de desnecessárias desinências de gênero pudessem fazer intervenção milagrosa e simples num problema complexo.[5] (Muitos “feministos” ou esquerdomachos adoram a suposta feminização da linguagem.) Quantas vezes por dia tais “cientistas” da linguagem verbal, apegados à lógica capitalista de produção de artiguelhos acadêmicos (como se a universidade pública fosse uma organização privada, com linha de montagem e tudo), no próprio cotidiano, usam as expressões Social Democracia, economia em vez de mercado, Estado do Bem-Estar Social e neoliberalismo econômico? Quantas vezes por dia verificam se os jornais e os periódicos acadêmicos inserem tais termos em suas páginas? A julgar pelo ativismo que os “cientistas” da linguagem fazem, eu diria que desconhecem tais conceitos: empregam neologismos estrambóticos quando querem enunciar as causas das minorias LBTQI+ e falam de Bolsonaro com a regularidade do sol nas redes sociais, porém não falam de neoliberalismo econômico; dessa forma, fazem um culto personalista às avessas na medida em que se concentram na imagem de um indivíduo, quando deveriam, como intelectuais sérios que deveriam ser, apontar a ideologia neoliberal, da qual Bolsonaro é apenas um representante, um capitão do mato, um símbolo. Estão fazendo os minutos de ódio, do romance 1984, de George Orwell. Preocupam-se em divulgar o bolsonarismo; nunca falam das causas econômicas da esquerda.

Não é de surpreender: o solzinho não quer saber dessas tais: quer apenas capital político do nicho que lhe cabe nas disputas eleitoreiras. Não se pode esperar outra coisa de um partido que apoiou a tentativa de golpe de 2013; da mesma forma, não surpreende que estejamos sendo esmagados pela direita. Não é por acaso que o solzinho é a “esquerda” que a direita adora. A propósito: se entendesse que a esmagadora maioria dos eleitores desvia o sentido de direitos dos gays para o sentido de aberrações, veria que, num país em que corre esgoto a céu aberto em consequência de várias deficiências infraestruturais, não podemos nos dar ao luxo de perder votos em nome de causas que dizem respeito à vida privada de certos grupos. Todavia, a ordem vem de cima, então, os sectaristas, que, por definição, participam de uma seita, acatam cegamente as ordens e reagem sistematicamente a quem a eles se opõe, por isso são reacionários.

E vivam os “multiletramentos” e os gêneros textuais![6] Viva a “educação” linguística “crítica” e “plural”, ditada por pesquisadores que pregam mudanças curriculares, ainda que nunca tenham lecionado no chão da sala de aula de ensino básico, motivo por que não têm a empiria, indispensável ao trabalho do cientista. (Só psicólogos podem formar outros psicólogos; só médicos podem formar outros médicos — mas gente que nunca lecionou na educação básica pode formar professores para os ensinos fundamental e médio. Essa mesma gente faz questão de manter as disciplinas pedagógicas nas licenciaturas. Supõe-se que tais disciplinas separam as licenciaturas dos bacharelados. Isso, é claro, em nome da “ciência”. Que se despreze o fato de que a classe média manda os filhos para os bacharelados, como a Medicina e o Direito, enquanto pobres vão para as licenciaturas. Essa é a divisão social do trabalho.) O importante mesmo é manter o Lattes em dia, ainda que Machado de Assis e Fernando Pessoa não o tivessem. Os rios correm, bem ou mal, sem o Lattes, e eu prefiro mil vezes ter a liberdade e a estabilidade proporcionada pelo salário do ensino básico a ter de me sujeitar a bolsas e ao ofício de pesquisador, que não proporcionam férias remuneradas nem 13º salário.

É triste saber que tais “analistas” se perdem na própria torre de marfim. Parece que não admitem que a ciência da linguagem verbal deveria ser de caráter utilitarista no sentido de que deveria ser útil à evolução e à felicidade dos leigos, cujos impostos financiam-na sem que haja um retorno à altura. Em que a Análise do Discurso de linha francesa tem contribuído para o entendimento mútuo, para a paz e para a felicidade das pessoas? Vejamos um exemplo:

A classe média conservadora é seduzida pelos totalitarismos (com exceção do stalinismo, que ela confunde com o socialismo e com uma fase avançada deste último, uma fase que nunca chegou a se concretizar: o comunismo). É seduzida pelos despotismos. Quando lê ou escuta a expressão direitos humanos, desliza o sentido de tal expressão para o sentido de defesa de bandidos. Que fazemos nós, a esquerda? Ora, crucificamos sem dó os integrantes da classe média pequeno-burguesa, cujos referenciais são diferentes dos nossos ou até opostos aos nossos pontos de referência. Em verdade, eles carecem de referenciais decentes, uma vez que só sabem o que os veículos de comunicação de massa lhes dizem. Nesse caso, a classe média conservadora é vítima da violência de tais veículos — vítima, e não o algoz. Ora, se os analistas de discursos — muitos dos quais compõem o estrato da classe média brasileira, razão pela qual temem os assaltantes, os farrapos humanos e o latrocínio tanto quanto os coxinhas a quem criticam — entendem mesmo do riscado, então devem saber que o efeito que a expressão direitos humanos causa na classe média conservadora é, por definição, um produto ou efeito da interação verbal. Tais analistas também têm de saber que essa interpretação da classe média de direita está condicionada à sua filiação ideológica, que é inconsciente, pois que somos atravessados pelas ideologias sem que nos demos conta. Os mesmos analistas devem saber que a formação do sujeito é histórica, e é exatamente por isso que não estamos mais na forma-sujeito religiosa, predominante na Europa medieval: estamos, como sabem (ou como deveriam saber) os analistas, na forma-sujeito jurídica, fundamentada no conceito moderno de cidadania e na diferença entre os direitos e os deveres do cidadão. Este, por sua vez, não é como o servo ou o vassalo, tampouco é igual ao escravizado grego da Antiguidade. É muito fácil concluir que a classe média conservadora e o zé-povinho conservador, ao contrário de suas respectivas contrapartes (as frações progressistas que correspondem a cada uma das duas camadas sociais), não odeiam os direitos humanos: o que odeiam é a impunidade, e o que temem é a morte.

Como não existe em si a Análise do Discurso (doravante A. D.), mas sim analistas, que são seres de carne e osso, e não anjos e santos, cabe a cada um deles a tarefa de estabelecer e divulgar a distinção que acabei de fazer. Ela pode fazer que as classes sociais revejam sua visão social de mundo e, por conseguinte, passem a lutar por um estado de coisas em que seja inexistente o conjunto de circunstâncias que geram o medo e o mal-estar sociais. Isso, contudo, exige isenção de ânimo, desprendimento e distanciamento, atributos que não podemos inserir no Lattes. Para o nosso azar, insistem em dizer que tudo é ideológico, quando, na verdade, a função dos cientistas da linguagem verbal é um dever ético que também cabe aos literatos: o de desmascarar ou desnudar as ideologias. Se tudo fosse mesmo ideológico, não haveria meios de resistir à dominação da ideologia, cujo silêncio gera inquietações; afinal, ela não explica de modo satisfatório os despautérios gerados pelas injustiças sociais. Não estou querendo dizer que a A. D., como integrante que é da superestrutura (formada pelas artes, pelas leis, pelas ciências e pela cultura), possa, sozinha, modificar a infraestrutura (formada pelo saneamento, pela distribuição de água e energia elétrica, pelas moradias, pelos transportes e pelos bens e serviços); também sei que ela, sozinha, não fará o milagre de tornar esclarecidos os segmentos sociais mencionados; todavia, algum poder de intervenção na infraestrutura ela há de ter. Se modificada, a infraestrutura poderá deixar de oferecer a espoliação que gera os temores das classes médias conservadoras de tal forma, que poderão atribuir outro sentido à expressão direitos humanos. Afinal, como diz Eni Orlandi, o sentido sempre pode ser outro, embora não possa ser qualquer um. Não é possível, obviamente, dispensar a comparação que distingue a moral do passado dos costumes do presente, ou seja: não é possível prescindir da diacronia. Também não é possível dispensar uma informação, a saber: o duplipensamento, também conhecido como dissonância cognitiva, é uma realidade: alimentamos duas crenças opostas sem que percebamos isso. Como diz Mario Quintana no poema Cocktail Party (1984, p. 109): “Somos democratas e escravocratas”. Isso só torna mais urgente que abandonemos a ideia descabida de que o cientista tem de ter ideologia. Ideologia é exatamente o que ele deve combater.

Sinto um pouco de compaixão pelos pobres-diabos que adoram dizer que a ciência não pode ser separada da ideologia: existe um motivo histórico para tal estupidez: sabe-se que o Positivismo, de Augusto Comte, alimentava a pretensão de ser neutro, científico e, portanto, livre de ideologia. O Positivismo já era em si uma ideologia; virou até religião. Se não me engano, no século XX, a reação da esquerda foi a de recusar a neutralidade da ciência e aceitar que podia ser útil ao capital e ao poder. Isso teve o mérito de mostrar que existe a falsa ciência. Naquele tempo fazia sentido a crítica ao Positivismo, mas hoje não faz mais. Essa lógica de impossibilidade de ser neutra da esquerda já deve ter... o quê?... pelo menos uns cinquenta anos? Parece que a esquerda parou no tempo, como se ainda estivesse em abril de 1964 (na cidade do Rio) ou em maio de 1968 (em Paris). Já deveria ter sofrido uma mudança de paradigma, uma atualização. Não é isso o que a turminha do oba-oba acadêmico, formada por justiceiros e ativistas, tanto prega? Não falam na importância do avanço científico? Que raio de mudança é essa? (que se prende a fantasmas de mais de cem anos). Eh, a “ciência” ocidental sai dos séculos XIX e XX, mas os séculos XIX e XX não saem da “ciência”.[7]

 

2.      Os postulados “científico”-pedagógicos

 

            Se é verdade que nunca é neutra a escolha de palavras, então a educação não poderia ter sido colocada em lado pior. Foi soterrada qualquer isenção de ânimo ou princípio de isenção. Querem um exemplo? Vejam a balela do projeto “político”-pedagógico. Ao invés de tirarmos a educação da política, como os formalistas russos fizeram com a literatura, nós a entregamos de bandeja ao lobo. Que no passado tenha sido um erro não reconhecer o caráter político da educação, isso ninguém nega; agora: depois de tantos anos, já deveria ter acontecido uma mudança de paradigma. A política não é científica: os políticos não são a classe dominante, mas são a classe dirigente; portanto, estão a serviço da burguesia. As políticas públicas de educação não são científicas: são mercadológicas e ideológicas: seguem a cartilha do Banco Mundial, que impõe a mercoescola como modelo. É isso, aliás, que os ensinos básico e superior têm em comum.

            Não deveria haver projeto político-pedagógico, apesar de os justiceiros da igualdade repitirem um mantra segundo o qual toda aula é um ato político: deveria haver o projeto científico-escolar. É com base em critérios técnico-científicos que se faz a educação, e não com o fisiologismo, que consiste em dar cargos públicos nos jogos de interesses e nas relações de compadrio e poder. Não é coincidência que poucos professores alcancem a efetivação nos magistérios públicos: sujeitam-se aos infames contratos temporários.[8] Enquanto isso, cabos eleitorais e seus protegidos continuam sendo recompensados. Não é por acaso que querem destruir a estabilidade do servidor público estatutário. O que é intrigante e estarrecedor é o fato de nas universidades e nos sindicatos discutirem os direitos de minorias sociológicas e mudanças descabidas no currículo, quando deveriam discutir o que realmente mais importa. Ativistas que nunca lecionaram ganham espaço nos sindicatos, ao passo que os professores, que deveriam ter vez e voz, não podem falar. Aqueles tais falam em homofobia, visibilidade lésbica e tantos outros temas que são silenciados pelo currículo oculto. Este, por sua vez, é o conjunto de práticas permeadas pelas relações de poder da escola, mas ninguém o discute. É que quase ninguém o conhece. Para tais ativistas, o que importa é ganhar capital político, mesmo que silenciem a voz de quem tem conhecimentos teórico-metodológicos e empírico-pragmáticos, conhecimentos que só os professores podem ter.

