sábado, 24 de fevereiro de 2018

A RETÓRICA FALADA USADA COMO CABRESTO



“Há de tomar (...) uma só matéria, há de defini-la (...), há de dividi-la (...), há de prová-la (...), há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos (...), há de impugnar e refutar (...) os argumentos contrários.  (...)  e o que não é isto é falar de mais alto.”  (Padre Antônio Vieira, mencionado por Ulisses Infante em Curso de Literatura de Língua Portuguesa.)

            Pastores evangélicos contam com um poderoso instrumento de persuasão e controle: a palavra falada, que é muito diferente da palavra escrita.  Esta não conta nem com as inflexões de voz, nem com os gritos, nem com os gestos corporais.  Essas linguagens não-verbais são poderosos instrumentos que auxiliam o discurso falado e, portanto, o ofício de dominar rebanhos de espíritos pobres, doentes, iletrados e pouco críticos que vão à igreja.
            Como muitos dos pastores são iletrados, é natural que usem a oratória, e não a retórica escrita.  Contudo, mesmo se fossem mais cultos, não se atreveriam a depositar suas chances de ascensão e dominação apenas nos discursos redigidos: a plebe rude que manipulam não lê, e, para eles, isso é muito vantajoso, pois que podem recorrer à retumbância, ao impacto da entonação e do grito (que continuariam a ser as suas ferramentas preferidas mesmo se os manipulados fossem leitores; a prova disso é Hitler, que não dependeu do seu livro, Minha Luta, para dominar a Alemanha: dependeu da oratória hipnótica).  Independentemente do grau de letramento do pastor, para ele é indispensável a oratória inflamada.
            Um exemplo: Se eu escrevo: “Conseguimos um crescimento de apenas 1%, enquanto os outros países conseguiram um de 30%”, há informação pura e simples: não comove (com exceção de casos de pessoas que dependam de um crescimento muito acima de 1% para evitar um ataque do coração, por exemplo) nem influencia a opinião do leitor de forma muito explícita.  Mas se eu falo: “Conseguimos um crescimento de apenas [aqui a voz fica baixa e fina; o rosto se contorce] 1%, enquanto os outros países conseguiram um de [aqui o falante aumenta o tom da voz sem deixar de erguer as sobrancelhas] 30”.  Essa técnica os pastores conhecem, e levaram-na ao extremo.  O 30 fica destacado, o ouvinte perde a capacidade de pensar na diferença entre porcentagens e números reais e se deixa levar pelo sentimento que cega.
            Não é de surpreender que prefiram os sacerdotes protestantes a oratória à redação: herdaram dos judeus o hábito de valorizar a audição para “ouvir a voz de Deus”, ao passo que a visão, sentido que, segundo leio, era mais valorizado pelos gregos, ficou em segundo plano.  Mas é pela audição que vem a cegueira.
            Conclamo que todos os professores de língua se rebelem contra a manipulação dos pastores.  É fundamental que esclareçamos os espíritos para que não sejam possuídos pelas ideias danosas das igrejas.  Para isso, é fundamental uma educação linguística de qualidade, uma educação que contemple a prática de bem falar e a de bem escrever aliadas à dialética e à dialógica: só elas podem evitar que inocentes caiam nas armadilhas de quem só convence por falar mais alto.

(Márcio Alessandro de Oliveira, professor de Literatura, Português e Redação.  Imbariê, 30/5/2015.)