domingo, 31 de janeiro de 2021

A morte e os insólitos em Diógenes Magalhães

A morte e os insólitos em Diógenes Magalhães[1]

 

Márcio Alessandro de Oliveira[2]

 

“O medo é o eterno companheiro do homem, e não há indivíduo que não experimente a tortura do medo em diversas ocasiões da vida. Aliás, herói não é aquele que não sente medo, e sim aquele que enfrenta o perigo apesar do medo.” (Fausto Cunha, em prefácio do livro Neurose no Corpo.)

 

“Como querem que nos sintamos seguros nesse mundo tumultuoso?” (Diógenes Magalhães, 2006, p. 115.)

 

Resumo: A poética do pernambucano Diógenes Magalhães (1924-?) explora a morte e os insólitos, motivo por que esta investigação examina o modo como tais temas comparecem num corpus formado por poemas do livro Síndrome do Pânico (2002) e excertos de Acuso! (1986) e Neurose no Corpo (2006), dois livros de prosa. Uma vez que é preciso verificar se a literatura do autor pode ser reduzida a sua neurose e sua biografia, usam-se fontes que fornecem traços biográficos em consonância com afirmações que vão desde as ponderações de Tzvetan Todorov às de Antonio Cândido, além das teorias de Pierre Bordieu, que explicam a posição de Diógenes Magalhães no que o francês chamava de campo intelectual. Coadunam-se princípios teóricos de tais estudiosos com a metodologia, que consiste em, conforme a definição de François Jost (1994, p. 334-347), “diacronia e sincronia, analogias, dedução, indução, escolha de temas, motivações e influências entre autores”. Como pesam os paratextos, quer sejam autorais, quer não, a atribuição de sentidos às imagens inoculadas por Diógenes Magalhães em seus versos (alternados entre decassílabos e livres) e em seus desabafos em forma de prosa e as indagações em torno delas dependem de tais paratextos tanto quanto o horizonte de expectativa do leitor e seus protocolos de leitura, preparados para a singularização de imagens e para o uso especial do idioma (a literaturidade). Estes geram o estranhamento na medida em que o autor tem o poder de sair do lugar-comum sem deixar de revelar forte intertextualidade com Augusto dos Anjos (1884-1914), com quem é inevitavelmente comparado, e ligeira intertextualidade com Bram Stoker (1847-1912) e Mary Shelley (1797-1851).   

 

Palavras-chave: Diógenes Magalhães. Fantasma. Insólito. Morte. Vampiro.

 

INTRODUÇÃO

 

