domingo, 12 de agosto de 2018

CARTA DE AMOR A FULANA


Imbariê, bairro sede do 3º Distrito de Duque de Caxias.  De 18 a 25 de abril de 2018.

            Prezada Fulana:

            Sei que é extremamente incomum que uma pessoa se apaixone por outra sem que se conheçam muito bem.  Mais incomum é que um sujeito fique escrevendo versos para a amada em pleno século XXI. Só que eu não consigo esconder meus sentimentos, que borbulham quando eu a vejo passar: estou perdidamente apaixonado por você, que é um dos poucos motivos pelos quais ainda bate meu coração, cujo ritmo acelera como as batidas de um tambor quando eu a vejo.  É preciso ter coragem para declarar o amor, mesmo que haja o risco de ele causar estranheza.  (Não tenho opção: acho que em breve estarei saindo do estado do Rio por conta de alguns concursos públicos que prestei; então tenho de aproveitar minha estada aqui.)  Seu olhar, cuja ternura é irresistível, arrebatou meu coração como um clarão de luz arrebata um crente que, à espera do dia em que será levado ao paraíso, ascende aos céus depois de ser sugado pela coluna de luz.  O equilíbrio cósmico do universo repousa com absoluta simetria em seus olhos, que me conquistaram desde a primeira vez em que a vi na Praça de Imbariê (e também na segunda ocasião, que foi o Festival de Artes de Imbariê).  E ainda nem mencionei o seu sorriso, que, como diz a canção, de tão resplandecente, deixou meu coração alegre. 
            Você deve ter notado que no poema que escrevi para você há uma exaltação da sua figura.  Talvez essa exaltação seja uma forma de objetificar você, apesar de essa interpretação não me agradar nem um pouco.  Ainda que eu seja favorável ao feminismo, sou obrigado a reconhecer que muitas noções masculinas e machistas podem ter condicionado o modo como descrevo você naqueles versos: mesmo que minha intenção não tenha sido a de estereotipar ou reduzir a sua figura a um objeto de contemplação, posso ter feito isso por causa de uma visão de mundo da qual nem sempre consigo escapar.  Afinal, por mais que eu não queira, sou influenciado e favorecido pela mentalidade machista.  Caso você tenha notado essa redução em forma de objetificação, deixo aqui o meu pedido de desculpas.  (Florbela Espanca, uma poetisa de Portugal, conseguia exaltar o homem amado, mas, embora eu não consiga me lembrar direito dos versos que ela escreveu, acho que ela fazia isso com uma maestria da qual nem chego perto quando escrevo sobre você.)
            Na verdade, você vai ter de me perdoar duas vezes, porque você é um anjo, um ser celestial.  Nem o mais incandescente dos astros brilha tanto quanto sua graciosidade; nem o mais pálido raio de luar é mais puro e alvo do que o seu rosto juvenil; nem a mais suntuosa e mais polida moldura de ouro é tão resplandecente e firme quanto os seus olhos; nem os mais belos véus de água de cachoeira são tão bonitos e puros quanto os seus cabelos; nem o mais límpido céu é tão perfeito quanto você, por quem Deus deveria descer à Terra, onde proclamaria a eternidade da primavera, que passaria a ser estação única.  Tivesse eu o poder, ergueria um grande templo para fazer culto à sua imagem.  Eu seria um religioso xiita que faria sacerdócio do cultivo do meu amor por você, a quem eu ergueria um grande monumento, uma grande estátua feita à sua imagem e semelhança (preferencialmente em frente a igrejas em que se concentram homofóbicos e lgbtfóbicos), e em torno dela, montado em Pégaso, eu faria muitas e muitas reverências para pagar tributo.
            Costumo dizer que sou ateu e comunista de carteirinha, mas, como diz Mário Quintana no poema Cocktail Party, “somos democratas e escravocratas”; então, posso ser e não ser ateu ao mesmo tempo.  Digo que sou ateu e comunista por razões políticas.  É um modo de fazer oposição a valores falsos, como a misoginia, o machismo, a homofobia, a meritocracia e a teologia da prosperidade, ideias perigosas que estão em entidades religiosas que se aproveitam da ignorância de muitas pessoas.  Por isso eu gostaria de viver numa sociedade em que Marilena Chauí, Márcia Tibúri e Simone de Beauvoir fossem algumas das referências nas conversas entreouvidas nas ruas por onde ando.  Na verdade, deveriam ser referências no mundo todo, um mundo ideal em que, como diz Fábio Altro, da banda Dance of Days, na canção Se essas paredes falassem, “Marte ama Marte,/ e Vênus pode passear/ De mãos dadas com Vênus sem se preocupar”.  Espero que, como professor de Literatura, Português e Produção Textual, eu consiga mudar isso.  Imagino que você, que faz o curso Normal, também deseje mudanças sociais.  Diz Paulo Freire que mudar é difícil, mas não impossível.  Acredito na utopia.  E acredito também na necessidade de lutar.  Sabe...  em Harry Potter e o Enigma do Príncipe (página 504), há uma passagem em que Harry se lembra da necessidade de lutar; é assim:

E Harry lembrou-se do pesadelo que fora sua primeira ida à Floresta, a primeira vez que encontrara a coisa que então era Voldemort, e como a enfrentara, e como, pouco tempo depois, ele e Dumbledore tinham discutido as razões de se travar uma batalha perdida. Era importante, dissera Dumbledore, lutar, e recomeçar a lutar, e continuar a lutar, porque somente assim o mal poderia ser acuado, embora jamais erradicado.

               Uma das formas de luta é a arte.  A arte é forma de existir e também de resistir.  E isso porque é uma forma de sonhar.  Os fuzis e outras armas de fogo estão nas ruas do bairro, mas mesmo assim eu lhe escrevi um poema de amor.  Onde há trevas, a arte projeta luz (espero que essa luz banhe o mundo e nele transborde).  A propósito: amar é um gesto político.
            É bem provável que você não queira nada comigo.  Mas quero que saiba que, mesmo que jamais haja a menor chance de aproximação amorosa, vou gostar muito de pelo menos ser seu amigo — se você permitir, é claro.  Se você não permitir nem uma coisa nem a outra, vou aceitar de modo resignado e continuar desejando, com admiração, que você continue sendo essa pessoa maravilhosa.  (Caso algum dia cheguemos a ter uma aproximação, e ela der em casamento, você precisará de paciência para lidar com um homem que vive dos estudos linguísticos e literários e para eles.  Também vai precisar lidar com o ciúme, pois terei duas amantes: Dilma Rousseff e Marilena Chauí.  É que cada uma delas ainda dá um caldo, rs.)  Brincadeiras à parte, você transmite boas vibrações, boas energias, e elas reverberam pelo cosmo, do qual me aproximo graças a elas.
            Sempre que precisar de ajuda, e eu puder ajudar, poderá contar comigo: estou às ordens: eu me coloco a seu serviço como um vassalo.  E desejo a você toda a felicidade do mundo, do fundo do coração deste poeta amador.
            Aguardo resposta.
            Sinceramente,

            Márcio