            Como a “ciência” pedagógica foi feita com o propósito mor de fazer com que peões e peoas do ensino se convençam dos absurdos e os aceitem como se fossem verdades científicas, acabamos aceitando que Isadora Faber, a justiceira da Internet, e Daniel Cara, que também nunca lecionou nos ensinos fundamental e médio, tenham prestígio na hora de falar de educação. Ora, quem deveria falar da educação somos nós, professores, e não as duas pessoas que acabei de mencionar. Curiosamente, os dois indivíduos têm o status atribuído a quem é formador de opinião (intelectual orgânico). Detenhamo-nos no prestígio daqueles formadores de opinião.

                       

2.1  Isadora Faber e Daniel Cara

 

            O mundo escolar hoje é um enorme Big Brother, e ai do professor que discordar do Grande Irmão. As redes sociais são instrumentos de vigilância e controle de escala planetária, e justamente por isso só as bestas quadradas celebram o seu falso caráter libertário (conforme os arrazoados de Marilena Chauí). Alunos podem falar o que lhes dá na veneta e vários “especialistas” também: Leigos não dão palpite no trabalho do médico, nem no do advogado, nem no do empresário (refiro-me ao burguês), mas no trabalho do professor todos podem dar palpite, e qualquer “intelectual” é especialista em educação escolar, menos o professor, o homo faber, o peão do ensino a quem negam o status de intelectual. O pobre-diabo tem de se sujeitar às imposições das famílias, dos pais e das comunidades, eivados de senso comum. É só um empregado. E os alunos o denunciam por qualquer coisa, como fazem as crianças do romance 1984, de George Orwell. Filmam, gravam, fotografam e se valem de reducionistas e superficiais interpretações atribuídas ao ECA e à LDB. Pergunto: Isadora Faber, hoje com aproximadamente 20 anos, é professora? Cursou uma licenciatura? Estuda a história do Brasil e da educação? Que experiência (empiria) tem ela como professora da educação básica? Que conhecimentos acadêmicos tem? Mais perguntas: O Diário de Classe aumentou o salário dos professores? Reduziu os efeitos da mais-valia?[9] Melhorou as condições materiais de vida dos alunos espoliados das escolas públicas? Eliminou o otimismo pedagógico? Eliminou as ingerências do Banco Mundial na escola pública? A resposta a todas as perguntas é um sonoro NÃO. Ativismo, vigilância, controle, denúncia e conivência com a Rede Globo não vão ajudar a escola pública.

            No que concerne a Daniel Cara, é preciso fazer as considerações seguintes:

É um despautério o slogan da Campanha Nacional pelo Direito à Educação: “O direito à educação é base para a democracia e para a justiça social”. Também é muito grave, porque, por detrás do mote, há o prestígio da carteirada de “cientistas”. Contudo, Marx ensina que já foi posto tudo de cabeça para baixo. Não aprenderam a lição. O direito à educação e a educação escolar não são a base da democracia nem da justiça social: a democracia e a justiça é que são a base da educação. A prova CABAL disso são as mudanças curriculares implementadas na ditadura militar.

     Num país com esgoto a céu aberto e moradias precárias, é impossível atribuir ao direito à educação a promoção da justiça social: tal justiça não começa pela escola nem pela universidade (lembram o argumento de que é justo que os “ricos” paguem mensalidade na universidade pública em nome da “justiça” social?): escola não é centro de assistência social; da mesma forma, professor não é assistente social. Além disso, a base de todas as abstrações, como direitos, democracia, justiça, liberdade e educação, é CONCRETA, ou seja: é o conjunto das condições materiais de vida, formadas que são pela produção e circulação de alimentos, bens e serviços, pelas moradias e pelo saneamento básico. O slogan da Campanha é um ideal útil ao capital e às classes dominantes, um ideal que se dá ares científicos e esconde suas intenções ideológicas, que são silenciosas. É que ele só confirma a transferência de responsabilidades que não são da escola, conforme a visão liberal e burguesa de John Dewey, cujas experiências contemplaram tão só crianças (crianças, e não adolescentes) de classe média. A Campanha carrega um mote idêntico ao do Escolanovismo, ao do entusiasmo pela educação e ao otimismo pedagógico, três pragas de direita.

      Tenho os panos para as mangas:

      Em sua luta por verbas, Daniel Cara defende o CAQi (Custo Aluno-Qualidade inicial) e o CAQ (Custo Aluno-Qualidade). O “fundamento” da defesa de tais custos é que farão o Brasil se aproximar dos países mais desenvolvidos no que concerne à educação. Não sei que poder seus partidários têm sobre a divisão internacional do trabalho e sobre a hegemonia do imperialismo; no entanto, está muito claro que o propósito divulgado (o que é dito em consonância com o não-dito) não será alcançado nunca, a menos que a Campanha Nacional pelo Direito à Educação (doravante Campanha) tenha o poder de alterar o mapa geopolítico global. Também será necessário derrubar o poder que as grandes companhias privadas de educação escolar exercem no CNE.

      Parece que, para quem representa a Campanha, a escola é uma linha de montagem; logo, deve ser aplicada a lógica da Qualidade Total, disciplina que tem que ver com a produção de bens e com a economia. Trata-se, pois, da aplicação de uma lógica mercantil. Mais uma vez aponto a escolha de palavras: a Campanha fala em custo, que é o mesmo que custeio, e não em esteio. De alguém de direita eu esperaria isso...

      É curioso que seja dada atenção ao aluno: se é ele o centro de gravidade do gasto em educação, então a “ciência” por detrás do CAQi adota o velho, centenário e ultrapassado paradigma do Escolanovismo, em que novo só existe no nome. Como se trata de um investimento, espera-se que ele devolva o dinheiro aplicado de alguma forma. Que se lasque o espaço público das ruas, que é vedado ao jovem quando o prendem numa escola de tempo integral; que se dane o fato de existirem moradias de péssima qualidade; que se dane o fato de haver esgoto a céu aberto; que se danem os Aparelhos Ideológicos de Mercado, que impedem que o professor catedrático faça bem o seu trabalho: o que importa é aumentar as verbas, manter o aluno a todo custo na escola, como se ela, sozinha, fosse dar conta da tarefa que cabe a outros setores sociais e econômicos. É que, com mais verbas, mais pessoas enriquecem: boa parte do dinheiro vai para empresas que venderão equipamentos às redes públicas de ensino. Se não me engano, foi Ziraldo que disse que, no Brasil, alguma coisa só dá certo quando há quem compre e quem venda.

      A influência escolanovista é quase tão imperceptível quanto a influência neoliberal. (Seriam sempre perceptíveis tais influências, se houvesse professores mais estudiosos.) Não é à toa que não há uma defesa ferrenha da estabilidade do professor da escola pública, cada vez mais ameaçada pelo neoliberalismo econômico. Só percebe tais influências quem tem formação sólida. Se é tudo uma questão de verbas, então deveria haver o CPQ (Controle Professor-Qualidade), já que é ele que cria as possibilidades de construção de conhecimento (sem a conversinha estúpida de que é um reles “facilitador” da aprendizagem).

      Por falar em aprendizagem, lembro que, pelo menos uma vez, no Twitter, Daniel Cara referiu-se às teorias pedagógicas sem as distinguir. Para ele, que, pelo visto, ignora que o aluno precisa de conteúdos atitudinais (sem os quais não pode se comportar que nem um monge beneditino), e que se opõe ao Ensino à Distância (este se tornou um “palavrão” “atenuado” pelo eufemismo ensino remoto) sem reconhecer que ele é válido e preserva professores e alunos dos riscos da pandemia, vale mais a socialização do que a concentração e o esforço. Já que ele aparentemente conhece as teorias ou tendências pedagógicas, deve saber da escola dualista: os pobres vão para a escola pública ou para as escolinhas particulares de fundo de quintal; já as outras classes vão para a escola particular. Esta forma futuros servidores públicos, futuros profissionais liberais e futuros capitalistas, ao passo que aquela forma mão de obra barata. Não sei se Daniel Cara conhece tão bem as teorias, mas não é necessário conhecê-las para saber que ele e outros políticos, quer fossem de esquerda, quer fossem de direita, matriculariam os filhos em escola particular, caso os tivessem. (Nem sei se ele tem filhos.) Será que em algum momento ele já defendeu a ESTATIZAÇÃO de todas as escolas particulares?

      Honestamente: não sei de onde tira tanta segurança para falar com propriedade. Eu não me lembro de ele mencionar referências bibliográficas nem experiências realizadas em sala de aula, e no entanto ele dá palpites com a autoridade de formador de opinião para poderosos veículos de comunicação de massa (o que não é um bom sinal para mim). Se ele disser, por exemplo, que a LDB deve garantir o aprendizado, e não a aprendizagem, todos abaixarão a cabeça, mesmo que a lei, por si só, não garanta as condições para o aprendizado de ninguém. Só abaixaria a cabeça quem não tivesse os referenciais básicos.

É preciso que os ativismos sejam escorraçados das discussões sobre educação, e precisamos que outros professores da educação básica e eu, que temos a EMPIRIA proporcionada pelo chão da sala de aula, tomemos o lugar de Daniel Cara e o de outras pessoas que falam de um trabalho que não fazem. (A propósito: é o ativismo que permite a interferência irracional dos Estudos Culturais no currículo. Não vejo a diferença entre eles e o Esquenta, o programa televisivo de Regina Casé. Querem um currículo diferente para os espoliados, mas não querem dar aulas nas escolas onde estudam; querem impor, como de fato já impuseram, a Declaração de Salamanca sem consulta aos professores da educação básica, todavia, não querem discutir as objeções à “inclusão”, nem querem trabalhar com os alunos especiais.) Deveríamos ter vez e voz. Sem isso, vemos slogans absurdos, slogans que não reconhecem as relações entre as condições materiais de vida (a infraestrutura) e os direitos garantidos pelo Estado (a superestrutura). Acham que berimbau é gaita! Berimbau não é gaita, não!

 

2.2  Paulo Freire, a vaca sagrada da pedagogia[10]

 

Estou farto da banalização do nome de Paulo Freire. De um lado, os direitistas neoliberais o criticam e a ele atribuem fracassos pelos quais não pode o bacharel pernambucano ser responsabilizado, como o fracasso no Pisa; de outro, há guardiões do legado freiriano[11] que nunca trabalharam numa sala de aula de escola pública. A verdade é que estão todos errados.

Para começo de conversa, os postulados de Freire, defendidos em textos de caráter ensaístico (e, portanto, de caráter subjetivo e desprovido do rigor metodológico inerente ao trabalho de comprovação científica), acertam parcialmente quando se referem ao lado político do trabalho docente, mas erram feio quando dão destaque aos alunos, influência do movimento Escola Nova, o qual o pernambucano criticava por não levar em conta a realidade social dos alunos, mas com o qual simpatizava. Prova disso é a afirmação freiriana segundo a qual a didática tradicional é extremamente dissertativa, extremamente expositiva e transmissiva. Ora, o que Freire fez em boa parte da vida foi dissertar! Mais: ele usava a lousa para fazer a análise sintática de frases de Jorge Amado! O curioso é que ele não prova a ineficiência da didática tradicional na medida em que ele mesmo se servia dela e na medida em que nunca apresentou provas que pudessem refutar os postulados de Comênio, Pestalozzi e Herbart. Sim, amigos freirianos: já havia uma ENORME literatura pedagógica antes de Paulo Freire nascer.

Freire, que, até onde sei (ou até onde penso saber), nunca cursou uma licenciatura (era bacharel em Direito), tem um lugar de ouro no altar dos sagrados pedagogistas modernos, muito embora ele tenha morrido em 1997, o que quer dizer que não viu a ascensão das tecnologias de informação imediata nem o modo como seus postulados foram (e continuam sendo) cooptados pelo Banco Mundial e pelas estatísticas que garantem generosas verbas, boa parte das quais vai para os bolsos de donos de editoras que vendem livros didáticos para o Ministério da Educação.