Debruça-se este artigo sobre um corpus[3] retirado da obra do pernambucano Diógenes Magalhães, autor que nasceu nos anos 1920 e aparentemente ficou à margem dos cânones brasileiros. O supracitado corpus é formado pelos seguintes poemas, extraídos do livro Síndrome do Pânico (2002): “Uma réstia de alho para Drácula” (p. 161), “O monstro” (p. 158), “O convívio do silêncio” (p. 149), “Desintegração” (p. 91), “Maldição” (p. 94), “Necrotério” (p. 89), “Pesadelo” (p. 87), “Encarnar, Desencarnar, reencarnar” (p. 68), “Síndrome do Pânico” (2002, p. 86), “Reencarnação, queima de carma” (p. 6) e “Profecia.” (p. 52). Também foram selecionados trechos em prosa dos livros Neurose no Corpo, Acuso! e Meu Diário de Menino. A intenção da presente análise é a de verificar o modo como a morte, o vampiro, o fantasma, os cadáveres e outras representações do medo aparecem na literatura de Diógenes Magalhães: Seriam meros sintomas neuróticos? Poderia a literatura do pernambucano ser reduzida a um sintoma neurótico? Caso pudesse, isso apagaria as cores locais? Estas permitem que se comprove que, mesmo que a literatura introspectiva e subjetiva revele visões do eu e sua interioridade, a literatura é historicamente condicionada, ainda que não seja uma cópia ou um espelho fiel da realidade. Por ser necessário procurar pontos de contato com outros autores, dentre os quais o que mais se destaca é Augusto dos Anjos (1884-1914), estabeleceu-se que a metodologia consiste em “diacronia e sincronia, analogias, dedução, indução, escolha de temas, motivações e influências entre autores” (JOST, 1994, p. 334-47). Destarte, vai-se, conforme Tzvetan Todorov, da obra particular ao gênero e do gênero à obra particular. “É legítimo observar, no interior de um texto”, declara Todorov (2017, p. 151), “a relação que se estabelece entre a cor do rosto de um fantasma, a forma do alçapão pelo qual desaparece, o odor singular que deixa este desaparecimento”, e isso, é claro, vai ao encontro do fato de que “toda uma infinidade de gêneros ou subgêneros híbridos em que a irrupção do inesperado, imprevisível, incomum seja marca distintiva” (GARCÍA, 2012, p. 14 apud PETROV, 2016, p. 95). Esse trabalho de avaliação julga um caso particular (uma obra) para confrontar os elementos com o que postula a teoria, de modo que se verifique o que há de diferente e o que há de conhecido no texto. Dessa forma, vai-se do particular ao geral (isto é: da obra específica ao gênero literário a que pertence) e vice-versa. Como seus textos são muito introspectivos, será necessário aplicar uma das três vias de projeção de Todorov: a biográfica. Esta não anula a historiográfica. Do ponto de vista estrutural, é necessário destacar não apenas os procedimentos estéticos, de que fala Viktor Choklovsk (1978, p. 39-56), mas também a literaturidade (uso especial do idioma), de que fala Terry Eagleton (2006, p.8-12) a propósito dos formalistas russos, nos poemas selecionados e nos excertos de prosa por destacar. Também se faz mister identificar o binômio imanência/transcendência. Serão levados em conta outros condicionantes do horizonte de expectativas, do protocolo de leitura e da produção de sentidos, a saber: os paratextos, quer sejam autorais, quer não.

 

1.      A vida e a obra do autor

 

Muito pouco se sabe a respeito da vida de Diógenes Magalhães. Embora ainda não tenha sido possível examinar certas fontes primárias, tais como certidão de nascimento, certidão de óbito e documentos pessoais, aqui e ali foram colhidos dados biográficos, boa parte dos quais está nos livros Meu Diário de Menino, Acuso! e Redação com base na Linguística (e não na Gramática). Nasceu nos anos 1920 (em 1924), formou-se em Direito, trabalhou no Banco do Brasil e dava aulas de Português em cursos preparatórios (possivelmente para complementar a renda).

A isso se soma a falta de reconhecimento no campo intelectual, conquanto conseguisse vender muitos livros seus por conta própria, a ser verdade o seguinte trecho de notícia do site Overmundo, que se refere ao pequeno sucesso comercial do livro Redação com base na Linguística (e não na Gramática):

 

O livro, em si, tem um acabamento bem simples, com capa manual e impressão convencional. Pode ser encontrado facilmente, pois a tiragem de dois mil exemplares desta sétima edição de seu livro, feita no meio do ano passado, está longe de acabar. Mas alerta que a edição anterior se esgotou em apenas um ano. Portanto, se quiser ter contato com uma visão polêmica, sincera e interessante sobre o uso do português no dia a dia, vale conferir a obra de Diógenes Magalhães. Que pode não ser famoso, mas tem suas próprias armas para defender o que acredita ser um dos maiores bens de uma nação: sua língua.

 

            O livro dava prejuízo ao autor: “o preço de venda”, informa o Overmundo, “equivale a 2/3 do preço de produção. ‘É a minha depressão. Eu estou pagando pra ver’, desabafou Diógenes[,]que, em seguida, complementou: ‘Eu fiz tratamento para esta depressão, mas estou me curando fazendo livros’”.

Diógenes é um autor pouco ou nunca estudado: seu nome não aparece em manuais de Literatura nem em artigos acadêmicos. Estaria acontecendo com ele o que aconteceu com Augusto dos Anjos? Quais seriam os fatores do pouco reconhecimento a ele dispensado? Sabe-se que se opunha aos valores estéticos de Mário de Andrade (1893-1945), que, no dizer do pernambucano, usava um linguajar chué:

 

Como ficarão as Memórias Póstumas de Brás Cubas quando forem traduzidas para “brasileiro”? (Sim, porque Machado de Assis escreveu em português, e portanto os livros dele têm de ser traduzidos.) E A Ilustre Casa de Ramires — como ficará? Todo aquele encanto do estilo de Eça de Queirós desaparecerá quando o livro passar ao linguajar chué de Mário de Andrade (MAGALHÃES, 1995, p. 57).