As teorias freirianas continuam sendo vendidas em livrarias como se fossem universais, muito embora nada na educação escolar seja universal (com exceção talvez da obrigatoriedade da escolarização, contra a qual ninguém lutou por ninguém a ver como violência simbólica). É muito fácil achar um livro dele na Saraiva, mas nunca vejo livros de Dermeval Saviani. (Este, por sua vez, reconhece que é preciso fazer uma ponte entre os saberes eruditos e os saberes do senso comum, e isso só se faz com a liberdade e o fortalecimento da cátedra.)

Boa parte da empiria de Paulo Freire (que chega a ser tão rala quanto a de muitos acadêmicos que nunca puseram os pés numa sala de aula do ensino básico como professores) vem do convívio com adultos analfabetos do campo. Ele nunca experimentou a precariedade das relações de clientelismo de escolas públicas e nunca carregou nos ombros os ônus oriundos das responsabilidades que têm sido transferidas para a escola por causa do otimismo pedagógico, uma crença que consiste em fazer da educação a salvadora da sociedade, apesar de já ter sido comprovado que a escola sozinha não vai fazer a sociedade mudar para melhor; afinal, ela, a escola, é condicionada pela economia (leia-se: pelo mercado) tanto quanto o restante da sociedade. Mesmo assim Paulo Freire, numa posição muito cômoda de intelectual ou de gerência (e não na posição de chão de fábrica), dita o que a educação pode e o que não pode ser: o achismo dele, revestido que é de uma autoridade quase divina ou santificada sete vezes, reforça o otimismo pedagógico, contra o qual ninguém se rebelou. É esse otimismo que faz com que a escola tenha de ser centro de assistência social e tenha de aceitar qualquer um. E ai do professor que não se submeter ao otimismo pedagógico: sem concursos públicos para o provimento de cargos efetivos e com contratos temporários, ele se torna um empregado de quinta dos pais, que vão desde as classes populares aos integrantes de uma classe média estúpida e semiletrada. (Obviamente os professores evangélicos neoliberais não devem se queixar desse estado de coisas: na verdade, por uma questão de coerência, devem lamber as botas de seus patrões com gratidão e amor a Deus, pois essa é a vontade Dele.)

(O otimismo pedagógico merece mais atenção. Minha hipótese é a de que, como fruto do escolanovismo, tem sido o motor de diretrizes absurdas, impostas, é claro, pelo Banco Mundial. Ele e todas as diretrizes de inclusão geram uma inclusão social às avessas partindo de um pressuposto não-científico: o de que a evasão escolar gera a desigualdade e a exclusão sociais, quando, na verdade, ocorre o contrário: a desigualdade e a exclusão sociais, que assumem a forma de pobreza ou até de pobreza extrema, é que geram evasão escolar. Os defensores da lógica do otimismo pedagógico lucram de alguma forma com ela e dizem que, assim como no hospital, a escola deve dar prioridade aos que estão no pior estado. Essa analogia, é claro, é absurda, porque no hospital é preciso tratar de verdade a doença, enquanto na escola é oferecido “placebo”.)

Os defensores de Paulo Freire, que o defendem por defender sem que saibam por que deve ser defendido, e seus detratores, que o atacam sem que saibam pelo que deve ser criticado, não perceberam, mas os postulados freirianos são extremamente úteis ao neoliberalismo econômico. É uma pena: Freire afirmava que a curiosidade ingênua deveria ser promovida à curiosidade epistemológica e que a consciência ingênua deveria ser promovida à consciência crítica. Só me resta esperar que seus defensores, metade dos quais nunca deve ter lido livros dele, sejam menos superficiais e menos tacanhos e passem a ler a obra dele. A melhor forma de honrar a memória de Paulo Freire não é fazer dele a vaca sagrada em que foi transformado pela academia: a melhor forma de honrar o legado dele é criticar as teorias dele.

Lembro que, quando expus críticas minhas num grupo de Facebook mantido por estudantes de Letras, um deles disse que ensinar é mais do que transmitir conhecimentos e que o aluno é um ser humano. Paulo Freire, a seu turno, dizia que muitas escolas haviam se transformado em centros de transmissão de conhecimento: eram, em seu achismo revestido de autoridade quase divina, antidialógicas: não permitiam o debate (ou dialética), tão do gosto da teoria freiriana (baseada em Hegel). Trata-se da crítica ao que Freire chamava de educação bancária. Ora, quando o tal estudante disse que ensinar é mais do que transmitir conhecimento, admitiu, implicitamente, que ensinar também é transmitir conhecimento, tal como o próprio São Paulo Freire admitira. Ora, assumiram um princípio FALSO, e contra ele fizeram um cavalo de batalha. Acontece que é IMPOSSÍVEL transmitir conhecimento: é construído na interação verbal, em que quem lê ou escuta a mensagem assume o que Bakhtin chamava de atitude responsiva-ativa. Portanto, nunca houve alunos passivos. Também é de estarrecer que tenha mencionado a humanidade do aluno: é como se um ensino rigoroso lhe negasse o que tem de humano. Nada mais falso: os estudos e o rigor da didática de cada disciplina escolar são inerentes aos seres humanos, porque só nós podemos usar a razão, faculdade que tem sido cada vez menos usada. Não culpo o tal estudante; da mesma forma, não culpo outro estudante, que quis me dar carteirada ao mencionar o que fez num país desenvolvido da Europa como aluno de intercâmbio: o depoimento de cada um deles é a confirmação do fracasso dos departamentos de Educação das universidades públicas.

Sinceramente: sou de esquerda e social democrata de carteirinha, mas não suporto Paulo Freire nem Darcy Ribeiro. Muitas pessoas insistem em atribuir a cada um dos dois uma aura divina. Para elas, não restam dúvidas: Deus no Céu, Paulo e Darcy na Terra. Nenhum dos dois lecionou na escola pública de ensino básico, mas são autoridades inquestionáveis. A LDB é uma afronta: tomou o lugar de um projeto que não tinha sido aprovado pelos donos das escolas particulares, que até hoje exercem muita influência no CNE. Os CIEPs, estes foram apenas um modo de arranjar votos (que são um capital político). O ideário deles consistia em transferir para a escola o trabalho que deveria ser de outras partes da sociedade e da economia. Todo projeto de educação em tempo integral tem a influência nojenta e nefasta do escolanovismo, corrente educacional que era do gosto da burguesia. Mas ai de quem disser que não se combate a pobreza por meio da escola: o Banco Mundial está com o chicote nas mãos para refutar os dizeres do desgraçado que ousar cometer a heresia de se rebelar contra o dogma.[12] Afinal, como diz tio Paulo Freire, se com a educação a sociedade não muda, sem ela tampouco. Viva o otimismo pedagógico! Viva a licenciosidade! (contra a qual o pernambucano aparentemente se opunha). Viva a vontade de ser mais dos anjos e santos! (que são as crianças e os adolescentes politicamente corretos e chegados à cultura do cancelamento). Viva o ego! Viva o individualismo! (tão do gosto da moral burguesa e do neoliberalismo econômico). Viva a fraqueza do “oprimido”! E que ninguém ouse lembrar o fato de os escritos de Freire e Ribeiro datarem de cinquenta anos ou mais, mesmo que a turminha do oba-oba pedagógico insista na importância de atualizar as referências bibliográficas de dez em dez anos, como se a ciência tivesse um tempo programado para avançar, e a diacronia fosse incapaz de analisar e contextualizar, de modo sensato, o que foi dito em eras passadas. (Ignorar o passado em nome de algo maior é o que se faz no romance 1984, de George Orwell.) Para Freire, vale a lógica da adaptação das espécies, numa espécie de darwinismo social: quem não acredita na educação nela não deve trabalhar: deve procurar outra coisa. Que se adaptem os professores à lógica do absurdo ou, por falta de salário digno, que busquem a luz de um dia melhor em outra profissão. Na lógica freiriana, é irrelevante o fato de 66% dos professores adoecerem ou pedirem licença para tratamento da própria saúde.

Que fique claro que Freire tem o mérito de ter criado um método de alfabetização baseado numa palavra geradora, isto é: numa palavra que tenha que ver com a realidade de quem é alfabetizado. Há evidências científicas de que foi bem-sucedido o seu método, então, ponto para ele. Acontece que o que pregava Paulo Freire não serve para todos os estudantes: não se sustenta em todos os níveis de ensino; também não serve em todas as modalidades. Tantos são os erros epistemológicos de Paulo Freire, e tão grosseiros, que só há duas hipóteses que expliquem o fato de os alunos e os lentes das licenciaturas não os denunciarem: uma é a ignorância; a outra, a desonestidade intelectual.

Quem serve a dois senhores não serve bem a nenhum. É muito claro o dilema teórico-metodológico do magistério da educação básica: ou segue uma educação mais clássica, mais tradicional, mais livresca,[13] mais erudita e mais conteudística e muito, muito mais respeitadora da autoridade e da cátedra do professor, ou segue Paulo Freire (que, aliás, nem formado em Pedagogia era: era bacharel em Direito; e nunca vou me cansar de repetir isso). A educação popular confirma o Escolanovismo, o otimismo pedagógico e o entusiasmo pela educação, doutrinas da direita. Também confirma as estratégias neoliberais do Banco Mundial, que acha que, fazendo da escola pública um depósito de alunos, vai combater a pobreza, quando, com toda a hipocrisia da inclusão (que, na verdade, é uma inclusão às avessas), apenas faz com que a delinquência chegue à escola pública, e o professor que assuma a linha de frente sem colete, como se ele tivesse de ser psicólogo, assistente social e qualquer outra coisa, menos professor. Na verdade, tanto na lógica freiriana quanto na lógica do Banco Mundial (existe diferença entre as duas?), ele, o professor, é “educador” e, portanto, tem responsabilidades sociais. Obviamente tais responsabilidades não deveriam ser dele, mas o jogo do neoliberalismo consiste em mascarar a verdade. O neoliberalismo econômico apresenta muitas faces e se infiltra onde menos esperamos. A história das metodologias ativas, por exemplo, é do gosto do Banco Mundial, que praticamente segue a cartilha do Escolanovismo, do otimismo pedagógico e do entusiasmo pela educação, três pragas da direita. Há cem anos vemos o fiasco dessa história de metodologias ativas. É o que acontece quando os “pesquisadores” dos departamentos de educação não estudam nem pesquisam. Se não tivermos uma educação escolar mais tradicional, mais livresca, mais clássica e mais conteudística, continuaremos vendo a consolidação de seitas intolerantes, irracionais e anti-iluministas. Também continuaremos vendo médicos que receitam cloroquina e invermectina.

Meu caminho é muito claro: não acato o que diz Paulo Freire, que ataca a didática tradicional, muito embora dela tenha se servido. E sabem o que é mais curioso? A turminha do oba-oba pedagógico adora dizer que é preciso uma atualização e que de dez em dez anos devemos atualizar nossas referências bibliográficas. Ora, Paulo Freire publicou seus livros há aproximadamente CINQUENTA anos! E toda essa conversa de metodologias ativas começou há praticamente UM SÉCULO! A turminha quer que os OUTROS se atualizem, porque, sendo incapaz de aplicar a diacronia e a sincronia em suas “leituras”, considera-se imune à necessidade de se atualizar. Para ela, o erro está só nos outros.