 

            Diógenes também se considerava linguista, e como tal defendia ideias extremamente conservadoras. Curiosamente, foi rejeitado várias vezes pela Academia Brasileira de Letras,[4] conforme notícia do site Overmundo (de 12 de maio de 2006):

 

A carreira de Diógenes como escritor, em verdade, é bem longa. Já publicou mais de vinte livros, entre prosa, poesia, livros de estudos de línguas e outros. Alguns, inclusive, por grandes editoras, como a Ediouro. Mas, quanto ao Redação..., saiu independente (pelo próprio selo, chamado Edições Coisa Nossa) porque ninguém se interessou em publicar. “Procurei as quatro maiores editoras do estado, mas nenhuma aceitou”, afirmou, resignado. Ainda assim, tem motivos para se animar: está concorrendo, pela 27ª vez, a uma cadeira na ABL. Conta, inclusive, que em uma das votações passadas soube ter recebido seis votos. “Mas eu faço por fazer, eu não quero mesmo entrar. Da 1ª vez, inclusive, foi de brincadeira”, conta o escritor.

 

Algumas de suas teses e fundamentações poderiam ser discutidas, desconstruídas e até aproveitadas nos Estudos Linguísticos (sobretudo numa linha de pesquisa que contemplasse os comandos paragramaticais, de que fala o professor Marcos Bagno). No entanto, essa possibilidade de pesquisa foge ao escopo deste projeto, e só é aqui mencionada porque as teses linguísticas mantêm vínculo com os escrúpulos estilísticos do autor pernambucano. Três são os fatores que podem ter determinado sua marginalização na vida intelectual: a escolha de temas, sua recusa em aceitar como digno o estilo de Mário de Andrade (recusa que é apenas uma de várias amostras de suas concepções linguísticas e estilísticas) e suas críticas à Academia Brasileira de Letras (doravante ABL), a qual, segundo depoimento do autor registrado numa rede social,[5] não era séria por ter apoiado Getúlio Vargas. Pode-se dizer que a posição que ocupava no que Pierre Bourdieu chama de campo intelectual (formado por editoras, críticos, leitores) era bastante singular. Com efeito: Pontuando a dependência do intelectual em relação à imagem e ao julgamento que dele faz o público, Bordieu afirma que ele pode rejeitar a personagem que ao intelectual atribuem, mas não pode ignorá-la; a verdade do projeto criador é dada pela recepção social, “porque o reconhecimento dessa verdade está contida num projeto que é sempre projeto de ser reconhecido” (1968, p. 114).  Contudo, há obras que tendem a criar o seu público, ao passo que existem as que por ele são criadas. Para Bordieu, “‘autores de sucesso’ são [...] os objetos mais [...] acessíveis aos métodos tradicionais da Sociologia, já que se pode supor que as pressões sociais [...] dominam em seu projeto intelectual” (1968, p. 115). Ora, Diógenes não se sustentava com a literatura: sustentava-se com o salário de servidor do Banco do Brasil. Segundo afirma o supracitado intelectual francês (1968, p. 105-45), todo sentido público da obra é, como julgamento objetivamente instituído, obrigatoriamente coletivo, e se dá nas relações entre o editor e o crítico, o autor e o público, o autor e outros autores.  Assim, a relação do autor com qualquer obra é sempre uma relação mediatizada por outra: a relação mantida pelo sentido público dela. Na interdependência das partes integrantes do campo intelectual, algumas têm peso funcional maior e atuam de maneira desigual para dar ao campo sua estrutura particular, como no caso de agentes particulares (escritores) e sistemas de agentes (como o sistema de ensino).  Nas interações entre essas partes, “existe quase sempre [...] uma pluralidade de forças sociais, às vezes concorrentes, às vezes coordenadas, que [...] estão aptas para impor suas normas culturais a uma extensão do campo [...]” (BOURDIEU, 1968, p. 127). Além disso, a estrutura do campo intelectual mantém relação de interdependência com a estrutura das obras hierarquizadas segundo seu grau de legitimidade. Uma vez que o autor de Síndrome do Pânico não dependia de um público consumidor e distribuía seus livros com o próprio selo, não tinha restrições. Tudo, pelo visto, em nome da liberdade que lhe rendeu um semianonimato. Contudo, era reconhecido por Fausto Cunha (1924-2004), que chegou a escrever o prefácio de Neurose no Corpo.

Infere-se que, embora não pudesse ganhar a vida apenas com a literatura, conseguia complementar a renda trabalhando como redator-fantasma, como ele mesmo relata em Redação com base na Linguística (2008, p. 64): “Durante muitos anos, ganhei a vida ‘consertando’ os escritos de sujeitos que eram obrigados a redigir, e nada conheciam da técnica de redigir”. E completa: “direi que vivia de passar para linguagem clara o que me era trazido em sintaxe confusa, em termos abstrusos, em forma de redundâncias ou tautologias. Eu era, portanto, redator-fantasma” (2008, p. 65). É muito condizente a metáfora do redator-fantasma (também conhecido como escritor discreto e consertador de originais).

Além de sua posição política, pesam os temas, que são o que mais chama a atenção no levantamento de fatores de marginalização, pois que demonstram intertextualidade com Augusto dos Anjos, como no capítulo dezoito do livro Acuso!,[6] intitulado “Você me convenceu: não sou mais do que um tonel de excremento” (1986, p. 142). Ocorre que cada um dos capítulos de Acuso! é uma carta em que o autor se dirige ao psicanalista, que não aplicou um tratamento adequado (na verdade, não aplicou tratamento nenhum) ao neurótico escritor. Este narra o seguinte (1986, p. 143):

 

Um dia, já na terceira fase do “tratamento”, você me perguntou:

       — Por que esta insistência em comparar-se com um saco de excremento?

      Respondi logo:

       — Mas foi você quem me convenceu de que não passo de um saco de excremento, duma cloaca, de uma fossa gigantesca!

 

Essa queixa já permite o vislumbre de uma intertextualidade, que fica explícita no mesmo livro, em que há alusão direta a Augusto dos Anjos:

 

Duvido que alguém tenha sofrido, psicologicamente, mais do que eu. No físico, padeci relativamente pouco: tive apenas lumbago, bursite e dor ciática, além de algumas cólicas intestinais; mas psicologicamente padeço vinte e quatro horas por dia. Tudo me faz sofrer, mas a pantofobia é minha companheira inseparável (para usar a expressão de Augusto dos Anjos) (MAGALHÃES, 1986, p. 98, negrito nosso).

 

Sua neurose pode ser oriunda da frustração no campo intelectual, que vem da “epigênesis da infância” (ANJOS, 2014, p. 98): nunca foi incentivado. No paratexto autoral da contracapa de Meu Diário de Menino, acha-se a seguinte declaração:

 

Regista ele [Diógenes] o seguinte, nos seus cadernos: Meu pai (...) não quer que eu seja escritor, porque diz que os escritores (...) ganham pouco dinheiro e acabam morrendo tuberculosos. Mesmo assim, o menino escritor escrevia. O primo Vandero também o desencorajava: “Para que isso? Ninguém vai ler isso. Estás perdendo tempo com essas tolices.”

 

É em Meu Diário de Menino (s.d., p. 201) que também se registra a tônica de seu psiquismo, marcado pelo medo: “Sou apenas um menino que sofre muito porque sou muito acanhado e vivo sempre com as mãos frias de tanto medo que tenho de muita coisa”.

Um fato pode ser particularmente marcante e interessante a qualquer crítica à obra de Diógenes Magalhães, relatado pelo autor nos termos seguintes em Meu Diário de Menino (s.d., p. 81-2):

 

Um dia um homem fez uma prateleira e botou uns livros nela para vender. Não era uma livraria: era só essa prateleira com uns livros: o resto da loja vendia outras coisas. Eu passei por ali e vi os livros, e logo quis comprar um para ler. Pedi a minha mãe que me desse dinheiro para comprar um daqueles livros. Ela me deu. Eu comprei o livro e levei para casa para ler. Mas o livro não era para crianças: era uma história para gente grande. Mas assim mesmo eu estava entendendo quase tudo: era a história de uma mulher que foi posta num subterrâneo porque tinha feito uma porção de coisas erradas. Parece que o subterrâneo estava cheio de fantasmas, e a mulher estava com muito medo. Quando meu pai chegou da Prefeitura, eu estava lendo aquele livro.