A respeito da LDB, vale registrar o seguinte:

Infelizmente, a atual LDB equivale àquela que foi idealizada por Darcy Ribeiro, e não ao texto que propusera o deputado Otávio Elísio (PMDB/MG). Refiro-me ao projeto de lei 1.258, de 1988, para o qual o relator escolhido foi o deputado Jorge Hage (PDT/BA), que “ouviu as entidades da sociedade civil e outros parlamentares e apresentou, em agosto de 1989, o primeiro substitutivo do Projeto Otávio Elísio, que contou com o apoio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública” (MARTINS, 2008, p. 93). Para o nosso azar,

 

a vitória de Collor priorizou as propostas educacionais do empresariado industrial. No início de 1990, Jorge Hage apresentou o segundo substitutivo, mas os defensores dos interesses privados criaram uma série de mecanismos para que esse substitutivo não caminhasse na Câmara dos Deputados. Collor reuniu aliados para barrar o projeto do deputado Jorge Hage; assim, foram criados vários empecilhos que impediram a votação do projeto na Câmara dos Deputados. Em 1992, Darcy Ribeiro apresentou outro projeto de LDBEN, que também foi assinado por Maurício Correa (PDT/RJ) e Marco Maciel (PFL/PE). Logo em seguida, o projeto do deputado Jorge Hage foi retirado do Congresso, o projeto de Darcy Ribeiro foi votado e transformou-se na nova LDBEN, Lei 9.394, promulgada em 20 de dezembro de 1996 (MARTINS, 2008, p. 93).

 

Até hoje a LDB é conhecida como Lei Darcy Ribeiro. Reflete as contradições da educação pública brasileira e define a educação como dever do Estado e da família. Esta, é claro, é religiosa e tacanha, e por isso mesmo não respeita a liberdade de cátedra do professor. Para o azar dos professores progressistas, “as esperanças dos educadores, de ter uma educação fundamentada, discutida e organizada sob os princípios da dimensão crítico-social foi abortada pela Lei Darcy, que não representa a vontade e o sonho dos educadores brasileiros” (THOMAZ; CARINO, 2008, p. 149).

 

2.3 Pelo fim das licenciaturas e pela valorização dos Bacharelados como maneiras de garantir a formação de bons professores, ou: pelo fim dos abusos e das abusões da pedagogia

 

            Desde o Escolanovismo, marcado que é pelo entusiasmo pela educação e pelo otimismo pedagógico (duas ideologias educacionais estúpidas), o didaticismo, a psicologização do ensino e a supervalorização do umbigo do aluno têm estendido, de modo impenitente, as garras que garantem que, hoje, seja seguida servilmente a cartilha do Banco Mundial, cujas diretrizes economicistas e neoliberais garantem a pobreza dos países periféricos e inviabilizam uma educação escolar de qualidade mais alta e mais humanista. Como forma de garantir a profissionalização do magistério, tornou-se obrigatória a licenciatura, que impõe aos futuros peões e às futuras peoas do ensino a ideologia pedagógica, que, como toda ideologia, é burguesa e, portanto, mascara a realidade em nome do status quo. Dá-se à pedagoga a autoridade “científica” para avaliar o professor, mesmo que ela nunca tenha assumido a regência de uma turma. Ocorre que esse é um erro baseado numa desonestidade intelectual, a saber: a falsa premissa de que a pedagogia pode dominar todos os procedimentos de ensino.

            Essa arrogância da pedagogia é evidenciada no livro Didática Magna (1621-1657), de João Comênio (1592-1670). Naquele livro, numa revelação de consciência ingênua (a mesma de que fala São Paulo Freire, que era bacharel em Direito, e não pedagogo), afirma o autor:

 

Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo

a Todos

ou

 

Processo seguro e excelente de instituir, em todas as comunidades de qualquer Reino cristão, cidades e aldeias, escolas tais que toda a juventude de um e de outro sexo, sem excetuar ninguém em siveiarte alguma, possa ser formada nos estudos, educada nos bons costumes, impregnada de piedade, e, desta maneira, possa ser, nos anos da puberdade, instruída em tudo que diz respeito à vida presente e à futura, com economia de tempo e de fadiga, com agrado e com solidez (p. 11).

 

           Pensava Comênio que realmente podia criar um método de ensino universal, capaz de ensinar tudo a todos, embora dividisse o livro em capítulos, cada um dos quais é dedicado a uma disciplina diferente. Essa é uma ingenuidade idêntica à dos enciclopedistas, que, por sua vez, achavam que poderiam saber tudo.

            Para a nossa sorte, ainda existem pedagogistas com um pingo de decência e honestidade. É o caso do Sr. Luckesi. Para ele,

 

o método pode ser entendido dentro de uma concepção teórica ou de uma compreensão técnica. O autor compreende Metodologia como a concepção segundo a qual a realidade é abordada. Esta é uma concepção teórica do método. Porém, afirma que há uma compreensão técnica do método que também atravessa o conteúdo, visto que “são modos técnicos de agir que estão dentro do conteúdo que se ensina” (p. 138). Exemplo: o modo de extrair raiz quadrada (Matemática) ou o modo de proceder numa análise sintática (Língua Portuguesa). Tanto uma quanto a outra perpassam os conteúdos tratados nas diferentes disciplinas curriculares (GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 33).

 

            Com efeito: “Todo conhecimento é atravessado por uma metodologia e é possível descobrir no próprio conteúdo exposto o método com o qual ele foi construído” (LUCKESI, 1995, p. 138 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 34).

            Se fosse mesmo verdade que toda pedagoga está apta para avaliar quem é mais instruído do que ela, a partir do tecnicismo, tendência pedagógica reconhecida pela Lei 5.622, de 1971, no tempo do regime implementado pelo golpe militar, não seria necessário elaborar para ela um plano de aula com cabeçalho e objetivos. O ofício burocrático e irracional de explicitar procedimentos de ensino que não domina já é em si uma prova de que as pedagogas não dominam o conhecimento, porém querem dar carteirada mesmo assim. Com isso apenas revelam a ignorância maciça. E sabem o que é mais curioso? O modelo de plano de aula tecnicista é inspirado pela Psicologia behaviorista, de Skinner. Pergunto: ele era bacharel ou licenciado?

          Se é verdade que todo conteúdo é condicionado, permeado e atravessado por uma metodologia, então toda metodologia também é atravessada por um conteúdo de uma disciplina específica, o que quer dizer que a pedagoga, que está abaixo de Luckesi, só pode dominar os procedimentos de ensino do professor quando ela é formada ou versada na disciplina que ele leciona, hipótese em que ela teria duas graduações. Isso quer dizer que é um despautério o que aconteceu na rede estadual de ensino do Paraná: Segundo notícia veiculada em 6 de outubro de 2019 pelo site Plural, pedagogas estariam vigiando professores em sala de aula. Em tempos de Escola sem Partido, pedagogas evangélicas e disseminação dos dizeres de Olavo de Carvalho, isso só pode soar como forma de desrespeitar a liberdade de cátedra do professor, garantida por lei.

            Está mais do que claro que a formação científica do professor não depende da licenciatura, mas sim do bacharelado. Aliás, todo indivíduo com diploma de curso superior é, por definição, bacharel. A pedagogia deve se voltar apenas para a educação infantil, para o primeiro segmento do ensino fundamental, para a alfabetização de jovens e adultos e para a formação das normalistas, que, infelizmente, ainda são submissas ao patriarcado e a uma moral fálica ou falicizada, como se estivéssemos no século XIX (quando muito, fazem um feminismo de farmácia, extremamente superficial). O curso Normal é “uma escola sem mestres, um estabelecimento anacrônico, onde as moças vão tagarelar, vão passar o tempo a ler romances e a maldizer o próximo, como vocês sabem melhor que eu...” (CAMINHA, 2001, p. 255). Com efeito: “Aquilo é uma sinecura, não temos educadores, é o que é” (CAMINHA, 2001, p. 256).

             As citações acima foram tiradas do romance A Normalista, de Adolfo Caminha. Foi publicado em 1893, no século XIX, portanto. Mudou alguma coisa?

              Enquanto a pedagogia não parar de se meter onde não é chamada, não será ciência: será, no máximo, falta do que fazer ou um curso que prepara pessoas acríticas que cortam e colam papel.

 

2.4 A infâmia dos mestrados profissionais e o baixo nível do magistério

 

            Já se tornou comum o desfile de horrores e obscenidades promovido nas educações básica e superior pelo Banco Mundial e pelo neoliberalismo econômico. Tal desfile consiste em implementar “cientificamente” (leia-se: por meio da ideologia, uma visão social e enganosa de mundo que nunca se revela como ideologia, mas sim como “ciência” ou, no caso da religião, como conhecimento divino) uma formação anti-intelectual, anti-iluminista, acrítica e cheia de oba-oba pedagógico. É de estarrecer a quantidade de heresias proferidas por gente que se acha habilitada para falar do que não sabe só por causa de um pedaço de papel.

Um exemplo são os mestrados profissionais: neles defendem as metodologias “ativas”. Pergunto: quando criaram as metodologias passivas? O uso das palavras método e metodologia já se tornou tão vulgar na boca e no teclado dos que tentam dar ar científico ao próprio discurso com uma terminologia “técnico-científica”, que já não há ligação entre os significantes e os significados. A turminha do oba-oba pedagógico não tem distanciamento reflexivo nem força intelectual para notar as sandices que repete só porque gente com algum prestígio determinou que seus postulados de meia tigela são verdades científicas.

Isso tem que ver com o Escolanovismo, tendência pedagógica não-crítica, desgraça da minha vida, ruína da educação, cadáver de cem anos adotado por Anísio Teixeira que fede a mofo e cinzas e até hoje estende suas garras pútridas no lodo do otimismo pedagógico e do entusiasmo pela educação (ideologias dos liberais de direita). Que o Sr. Kilpatrick, discípulo e sucessor do Sr. Dewey, seguisse a pedagogia de projetos (adotada por Freinet) e as tais metodologias ativas, coisa é que se entende e se aceita, porque tudo isso se encaixava na disciplina dele: a Física. Mas quem não se prende a fantasmas nem a cadáveres de um século sabe que, de dez em dez anos, é bom rever as referências bibliográficas. Com efeito: em 1995, o Sr. Luckesi (p. 138 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 34) declarou o seguinte: “Todo conhecimento é atravessado por uma metodologia e é possível descobrir no próprio conteúdo exposto o método com o qual ele foi construído”. Isso quer dizer que os procedimentos de ensino e pesquisa (duas coisas inseparáveis) estão embutidos nos conteúdos e vice-versa: estes são atravessados por aqueles. Daí a falácia do “aprender a aprender” e da interdisciplinaridade. O método de identificação e classificação do sujeito de uma oração absoluta, por exemplo, está dentro da própria matéria que se examina, e o exame só é possível dentro de uma educação clássica, conteudística e rigorosa.

A ser verdade o que diz Luckesi (e eu sei que é), a pedagogia de projetos é um erro, além de um insulto ao trabalho do professor cuja formação acadêmica é sólida. O que diz o pedagogista só pode partir do pressuposto de que só o professor de língua conhece os procedimentos de ensino e avaliação de sua disciplina, de modo que a pedagoga deve se abster de quaisquer críticas e se dedicar tão só aos níveis mais básicos de educação escolar. Em verdade, ele parte do pressuposto de que só o professor especializado domina os procedimentos de ensino desta ou daquela disciplina. Em outras palavras: só o professor de Física conhece os procedimentos de ensino de Física, só o professor de Matemática conhece os procedimentos de ensino de Matemática.

Como falar em referências bibliográficas, quando doutores de departamentos de Pedagogia de universidades PÚBLICAS defendem o que prega a cartilha do Banco Mundial? Essa gente, que se vale de pedaços de papel (capital simbólico), acha que com mais baderna e mais barulho em sala de aula os alunos vão aprender ou vão aprender mais. Defendem o uso de tecnologia, na contramão dos avisos do professor Kawamura, para quem as tecnologias digitais são vendidas aos países emergentes de tal modo, que causam a ilusão de ascensão social, do que se depreende que há um imperialismo mercantil. Como falar em referências bibliográficas, se o intelectual é malvisto, odiado? Como falar em referências bibliográficas, se existem professores que caem na ilusão de que os alunos vão aprender ou vão aprender mais com tecnologias digitais? Como falar em referências bibliográficas, se quase não há bibliotecas públicas? As poucas que existem estão sucateadas, e há professores que acham que isso é bom, porque supostamente vai salvar árvores. Ora, o silício e o papel poluem, porém há um mal-entendido ou uma séria dificuldade de interpretar e compreender a questão: o papel e os eletrônicos poluem, mas estes poluem MAIS do que aquele. Eu gosto do que diz Ronaldo Lima Lins, professor emérito do departamento de Letras da UFRJ, no livro O livro e seus algozes (Rio de Janeiro, Mauad X, 2017, p. 36) sobre a “ecologia” da eletrônica: “O argumento ecológico, em seu favor, não se sustenta. Também produz lixo em altas quantidades de peças que não se desfazem. E o papel, não obstante derrube árvores, não atinge florestas, suas árvores podendo ser replantadas com idêntico propósito”.