— Que livro é esse?

Eu disse:

— Foi um livro que eu comprei.

Ele tomou o livro da minha mão, olhou a capa, leu uns pedaços da história, e disse:

— Este livro não serve para crianças: é livro para gente grande.

Eu disse:

— Mas eu estou entendendo quase tudo.

Ele disse:

— É, mas não serve. Ficas lendo isto, e depois ficas impressionado... Não serve.

Então ele guardou o livro para no outro dia levar para que eu não lesse mais. Fiquei muito aborrecido e comecei a chorar. Meu pai disse:

— Não precisas chorar. Vou levar o livro porque ele não serve para crianças. Depois eu te trago outro que sirva.

Mas nunca trouxe. E também nunca mais eu vi aquele que ele levou: não sei o que ele fez com o livro: não sei se deu a alguém ou se jogou fora.

 

                O resumo do enredo bate com o de The Monk, assim resumido pelo Professor Maurício Menon:

 

 

Uma cena como a que se encontra em The Monk, em que a noviça Agnes, após decobrir-se grávida, encerra-se com a ajuda de Ambrósio em uma imunda cripta nas profundidades do convento, onde seu bebê nasce, morre e apodrece em seus braços, certamente não desperta um sentimento de expansão, mas sim de contração e pavor. As imagens ligadas ao horror estão sempre associadas ao monstruoso, ao grotesco, à putrefação, a cadáveres gélidos e outras mais que, geralmente, causam repugnância (MENON, 2007, p. 48).

 

Malgrado o fato de as consultas à hemeroteca e aos sites revelarem pouco material sobre o autor, assim como o Google Scholar, que, a seu turno, não fornece nenhum resultado de busca em forma de link de texto acadêmico, o que se depreende dos seus desabafos literários pode ser adicionado ao que já se verificou no Orkut, extinta rede social que abrigava uma comunidade dedicada ao escritor, que chegou a interagir com seus leitores, aos quais revelou a razão de não ter chegado a fazer parte da ABL. Se não se tem uma biografia, tem-se, ao menos, o princípio de uma.

 

2.      Intertextualidade melancólica com Augusto dos Anjos, imanência e transcendência: um diálogo entre dois vencidos

 

Se Augusto dos Anjos, possivelmente inconformado (sem deixar de ser fatalista, por mais paradoxal que pareça), reduz-se à matéria, à decomposição e à finitude, motivo por que também ficou à margem do campo intelectual, Diógenes Magalhães não é nem um pouco diferente do outro naquele capítulo de Acuso! cujo título é extremamente agressivo. Isso sugere que ambos os autores se assemelham tanto pelos temas como pelo fato de terem sido marginalizados em virtude da escolha dos próprios temas:[7] Augusto por destoar visceralmente dos parnasianos; Diógenes, por não compactuar com o ideário linguístico do Modernismo e por explorar a neurose e o insólito. Há, porém, mais excertos que comprovam não só o fatalismo e a melancolia do pernambucano, mas também sua relação com a morte, mencionada no capítulo dezenove, “O menor mal de todos é a morte” (1986, p. 145-6):

 

         Se você lesse o que escrevo, teria lido isto que escrevi em 1977:

            “Não deve ser por acaso que penso tanto na morte. De nada me serviram todos esses anos de psicanálise. O psicanalista não conseguiu mostrar-me o lado belo da vida: é que ele não tinha o lado belo para mostrar”.

            Se você lesse o que escrevo, teria lido, no meu livro Neurose No Corpo, a sugestão que dei aos cientistas para que acabassem com este mundo. Em poucas palavras, é a seguinte a minha proposta:

            Devem os cientistas do mundo reunir-se, fabricar bombas de hidrogênio, e assentá-las em pontos estratégicos da terra. Uma vez detonadas, as bombas destruirão a humanidade inteira; e se sobrarem algumas pessoas, estas morrerão logo em seguida, em consequência da poeira atômica.

 

            No mesmo capítulo (p. 146-7, negritos nossos), o autor fornece mais exemplos que confirmam o fracasso do “tratamento”:

 

         Vejamos mais alguns trechos de livros meus, nos quais demonstro pessimismo, depressão, preocupação com a morte:

            “Agora só quero o repouso da morte, que tudo supera; quero desfazer-me na terra, lentamente, mansamente, como boa matéria desorganizada.” (1943.)

            “Há uma visão fantástica em cada planta, e um hálito de morte em cada charco.” (1943.)

            “O rio é de sangue, do sangue dos bravos. Caminho desamparado no atoleiro de lama vermelha. Mortos, sempre novos mortos, por toda a parte os encontro.” (1951.)

            “Faço parte de um exército de mortos-vivos, de homens que já morreram, conquanto não tenham sido enterrados.” (1956.)

            “Tenho encontro marcado com a morte numa sexta-feira azul cheia de borboletas.” (1956.)

            “Agora, na casa dos trinta, aguardo tranquilamente a morte.” (1957.)

            “Morrer hoje, morrer amanhã — pouco importa. Que vale um dia a mais um dia a menos, para quem tem a eternidade pela frente?” (1957.)

            “Agora, é dormir: enquanto durmo, a vida passa, e eu fico mais próximo da morte.” (1957.)

            “Para uns estou morto: não posso levantar-me do túmulo.” (1959.)

            “Quando vos digo, amigos meus, que isto não vale nada, tenho cá minhas razões: só amarguras encontrei na vida.”  (1977.)

            “Não tenho nenhum motivo para estar alegre; tenho, porém, muitos motivos para estar cabisbaixo e deprimido.  Esta máscara de entusiasmo, que uso todos os dias — não a posso tirar da face: entranhou-se nos músculos: já faz parte de mim.”  (1977.)

 

Mesmo num contexto histórico em que se reconhece o descentramento do sujeito, ao apelar à ciência e ao dizer com suas razões que a vida não vale nada, a subjetividade do autor de Acuso! revela desgosto e amargura, mas revela também certo racionalismo, típico de um sujeito cartesiano. Como diz Maurice Blanchot (2011, p. 332):

 

a morte fala em mim. Minha palavra é a advertência de que a morte está, nesse exato momento, solta no mundo, que entre mim, que falo, e a pessoa que interpelo aquela surgiu subitamente: ela está entre nós como a distância que nos separa, mas essa distância é também o que nos impede de estar separados, pois nela reside a condição de todo entendimento.  [...]  Sem a morte, tudo desmoronaria no absurdo e no nada.

 

            Esse fatalismo, análogo ao do poeta que canta a poesia de tudo quanto é morto, sugere uma recusa à sociedade em que a morte se torna um tabu em virtude dos valores burgueses. Tanto Augusto como Diógenes rompem com esse tabu. “A morte, não o sexo, é agora o tabu que violamos — a ‘pornografia da morte’ causa-nos excitação” (MARANHÃO, 1985, p. 10).

            Os trechos escritos por Diógenes Magalhães denotam certo cientificismo e materialismo; contudo, ele não deixa de lado a alma ao dizer: “Mais de uma vez pronunciei perante você a seguinte frase: ‘Se se pudesse fotografar a alma, e se a minha fosse fotografada, sairia no papel toda aleijada’” (1986, p. 18). Como ele mesmo diz, psicanálise é a análise da alma (1986, p. 27), embora declare não ter sido tratado. Ao contrário:

 

[...] A angústia, o medo, o terror, o desespero, tudo isso reunido me fez retornar àquele antro de miséria humana, onde sou humilhado, esbofeteado, menosprezado, e ainda pago para isso tudo. Sou igual ao masoquista que paga para ser torturado.