A turminha do oba-oba pedagógico, cuja visão é extremamente tacanha e, portanto, limitadíssima, ignora isso tudo, e o que ela ignora preenche livros e livros. É que o psiquismo dela não foi formado pela convivência com as páginas dos fortes autores. A mesma turminha insiste em não enxergar algumas verdades, a saber:

 

1ª: é mentira que as faculdades não preparam professores para a educação básica (a despeito de vermos a ascensão e a consolidação de uma categoria anti-intelectual numa era em que futuros professores entram na faculdade, ainda que ela não entre neles): elas preparam, e sou uma prova disso; muitos alunos é que não estão preparados para a sala de aula, de modo que cabe ao Estado impedir que os maus alunos prejudiquem os bons; e não aceito que ativistas venham me repreender, pois que ativismo, tão do gosto da turminha daquilo que no vocabulário moderno é conhecido como lacração, não (não, NÃO!) é ciência;

 

2ª: a raiz dos problemas de ensino e evasão escolares não está no currículo, muito menos nos métodos: a raiz está nos problemas infraestruturais, isto é: nas condições materiais de vida dos alunos, que são históricas e paupérrimas, e isso tem que ver com as divisões social e internacional do trabalho;

 

3ª: o professor, em tese, está mais do que apto para ensinar (e por isso o investimento em educação deve começar sempre pelas universidades, e não pela educação básica, pois é a universidade que forma o professor dos ensinos fundamental e médio): os alunos é que carecem do que a pedagogia, em seu vocabulário pedante, chama de CONTEÚDOS ATITUDINAIS.

 

Negar as três verdades acima é fazer o jogo do capital, ou seja: é perpetrar a ideologia, que, por definição, é o pensamento das classes dominantes. Negar o que listei também é culpabilizar o professor por mazelas das quais ele é vítima. Qualquer caminho diferente do meu ou oposto a ele é um modo de transformar a vítima em algoz. Não surpreende, porém, que continuem pregando mentiras na educação: num país em que os Institutos Federais, num exercício neoliberal de valorização do tecnicismo deixado pela ditadura militar, são mais valorizados do que as universidades, prospera a falta de pensamento crítico e reina a precarização da formação continuada dos professores. Ora, o compromisso com a formação de qualidade sempre foi assumido pelas universidades, mas isso tem mudado, de modo que muito me preocupa a estúpida celebração em torno dos Institutos (doravante IFs). Essa só pode ser também uma herança de FHC. Cabe a pergunta: por que os magistérios, principalmente os públicos, os quais, em tese, deveriam ser os guardiões das ciências humanas, estão celebrando a ascensão e a consolidação do tecnicismo dos IFs?

Enquanto não houver a valorização de uma educação mais conteudística e clássica, continuaremos a ver o desfile de obscenidades e heresias que são difundidas, reconstruídas e implementadas como se fossem ciências: os professores continuarão sendo vítimas da subproletarização e dos contratos temporários no contexto do domínio do neoliberalismo econômico, a escola continuará sendo administrada como se fosse uma empresa, os professores continuarão adoecendo por se sentirem culpados (afinal, a “ciência” pedagógica os culpa), os alunos continuarão sendo aprovados de modo automático, continuarão saindo da escola sem que saibam que a ditadura não (não, NÃO!) foi uma “ditabranda”, médicos continuarão receitando cloroquina sem base científica, as pessoas ficarão cada vez mais dependentes da tecnologia e os “leitores”, em suas desleituras, continuarão caindo em notícias falsas num gesto de automatismo psíquico. Nem é preciso lembrar que o currículo propedêutico, o utilitarismo, o caráter danoso do bônus-desempenho, a mais-valia[14] e tantos outros temas que professores desconhecem continuarão sendo silenciados na sala dos professores, onde nunca são mencionados. E por que seriam? O que importa mesmo é o Big Brother Brasil ou o time do Flamengo.

 

2.5 Mitos e reducionismos

 

            Em tempos “pós”-modernos (ou hipermodernos), em que há a “pós”-verdade e outras tolices, a juventude carece de ritos de passagem: prolongam-se a infância e a adolescência ao mesmo tempo que, num gesto que contraria o autor de O Anticristo, defende-se a fraqueza. Na visão de certos psicólogos e assistentes sociais, a criança e o adolescente não podem nunca, jamais, jamais mesmo, sofrer. Como vão crescer e se tornar adultos responsáveis, isso eu não sei. Talvez queiram adultos suscetíveis ou vulneráveis ao id, isto é: vulneráveis à pulsão infantil, característica necessária ao consumo. Peter Pan é agora o patético modelo a ser seguido; a morte, o horror que crianças nunca devem descobrir em nome da preservação da preciosa flor de sua inocência.

            Está muito claro que, de todas as evidências de que a epistemologia que presidiu à elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente é tão falsa quanto as outras interpretações reducionistas e cínicas a ele atribuídas, a que mais se destaca é a defesa dos direitos. Refiro-me ao cinismo de que são sujeitos de direitos e os adultos, de deveres, como se as obrigações anulassem os direitos. Ora, a existência dos ônus sempre pressupõe a dos bônus, por isso tanto os adultos quanto os menores têm deveres, e negar isso é regredir à Idade Média, quando não havia o cidadão. Curiosamente, o protagonismo e a autonomia do aluno seguem o individualismo, que “foi e continua de certo modo querendo ser o eixo da moral burguesa” (CÂNDIDO, 1952, p. 4). Numa era em que o indivíduo tem de ser empresário de si mesmo por imposições do neoliberalismo econômico e do mercado financeiro, que causam muito mais danos e mortes do que a corrupção política, não é de surpreender que a pedagogia, a psicologia e o serviço social tentem se certificar de que crianças e adolescentes sejam jogados, largados ou depositados em escolas, que fazem as vezes de centros de assistência social ou até de prisões. A rua e os outros espaços públicos da pólis são malvistos, de modo que os adolescentes devem ser poupados de tais espaços “deletérios”. E ai do professor que reclamar: a “ciência” pedagógica lá estará para dizer que ele “escolheu” isso. Ora, não existe livre-arbítrio: existe, no máximo, um princípio de escolha, e ninguém escolhe pagar contas. É possível fazer jejum quando há comida, mas não há escolha quando o indivíduo precisa comer sem alimento nenhum em casa.

            A verdade é que tanto os ativistas de esquerda quanto as Damares da vida, que ignoram a verdadeira ciência e falam do lugar cômodo de quem nunca terá de lidar com a marginalidade da sala de aula da escola pública, defendem motes e dogmas demagógicos. É pura hipocrisia a “proteção” de crianças e adolescentes. O que querem é a garantia de verbas e votos dentro dos jogos de interesses político-partidários. Estes, é claro, são incompatíveis com a ciência. As salas superlotadas, os rankings das infames avaliações externas, a “inclusão” social, tudo isso representa mais dinheiro. E que se abram as porteiras do inferno, que na escola entrem todos e se danem os bons alunos, que serão prejudicados por não poderem arcar com os custos de uma boa escola particular.

            É muito clara a divisão social do trabalho, e a teoria da escola dualista (que, pelo visto, na ânsia de falar de verbas e do Plano Nacional de Educação, o Sr. Daniel Cara ignora) não me deixa mentir. Ora, se há uma distinção entre perdedores e vencedores, então é melhor fazer com que a escola seja apenas um direito, e não uma obrigação. Os estudos não são para todos, e a aprovação automática é muito mais nociva do que a reprovação. Meu avô materno, por exemplo, só estudou até um nível que corresponde a uma parte do que hoje é o primeiro segmento do ensino fundamental,[15] porém, dentro da lógica que separa as classes sociais, conseguiu se arranjar relativamente bem, tanto que foi funcionário de uma empresa estatal, a empresa responsável pelos trens do estado do Rio. Teve de vender a força de trabalho desde muito cedo. Não foi justo o que lhe foi imposto, mas o sistema, naquele tempo, ao menos era declaradamente elitista, razão pela qual era muito mais fácil criticá-lo; hoje, no entanto, é mais perverso e mais perigoso, pois assume fumos convincentes de justiça e equidade.

            Um dos “fundamentos” da luta por igualdade, equidade e direitos infantojuvenis (leia-se: luta por verbas públicas) é aquela interpretação reducionista segundo a qual crianças e adolescentes teriam apenas direitos, ao passo que os adultos teriam apenas deveres. Sujeitos de deveres acabam temendo sujeitos de direitos (até porque as poucas punições e os poucos procedimentos disciplinares que podem ser realizados em nome da apuração dos fatos, da verdade e da justiça, que são valores coletivos que deveriam estar muito acima da proteção de apenas um indivíduo, qualquer que seja a idade dele, são inviabilizados pelo conjunto de práticas escolares. Tal conjunto de práticas é o currículo oculto, que valoriza as salas superlotadas e as verbas). Não é por acaso que se criou uma geração de preguiçosos imprestáveis, narcisistas, egocêntricos e egoístas. Curiosamente, a idade adulta, do ponto de vista legal, começa aos dezoito anos; assim, num dia, o indivíduo tem dezessete (dezoito anos incompletos); no dia seguinte, o dia do 18º aniversário, não tem mais regalias. Que diferenças ocorrem na maturação biológica do cérebro de um dia para o outro eu não sei. Uma coisa eu digo: crianças e adolescentes são eternamente responsáveis pelos próprios atos — e se a lei não concordar comigo, cogitarei de usar a desobediência civil.

            A propósito da maturação biológica: o argumento imbecil de que o cérebro de adolescentes, tratados que são como se fossem retardados, não é maduro (pelo menos não na parte que corresponde ao medo e aos limites necessários ao uso do instinto de sobrevivência) só pode se basear numa epistemologia falsa, tão falsa quanto a que dizia que a mulher, em função do útero, não poderia exercer atividades intelectuais e era suscetível à histeria. A “ciência” que afirmava isso se baseava numa epistemologia falsa — e o que é falso deve ser atirado ao fogo. Espero estar vivo para ver o dia em que a “ciência” moderna será desmascarada. A ser verdade o argumento, a maturação biológica só é concluída quando o indivíduo atinge os vinte e poucos anos. Se é isso mesmo, corremos o risco de ver uma alteração nos Códigos Civil e Penal: poderá chegar o dia em que, em nome da “ciência”, a maioridade começará aos vinte e quatro anos ou aos vinte e sete.

            Chama atenção o fato de recorrerem a uma explicação biológica, e não cultural: Mesmo que seja verdade o inacabamento da maturidade (ou maturação) cerebral dos adolescentes, isso não seria desculpa para as decisões descabidas que têm sido tomadas. A cultura, aliás, tem tirado deles os ritos de passagem, necessários ao amadurecimento. Com efeito:

James Barrie [autor de Peter Pan] criou então um mito, pois, ao falar primeiramente de si mesmo, ele falou de todos e deu forma a uma obsessão geral. Seu grande mérito é ter percebido logo no começo do século XX algo que iria se tornar cada vez mais verdadeiro, enorme e visível, até obstruir todo o horizonte. Os novos Peter Pans que surgiram em grande número a partir da década de 1980 estão em sintonia com uma sociedade que inventa o conceito de “pós-adolescência”, como se tudo valesse para não ser adulto. O historiador Philippe Ariès lembra que, contrariamente, na sociedade no Antigo Regime não se conhecia o conceito de adolescência: a princesa casada aos 15 anos, o oficial de 18 anos comandando suas tropas são mulheres e homens formados. Hoje, isso é difícil de imaginar. O que aconteceu com o Ocidente? O que se tornaram seus adultos? (CANI, 2008, p. 20)

 

 

            A direita e a esquerda estão empenhadíssimas em fazer o jogo do capital: superprotegem crianças e adolescentes em nome do id, da pulsão infantil, necessária que é à sociedade de consumo. As leis, dizem, são uma conquista. Realmente, são uma conquista — uma conquista do capital. A mercoescola acaba sendo a Terra do Nunca. A superestrutura, no entanto, com suas leis, laudos e receitas médicas para crianças “hiperativas”, não vai modificar a infraestrutura e suas mazelas, não dessa forma. Só celebra esse tipo de coisa quem não trabalha em escola pública, como os palestrantes da educação.

            (Uma das coisas que J. K. Rowling me ensinou numa das entrevistas que concedeu é o fato de os modelos dos adolescentes reais serem os adolescentes falsos ou inverossímeis da Nickelodeon. Posso incluir os da Disney no balaio. É essa geração que depois vai fazer ativismo.)

            São uma falsidade as conquistas e os supostos avanços nas leis em nome dos quais enchem a boca. Há TRINTA ANOS existe o ECA, há TRINTA ANOS vemos as mazelas, há TRINTA ANOS escutamos reclamações. Será que ninguém vai submeter o Estatuto da Criança e do Adolescente a uma crítica séria? Será que não percebem que são outros os tempos, e que portanto deve haver alterações? Obviamente seus defensores não se abrem ao debate: são dogmáticos e intolerantes. Esperar que sejam feitas mudanças sérias deve ser um sonho tão distante quanto a saída do PSDB de São Paulo, estado que o partido governa há pelo menos três décadas. Um plebiscito sobre o tema jamais veria a luz do dia: os ativistas de esquerda levantariam todas as barreiras: sabem que, numa decisão democrática, o ECA sofreria alterações.

No fundo, os ativistas que defendem crianças e adolescentes alimentam um antigo mito: o de que a próxima geração deve redimir a antecessora, como se apenas a potência juvenil fosse capaz de fazer intervenções na Terra. Obviamente todos envelhecem; por isso nada se resolve e tudo é passado para a geração seguinte, que nem uma praga ou uma maldição de família.

 

3.      Os feminismos

 

Estendo às feminazi toda a minha compaixão: são como eu: não contam com amor, nem com afeto. Portanto, elas e eu somos mal-amados ou não amados. Paciência. Isso, no entanto, não tira a acidez de minha crítica: não vejo diferença entre as feminazi e Damares. Tanto nas fileiras da direita quanto nas das esquerdas estamos testemunhando a consolidação de pudicas, pessoas carolas eivadas de uma repressão sexual e um puritanismo que não vemos desde a era vitoriana. Os psicanalistas têm muitos objetos de estudo.

 Não se sustenta a “tese” da objetificação do corpo feminino: carece de critérios objetivos. No meu entendimento, o discurso de muitas feministas é uma forma hipermoderna de puritanismo; por isso eu o considero ideológico, e não científico. Ora, a ideologia é o pensamento das classes dominantes, além de ser anticientífica. Não me surpreende que em tempos de neoliberalismo e bolsonarismo tenhamos tanto “empoderamento” e mulheres que dirigem Uber só para outras mulheres, sem décimo terceiro, sem férias remuneradas e sem FGTS (o capital corrompeu os feminismos). Ironicamente, o conceito científico de assédio é o legal: é a lei (que por definição é também ideológica) que vai determinar, objetivamente, o que é assédio, o que é importunação sexual, o que é estupro e o que é presunção de inocência, e não os ativismos feministas, que estes, por sua vez, pregam o extremo oposto do que diz Jorge de Sena (que citarei mais adiante). O princípio de presunção de inocência, aliás, está sendo cada vez mais desprezado.

O que se vê não é o corpo da mulher em si: o que se vê, nas praias e nas ruas (espaços públicos), é a luz que no corpo delas bate. São donas do próprio corpo, porém não são donas da luz.[16] A propósito desse efeito da luz: vale citar Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (1986, p. 224):

 

PASSA UMA BORBOLETA por diante de mim

E pela primeira vez no Universo eu reparo

Que as borboletas não têm cor nem movimento,

Assim como as flores não têm perfume nem cor.

A cor é que tem cor nas asas da borboleta,

No movimento da borboleta o movimento é que se move,

O perfume é que tem perfume no perfume da flor.

A borboleta é apenas borboleta

E a flor é apenas flor.

 

 

Não se trata só do corpo: trata-se, também, do prazer sexual, e desse prazer ninguém é dono, nem os homens, nem as mulheres. Sem distanciamento e sem reflexão, os ativismos não farão crítica à ideologia: apenas criarão outras ideologias, tentáculos do capital. Não foi à toa que cem artistas francesas fizeram um manifesto contra o puritanismo sexual.

A liberdade de transar bêbado, por exemplo, já não existe, e o Estado, com uma nova moral mercantil, como sempre, interfere na vida particular das pessoas em nome das ideologias.

Cito também Jorge de Sena (2006, p. 250 apud ERTHAL, 2013, p. 28[17]):

 

Moralmente falando, sou um homem casado e pai de nove filhos, que nunca teve vocação para patriarca, e sempre foi a favor de a mais completa liberdade ser garantida a todas as formas de amor e de contacto sexual. Nenhuma liberdade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido, ou um grupo de cidadãos hipersensíveis, possa ter o direito de governar a vida privada de alguém.

 

            Está mais do que claro que os feminismos erraram a mão.

 

4.      Os ativismos gay e trans

 

4.1. O ativismo gay

 

            Vejo em tal ativismo a defesa de identidades úteis ao mercado. As passeatas gays são momentos de esbórnia, de oba-oba, e não de reflexão. Quantas vezes, em tais eventos, alguém segurou o microfone para ler em voz alta textos cujo tema fosse a opressão que sofre a população LGBTQI+?

Falta articulação: parte do movimento LGBT não caminha com outras lutas progressistas ou de esquerda: A impressão que eu tenho é a de que a grande maioria se conforma com a influência de telenovelas e com memes de “Félix, bicha má”. Também noto que se reforçam os valores burgueses e condicionam a aceitação da homossexualidade ao fato de poderem consumir e de serem bem-sucedidos os gays, e não ao valor intrínseco da vida. Parece que não suspeitam da influência do neoliberalismo econômico no movimento.

      Quando têm de defender a causa, dão carteirada: falam em nome da “ciência”. Isso é falar de mais alto, como diria o padre Antônio Vieira. Essa, na verdade, é uma característica de qualquer ativismo.

 

4.2  Em defesa de J. K. Rowling: críticas ao ativismo trans

 

Não quero apagar a identidade de ninguém; da mesma forma, não quero que este desabafo seja um gatilho de pensamentos suicidas. O que quero é dizer o seguinte: Virou modinha a tática do “cancelamento”. Mas NINGUÉM (NINGUÉM!) pode “cancelar” J. K. Rowling, que é muito inteligente e prestigiada. Infelizmente, está em xeque a liberdade de expressão. Em grupos de Facebook que supostamente são dedicados aos estudos, à reflexão e ao debate, eu também já tinha sido, por assim dizer, cancelado. Pessoas que se dizem progressistas ou de esquerda apresentam traços claramente fascistas sem que se deem conta de seus mesquinhos atravessamentos ideológicos, que tentam mascarar com fumos pífios de progressismo.

Se Rowling tivesse conseguido chegar a um meio-termo, a uma tese que agradasse a todos, ela a apresentaria fundamentada de público, porém, na visão dela, apagar o sexo biológico como único fator de identidade de gênero é apagar a feminilidade; por isso e por outros motivos se sente ameaçada. Acho que tem razão, e não quer ofender ninguém nem gerar gatilhos psicológicos para o suicídio de pessoas trans: não quer ferir ninguém: apenas sustenta a mesma tese sustentada por pessoas de esquerda. No seu ensaio, J. K. Rowling lembra que o feminismo (e acho que se referiu ao feminismo de esquerda) abraça os homens trans porque, biologicamente ou de nascença, são mulheres.

Tenho certeza de que, se houvesse um caminho que a levasse a um consenso no que concerne à disforia de gênero, ela o teria trilhado de bom grado. Acho que ela gostaria de dizer: “Ativistas, vocês estão certos, no entanto, por favor, lembrem que o sexo TAMBÉM é um dos fatores de identidade de gênero, conquanto tal identidade seja determinada por outros fatores; e procurem lutar por mais e mais pesquisas sobre disforia, pois há quem tenha se arrependido da cirurgia de mudança de sexo; ah, e identidade não depende só de fatores genéticos: o meio de criação também conta”. Se ela, que é claramente progressista ou de esquerda, não reconhece o que afirmam os ativistas e acha que só o sexo determina o gênero aos olhos da sociedade, então algum pano para manga ela tem.

O curioso é que ela é mulher tanto do ponto de vista do sexo quanto do ponto de vista da identidade de gênero, mas mesmo assim dois homens (dois homens cis) refutaram o que ela disse e foi “cancelada”.

Existem tantas pessoas trans agredidas devido à condição delas, que acabaram criando um forte mecanismo de defesa, a exemplo de ativismos de gays e lésbicas: passaram a enquadrar qualquer discurso contrário ao delas no conceito de fobia. Acho que estão errando a mão, o que eu consigo entender: afinal, muitas pessoas trans são rejeitadas só por serem trans. Contudo, é injusto o que fazem contra a autora dos livros de Harry Potter, que, aliás, já é rica (riquíssima) e muito famosa; portanto, como eu já disse, é impossível “cancelá”-la. Eu não gosto do modo como ela encara a caridade (que deve proporcionar um bom abatimento no imposto de renda), mas nem por isso a “cancelei”. Se bem que ela ainda paga muitos impostos. Seja como for, o mundo não precisa de caridade, conforme Isabel Allende, mas sim de justiça.

Acho que Rowling erra a mão quando critica a pornografia, porém é essa a convicção dela e não vejo motivo para boicotar o que ela diz.

Viva J. K. Rowling! Viva o direito de discordar!

Certa vez, li o texto de uma pessoa trans. Criticava Rowling. Segundo o texto, a autora britânica se fia a uma noção biologizante de mulher. Isso sugere que, ao contrário do que diz a turminha da lacração e da carteirada, a Biologia ainda dá razão a Rowling.

De acordo com outra pessoa, que me bloqueou (ou seja: que me “cancelou”), existe uma corrente antropológica que discorda do binarismo sexual. A causa do bloqueio foi o fato de eu ter dito que, certa vez, graças ao ADN (DNA), foi descoberto que um assassino em série era do sexo masculino: o criminoso deixara vestígios. Se não é binário o sexo, então como foi possível a descoberta? O que não é binário, pelo visto, é a identidade de gênero. Esta não deveria ser confundida com o sexo, que é biológico. O curioso é que a pessoa, além de não ter enunciado corretamente a corrente da Antropologia que diz que sexo não é binário, não soube resumir o que ela postula nem demonstrar com o exemplo. Um dos argumentos de quem me bloqueou é o de que a dicotomia XX/XY é ultrapassada, além de ser usada pela ala bolsonarista evangélica. Esqueceu (ou fingiu esquecer) que mesmo no PSOL há, de modo estrutural, quem não aceite o que postulam os ativistas da causa trans: Eu mesmo conheci uma militante do PSOL que se recusava a aceitar que “mulher” trans fosse mulher, e aposto que ainda hoje se recusa. A minha suspeita é que as descobertas sobre mutações, peculiaridades ou idiossincrasias de seres humanos com mais de um Y ou mais de um X (e esse deve ser o caso dos hermafroditas) estão sendo interpretadas ao bel-prazer de ativistas, que usam a “ciência” nas suas carteiradas. Obviamente partidos ganham capital político com a causa trans tanto quanto clínicas de cirurgia de mudança de sexo. Nesse caso, a ciência deixa de ser ciência na medida em que é subservientemente útil ao capital.

Sei que a discussão perde o sentido quando os interlocutores partem de premissas ou de referenciais diferentes uns dos outros ou até opostos uns aos outros. Mas, no nosso caso, a pessoa podia ter tido a paciência de me ensinar. É como se me considerasse um parvo indigno de explicação, como se ele não devesse se rebaixar.

De qualquer forma, não vejo ciência: vejo tão só um ativismo. Se opinião não é ciência, ativismo também não é.

 

CONCLUSÕES

 

            Aí estão as provas cabais da burrice das esquerdas, cada dia mais incapazes de um gesto de união. Sua inépcia em coletar dados, estudar, explicar e demonstrar pelo exemplo é evidenciada pelos insultos, pelas agressões e pela tática covarde do cancelamento. Como não sabem dizer por que defendem o que defendem, boicotam, sob o infame signo da carteirada, que é um tipo de violência simbólica, os que contestam este ou aquele ativismo. Isso, é claro, é muito grave: os que deveriam ser os guardiões da liberdade de pensamento, da liberdade de expressão, agora destroem a liberdade de discordar. Acho que nunca se viu uma geração de adolescentes e jovens adultos tão farisaica quanto a deste início de século: poucas vezes na história pessoas jovens devem ter lutado por proibições, punições, vigilância, censura e boicote. Dificilmente eu vou achar um militante de esquerda que não seja a favor do que eu acabei de enumerar.

          A cultura do cancelamento só não demonstra mais infantilidade do que as carteiradas, que, como diria o padre Antônio Vieira, são o falar de mais alto, o gesto favorito de quem, nos debates, por falta de argumentos, eleva o tom de voz. (Esse é um dos motivos por que não gosto da dialética freiriana: o aluno, que está obrigatória e inevitavelmente abaixo do professor, tem pouco conteúdo; em consequência disso, nos debates em aula, prevalece o senso comum e ganha quem fala mais alto. Na didática tradicional, ao contrário, prevalece, graças à maiêutica, a voz de quem pode criar as possibilidades de construção de conhecimentos que os alunos jamais imaginariam.) A carteirada é o gesto de quem está muito certo das próprias certezas e, por isso, não questiona os próprios paradigmas nem a epistemologia do saber de que se considera porta-voz prestigiado.

             Em tal perspectiva, é uma heresia não ter “ideologia”, isto é: é odioso não assumir a própria bandeira. Pior ainda, na visão dos militantes de smartphone, é dizer que é preciso ser neutro, porque lhes é impossível a neutralidade ou um princípio de neutralidade, e é justamente por causa dessa confusão, uma mistura doida de alhos com bugalhos, que esquecem o compromisso com a objetividade, com a isenção de ânimo, e se declaram porta-vozes desta ou daquela “ideologia”, entendida também como conjunto de ideias ou ideais. Essa última definição qualquer pasteleiro poderia enunciar. A esquerda, que menospreza quem não tem os referenciais que ela supostamente tem, acaba aceitando os conceitos mais vulgares de ideologia, quando deveria se guiar pelos conceitos eruditos, que foram mencionados, explicados e relativamente bem exemplificados neste escrito. Isso seria equivalente à tão alardeada atualização, de que os cientistas das humanidades supostamente são capazes quando produzem artigos acadêmicos.

             O papel da verdadeira ciência é o de desmascarar a ideologia; portanto, não pode ser ideológica. Temos de ser tão sábios quanto os formalistas russos; para isso, devemos abandonar conceitos de fantasmas (refiro-me a Paulo Freire e Bakhtin). Em outras palavras: devemos desfazer o engano segundo o qual a ciência é ideologia, ou seja: é preciso separar aquela desta, assim como os formalistas retiraram os Estudos Literários das influências ideológicas e políticas da Historiografia do seu tempo. No caso da nossa era, a primeira coisa que um bolsonarista dirá é que fazemos ideologia, embora eu, por exemplo, esteja me esforçando justamente para desmascará-la. É com o prestígio científico que venceremos a guerra, e não com a “assunção” de que temos “ideologia” e lutamos pela inclusão, como se fôssemos anjos e santos.

             Outra evidência do engano ledo e cego dos militantes universitários está em que ignoram que o intelectual não pode estar preso a cangas nem pode transferir aos seus interlocutores a visão social de mundo por ele enunciada. Isso equivale a dizer que não pode nem deve ter compromisso com o sectarismo de um partido; da mesma forma, deve conscientizar-se de que é incompatível com o poder a função do intelectual. Não posso, é claro, criticar tão só a juventude militante: lentes de quarenta anos ou mais caem nos conceitos vulgares de ideologia e em outros erros. Numa reunião organizada por estudantes de um diretório, eu mesmo já refutei o dizer infeliz de um professor universitário. De acordo com o dito dele, a esquerda deveria dar consciência de classe ao povo. Ora, a consciência não pode ser doada! É intransferível tanto quanto o próprio conhecimento!

               Apoiar um partido que lute pela coalizão e pela justiça social é uma coisa; calar-se diante de seus erros, como se fosse religião, é outra, diametralmente oposta. Marilena Chauí, por exemplo, já fez críticas negativas ao PT. Ela também refutava visceralmente um dos maiores orgulhos do partido: o surgimento de uma “nova” classe média. Para ela, não existe essa tal, e por isso discorda do Partido dos Trabalhadores, que se gabara do surgimento da “nova” classe média. O que houve foi um crescimento dos direitos econômicos da classe trabalhadora. Pelo que entendi, considera absurda a ideia de uma nova classe média: os direitos econômicos não podem ser uma exclusividade da classe média.

            Que estejamos sendo derrotados com a regularidade do sol deve-se muito, muito, muito mais aos erros das esquerdas do que aos êxitos da direita. Perdemos muito tempo atacando a imagem de um indivíduo, quando deveríamos enunciar, explicar e exemplificar os benefícios da intervenção estatal na economia e a importância do salário indireto em forma de imposto, capaz de garantir o espaço público e os direitos sociais e políticos, tais como saúde pública e escolas públicas. Quando dissemos que é necessária uma justa (e ainda inexistente) distribuição de renda, que só é possível no Estado do Bem-Estar Social, não estamos fazendo ideologia, mas sim enunciando uma verdade científica, fundamentada que é em fatos e métodos objetivos. Esse estado de coisas não só é possível, como também é factível: já vigorou na Europa (e ainda vigora em países europeus, apesar da assustadora ascensão da extrema direita por lá). Se muitos inocentes úteis soubessem o que realmente é a Social Democracia, não teriam votado em Bolsonaro. Bastaria listar cada um dos atributos dela e cada um dos atributos do neoliberalismo sem dar nome aos bois e sem dar nome a partidos nem a personalidades político-partidárias: o Estado do Bem-Estar Social ganharia de lavada em qualquer pesquisa.

            Mesmo se não fosse factível (isto é: mesmo se não houvesse experiências prévias bem-sucedidas), tratar-se-ia de uma utopia, e não de uma ideologia. E a utopia é viável, conforme o dizer de Michael Löwy (1987, p. 12):

 

O pensamento utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo explosivo. O sentido estreito e pejorativo do termo (utopia: sonho imaginário irrealizável) nos parece inoperante, uma vez que apenas o futuro permite que se saiba qual aspiração era ou não “irrealizável”.

 

Se separarmos de vez a ciência da ideologia, admitiremos que uma é inimiga da outra, garantiremos que reconheçam que nossa luta por justiça é fundamentada em dados, e não em “ideologia”, garantiremos prestígio à luta e recuperaremos a chance de desmascarar os despautérios de tal forma, que contra eles poderá se revoltar a população. Teremos de seguir o exemplo dos formalistas russos. Se as cavalgaduras que lotam os campi não puderem fazer isso, talvez os pasteleiros possam: estes devem ser humildes, enquanto aquelas não, e a humildade permite que o estudante se abra para o conhecimento e questione seus pressupostos.

 

Referências

 

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[1] Primeiro rascunho concluído em Guarapari (ES), em 11 de janeiro de 2021. Última revisão: Guarapari (ES), 22 de janeiro de 2021.

 

[2] Nascido em 10/5/1990, no Rio de Janeiro. Criado em Imbariê, 3º distrito de Duque de Caxias (RJ). É licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor concursado. Mora no Espírito Santo há dois anos e vive no município de Guarapari há um ano.

 

[3] Refiro-me ao estranhamento, um efeito que se produz quando o leitor é tirado do lugar-comum ou da zona de conforto e encara o conteúdo do texto literário como se pela primeira vez estivesse entrando em contato com seu teor. Em outras palavras: é o que acontece quando o leitor olha de modo inédito para um objeto ou tema. Exemplo (tirado do poema A satisfação de ser ateu): “Posso, ao entrar no quintal, /Olhar, pendurada no varal, /A calcinha da vizinha, /Que eu seco de olhar, /Sem medo de pecar, /Em orações e louvores/ Ao meu fetiche de tecido branco” (M. A. O.). Trata-se da singularização de uma imagem banal, conforme o postulado de Viktor Borisovich Chklovski (1978, p. 39-56).

[4] Em tempos de interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e outras “revoluções”, não deveria ser tão necessário fazer um exercício de diacronia do pensamento linguístico para mencionar Saussure. Para ele, o sintagma eram as escolhas realizadas, ao passo que o paradigma eram as escolhas possíveis. Assim, a frase “Quero quebrar o jejum” pode dar lugar à outra ou a outras, tais como “Quero tomar café”, “Quero fazer o desjejum” e “Quero fazer a primeira refeição do dia”. Para a Sociolinguística (ou Linguística Variacional), iniciada por Guilherme Labov, assim como para o pragmatismo das relações humanas, cada uma das variantes (isto é: cada uma das escolhas possíveis) pode ser pedante ou mais pedante, formal ou mais formal, enquanto as outras seriam naturais ou mais naturais, monitoradas ou menos monitoradas. Para a Ecdótica (também conhecida como Crítica Textual), é necessário examinar as variantes de uma mesma variável quando o texto de base (ou texto-base), que é o que corresponde à vontade do autor, não foi devidamente estabelecido por ele, que, assim como revisores e editores, pode alterar o texto; a diferença, é claro, está em que revisores e editores podem adulterar o escrito, por isso a Ecdótica acaba sendo uma restauradora ou curadora da Literatura. Mesmo as teorias tradutológicas reconhecem a escolha de palavras por parte do tradutor. Contudo, não creio que seja preciso chegar a tantos detalhes: Saussure era, a menos que eu me engane, um linguista estruturalista; a A. D., a seu turno, é uma disciplina funcionalista, porque se preocupa com o modo como a ideologia condiciona ou influencia o funcionamento do idioma, e não com os componentes da língua. Existe a noção de que uma estrutura A pode, na verdade, produzir o sentido de B (é o caso das frases ambíguas), como quando se diz “Maria e Ângela usaram o mesmo vestido na festa”. A intenção pode ser a de dizer que usaram vestidos idênticos, e não a de dizer que a mesma peça de roupa cobriu dois corpos ao mesmo tempo. Isso, a menos que eu me engane, tem que ver com Chomsky, com a Análise da Conversação e talvez até com a Teoria da Enunciação. Com todo este palavrório estou querendo dizer isto: Às vezes, tenho a impressão de que os partidários da A. D., qualquer que seja a corrente, encaram-na como se sempre existisse no mundo, de modo que a tratam como se fosse uma ciência exata ou absoluta. Parece que esquecem que é tributária da História, da Psicanálise e da própria perspectiva saussuriana.

  

[5] Em tempos de oba-oba sociolinguístico, há quem faça questão de falar e escrever todOs e todAs, namoradOs e namoradAs, etc. Ironicamente, há quem não esteja fazendo questão de usar poetisa, como se poeta fosse substantivo comum de dois gêneros. Sabem as palavras bacharel e mestre? Pois bem: cada uma delas pode ser passada para o feminino, assim: bacharelA; mestrA. Por que bacharelas e mestras não usam o feminino? Por que usam o masculino quando se referem aos próprios títulos acadêmicos? Não ficaram sabendo das causas feministas? Seja como for, trata-se de “palavras, palavras, palavras”, como diria Shakespeare. Nem sempre elas são ditas por pessoas honestas, nem sempre correspondem à realidade, nem sempre a modificam. O PSDB, por exemplo, de social democrata só tem o nome mesmo. Falsear ou alterar a própria linguagem é tapar o sol com a peneira, até porque problemas sociais complexos, como o machismo, exigem soluções complexas. Já disse a personagem Helena, a de Machado de Assis, que se o interlocutor pensar demais, não será honesto. Pensar muito antes de falar pode ser uma forma de autocensura, condição principal do fingimento que influencia a escolha de palavras. A censura é de dentro para fora, mas o que a determina é de fora para dentro. Censura não é o mesmo que abandono de preconceitos.

 

[6] A quem interessa a mordaça que o ensino básico e a BNCC põem na boca da Literatura?

 

O que eu vejo nos Estudos Linguísticos é, por mais que neguem os seus mais proeminentes e famosos divulgadores, um infame e obsceno apoio ao esvaziamento do currículo. Hoje, a BNCC, que é uma vergonha, é a institucionalização da desliteraturização do currículo. Não há mais a disciplina Literatura, uma barbárie que é o extremo oposto daquela de que cogitou Roland Barthes. Não sei se há reducionismo dos postulados de Antônio Marcuschi e Bakhtin, mas o fato é que o currículo se apega a uma nomenclatura de gêneros textuais e faz dela um fim, e não um meio. Assim, confirma a banalização dos gêneros prosaicos. Se Platão queria que da pólis fossem expulsos os poetas, os linguistas, muitos dos quais nunca lecionaram no chão da sala de aula dos ensinos fundamental e médio, razão por que não têm a empiria nem propriedade para falar dela (e aqui eu me remeto à dialética que se dá entre a experiência e a teoria tal como Kant a concebeu antes mesmo de Hegel), conseguem, talvez involuntariamente, reafirmar o esvaziamento do currículo em nome de uma falsa inclusão e reforçar a desliteraturização. Memes e anúncios de biroscas são mais importantes para a BNCC e para os linguistas do que os textos dos grandes autores, que eram gênios. Curiosamente, não me lembro de os professores da educação básica terem sido consultados para a elaboração da última BNCC, feita em 2016 com o parecer de quem acha que pode dizer o que se pode e o que não se pode ensinar nas aulas de Português e “Literatura” dos ensinos fundamental e médio, embora muitos cientistas, chegados que são ao oba-oba pedagógico, nunca tenham dado aulas na educação básica. Também não me lembro de ter lido pareceres de mestres e doutores em Estudos Literários: eu só me lembro do parecer de quem está nos Estudos Linguísticos, e não nos Estudos Literários. E por que eu deveria esperar o oposto ou algo diferente? Literatura não é mais uma disciplina: está embutida nas aulas de Português que nem uma peça de roupa enfiada de qualquer jeito numa gaveta. Obviamente vão dizer, talvez com base em Morin e outros pedagogistas, que isso evita a fragmentação do saber e promove a “interdisciplinaridade” ou a “transdisciplinaridade” e certas “competências”. Em suma: vão sempre usar baboseiras pedagógicas que racionalizem, num gesto inerente ao mecanismo de defesa, os delírios e as burrices da pedagogia moderna. A Pedagogia e os Estudos Linguísticos, presos a delírios e tolices, não se dão conta de nada disso, e ai de quem ousar criticar esse estado de coisas. Os Estudos Culturais, por sua vez, tentam absorver a Teoria da Literatura. É preciso fazer ecoar uma voz dissonante contra esse despautério. Pergunto: A quem interessa o silenciamento da Literatura? Resposta: Trata-se de uma determinação de Estado, que, em verdade, é uma determinação de mercado. Mas há muito mais: Na ânsia de promover uma suposta inclusão social, num exercício cínico e escolanovista de otimismo pedagógico, alteram o currículo propedêutico e todos os outros currículos (um deles é o currículo oculto), porém promovem tão só uma inclusão social às avessas, que aparentemente é feita em nome do direito à educação. Na verdade, é tudo feito em nome de verbas públicas, boa parte das quais vai para o bolso de editoras e empresas de equipamentos escolares, e de promoções nos quadros dos magistérios públicos, atitude análoga à de Eichmann, de que nos fala Hannah Arendt. Os ativistas que defendem a “inclusão” e a “pluralidade”, muitos dos quais nunca lecionaram nos ensinos fundamental e médio ou simplesmente nunca lecionaram em nível nenhum de ensino, pregam, sem base científica, que a educação é a base de tudo. Ora, a educação está na superestrutura, de que fala Marx. Ela não é a base da sociedade: a sociedade é que é a base da educação. Num país em que escorre esgoto a céu aberto, é impossível que a justiça social e a democracia comecem pela escola. Menos com menos dá menos.

[7] Em pelo menos uma de suas aulas magnas ou palestras, Marilena Chauí faz a distinção entre mito e ideologia. Adota o conceito de mito fundador. Para ela, os mitos são o suporte para a ideologia.

 

[8] Não podemos culpar os professores: cada um deles é vítima, e não algoz. Vera Corrêa (2000, p. 119-20), numa pesquisa que, apesar de ter sido realizada há praticamente 21 anos, é mais atual do que nunca, registra as seguintes informações, extraídas de entrevistas: “Nas falas das professoras sobre as mudanças na função social da escola pública nesta década persistiram as imagens já retratadas: insatisfação quanto às condições de trabalho docente (como baixos salários, aumento da jornada de trabalho, etc.) e relacionadas com a organização do processo de trabalho na escola (como relações de poder e controle, fragmentação e formas de resistência das professoras). Atribuíram a culpa à própria escola e a seus professores, o que equivale a culpar as vítimas”. Esse é um dos poderes do neoliberalismo econômico. Em outras palavras: esse é um dos poderes nefastos da ideologia.

[9] Parte considerável dos professores da educação básica é vítima da mais-valia, dos contratos temporários e da subproletarização. No entanto, acham que estão na classe média só porque conseguem um salário médio, embora, para isso, tenham de trabalhar em duas escolas ou mais, em dois turnos ou mais. Tornam-se, assim, vendedores de aula. De grão em grão a galinha enche o papo. Mas não se veem como galinhas: acham que podem ser como um pato, o tio Patinhas: o acúmulo de algum dinheiro e o exercício de direitos econômicos básicos criam a ilusão de pertencimento a uma classe a que não pertencem. Fazem questão de bônus-desempenho e tantas outras migalhas, como galinhas malfadadas que ciscam no chão à procura de grãos de milho. Isso faz que eu me lembre de minha avó paterna, que criava galinhas. Que bichos burros! Que aves estúpidas! Não voam, deixam resquícios de evacuação pelo chão todo, transitem um vírus da gripe e piam de alegria diante da mão que lhes atira a comida. A mão que as alimentava era a mão que as degolava.

[10] No Tinder, conversei com uma pedagoga que adorava Paulo Freire. Revelei algumas de minhas críticas. Algum tempo depois, desfez a conexão.

 

[11] Graças ao último acordo ortográfico, escreve-se freiriano, e não freireano.

[12] Daí a necessidade de termos muito, muito cuidado com Paulo Freire, para quem não devem trabalhar na educação os que nela não acreditam. Ele, que não era licenciado em Pedagogia, mas era bacharel em Direito, reforça o entusiasmo pela educação e o otimismo pedagógico, que são extremamente úteis à direita e ao capital. Não é à toa que ele, que não gostava de que a professora fosse chamada de tia, se tornou pai da educação. Com efeito: as palavras pai, pátria, patrono e padre são cognatas. Ele é patrono da educação brasileira.

[13] Montaigne não gostaria de uma educação livresca.

[14]             Eis dois fenômenos que as cavalgaduras dos magistérios ignoram: a mais-valia e o utilitarismo. É por saber da existência desses tais que digo isto: as diaristas, os garis, os motoristas de ônibus, os cobradores e tantos outros trabalhadores merecem ganhar mais do que o professor do segundo segmento do ensino fundamental e do ensino médio. E digo mais:

Toda diarista e toda doméstica merecem um salário de R$5.000,00. É indispensável o trabalho delas. Sei disso porque tenho de varrer, limpar o vidro das janelas, tirar o pó do teto, dos móveis, da borda das janelas, dos portais e das portas, polir os móveis, a borda das janelas, os portais e as portas, varrer de novo, passar pano no chão, lavar roupa, passar roupa, lavar o banheiro, lavar a varanda, lavar a louça, secar a louça, limpar o armário da cozinha, limpar o fogão, limpar a geladeira por dentro e por fora e ariar as panelas e as torneiras.

O serviço doméstico segue a lógica utilitarista, que é a lógica econômica. Ora, a economia (da qual o mercado é só uma fração, uma fração mesquinha) é a produção de bens e serviços; portanto, é o suporte da própria vida. Esta, é claro, é mais importante do que qualquer diploma.

Abaixo a mais-valia das diaristas (que já têm o status de profissionais liberais) e das domésticas! Abaixo a elitista divisão social do trabalho!

(Dica para a classe média e para os pobres soberbos: Se não for possível pagar um salário de R$5.000,00 às trabalhadoras, tirem os adolescentes e as crianças do computador, da televisão, do videogame, do tablet ou do celular: obriguem cada um deles a fazer o serviço doméstico. Isso evitará a formação de uma geração de preguiçosos imprestáveis.)

[15] Daí a necessidade de reconhecer a hipocrisia do discurso que diz que a escola é caminho de justiça social. Mas então ela não pode promover mobilidade social? Não é ela um dos mais importantes caminhos para que qualquer um tenha igualdade de oportunidades para exercer a função que esteja de acordo com suas inclinações ou talentos? Em tese, sim, mas ela não poderá fazer isso enquanto estiver subordinada à hegemonia do neoliberalismo econômico. Nas palavras de Thomas Piketty (2014, p. 471), “em todos os países, por todos os continentes, um dos principais objetivos das instituições educativas e das despesas públicas de educação é possibilitar certa mobilidade social. O objetivo reivindicado é que todos possam ter acesso à formação, qualquer que seja a sua origem social. Em que medida as instituições existentes realmente alcançam tais objetivos?”. E continua no parágrafo seguinte (destaques meus): “Vimos na Terceira Parte que a elevação considerável do nível médio de formação que se deu no século XX não permitiu reduzir a desigualdade da renda do trabalho. Todos os níveis de qualificação se elevaram (o diploma de ensino fundamental de antes é equivalente ao de ensino médio de hoje; se antes era preciso ser formado numa faculdade para exercer certa função, agora se exige um doutorado). Considerando as transformações técnicas e do mercado de trabalho, todos os níveis de salários progrediram em ritmos semelhantes, de modo que a desigualdade não se alterou. A questão que nos colocamos agora é a da mobilidade: a massificação do ensino permitiu uma renovação mais rápida entre vencedores e perdedores dentro da hierarquia das qualificações, para uma dada desigualdade? De acordo com os dados disponíveis, a resposta parece ser negativa: a correlação intergeracional entre diplomas e rendas do trabalho, que mede a reprodução das hierarquias no tempo, não parece manifestar uma tendência de baixa no longo prazo e parece até mesmo manifestar uma tendência de aumento mais recente”. Resta a discriminação: impor graus de escolaridade para serviços domésticos, por exemplo, é uma prática elitista que assume a forma de violência simbólica. A educação escolar deixa de ser um direito para ser uma obrigação.

[16] No Tinder, apresentei esses argumentos a uma feminista. Algum tempo depois, desfez a conexão. Ela já não tinha gostado de uma outra ideia minha, uma proposta de revolução cultural: homens casados deveriam urinar sentados. Esta última ideia também me rendeu um bloqueio no WhatsApp.

 

[17] Tudo indica que Aline Duque Erthal consultou a seguinte fonte: SENA, Jorge de. Uma autodefinição. In:  SANTOS, Gilda (org.). Jorge de Sena: ressonâncias e cinquenta poemas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

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