            O “psicanalista” não tem a mais mínima consideração comigo.  E quem tem?  Quem poderá ter consideração com um saco de excremento?  De mim, ele só quer o dinheiro: nem as coisas que digo servem de ponto de referência.  Nunca fez a menor alusão a um livro meu, a um trecho escrito por mim, a uma personagem minha, ao nome de uma cidade ou a qualquer imagem literária que eu por acaso tenha usado (MAGALHÃES, 1986, p. 27).

 

           

            Além disso, há uma pequena margem para a transcendência (até porque, em seu dizer, a morte tudo supera), e não apenas para a imanência:

 

         Com efeito, se existe vida após esta, se existe espírito, e eu morrer primeiro do que você, meu fantasma permanecerá nesse antro; se você ouvir estalidos, serei eu que estarei batendo nos móveis para chamar sua atenção.

            Foi isso que você fez de mim: um dependente, um ser despersonalizado, que vem aqui rastejando para que você escarre no meu rosto (MAGALHÃES, 1986, p. 76).

 

            Diógenes Magalhães deixa claro que não se mata de covarde: tem medo do além: não sabe se há vida após a morte. Parte de sua agonia, portanto, é causada pela incerteza ou pela possibilidade da transcendência. Já em Augusto dos Anjos ocorrem uma tensão e uma tristeza engendradas pela finitude da matéria, contra a qual se insurgia por, no íntimo, não se conformar com tal finitude, conquanto sofresse em vida. Essa tensão pode ser explicada nos termos seguintes:

 

A uma observação mais profunda, a inevitável conclusão a que se terá de chegar é que o tema da morte aparece em seus versos não como um fato considerado em si, mas como símbolo e, por absurdo que pareça, como símbolo de um aspecto da vida: a limitação do ser humano enquanto ser material, ou seja, essa contingência fatal de matéria, de que a morte é o mais absurdo e mais trágico capítulo. O que caracteriza portanto sua visão pessoal da verdade é um sentimento trágico da vida, fundado principalmente no eterno choque entre o ideal e o real, entre o espiritual (sem limites) e o material (limitado).  É desse absurdo dos constantes dualismos de que se entretece a existência (caracterizados sobretudo nos binômios espírito-matéria, vida-morte) que decorre sua interpretação agônica (no sentido unamuniano) da vida neste mundo.  E é disso justamente que se vão originar as duas outras notas características da sua visão pessoal: o sentimento de frustração e o sentimento de revolta.  De fato, os seus poemas se desenvolvem quase sempre através de símbolos que representam a espiritualidade frustrada sob o peso bruto da matéria contra o que o poeta reage com épica rebeldia (o que talvez explique sua popularidade paradoxal) numa atitude verdadeiramente “prometeica”, como a chamaria León Felipe (FILHO, 1972, p. 14).

 

            Diógenes, que continuou “a ser o mesmo neurótico de sempre, assustado perante a ‘dureza sobrenatural das coisas’ (como diria Eça de Queirós)” (MAGALHÃES, 1986, p. 52-3), fornece evidências de atravessamentos ideológicos, que condicionam sua produção: queixa-se da vida, que obviamente é pautada pelos valores de eficiência e por todo o restante da ideologia burguesa (foi funcionário do Banco do Brasil e professor de Português, embora fosse formado em Direito), a que está filiado como alguém de classe média (informação encontrada num paratexto de Meu Diário de Menino). Em última análise, sua crise neurótica pode ser um sintoma da crise dos valores burgueses. O excerto seguinte evidencia uma defesa do monetarismo e, consequentemente, de valores burgueses, os mesmos que na sociedade causam a infelicidade, o medo, o mal-estar da civilização:

 

A isto, a este conjunto de circunstâncias negativas, chama-se azar, quer você queira, quer não.  Volto a insistir: não estou afirmando que existe um monstro de várias cabeças, garras de leão, asas de condor, que deita fogo pela boca, chamado azar: o que existe é este conjunto de circunstâncias que torna infelizes certas pessoas.  Este conjunto de circunstâncias, que você garante que não tem nome — tem nome, sim!  Chama-se azar.  O próprio governo (que não tem compromisso com o ocultismo) usa o termo azar, quando proíbe os jogos de azar.  A Bolsa de Valores não pratica jogo de azar, porque as transações, lá, não são feitas ao acaso (e é possível ganhar sempre na Bolsa, ao passo que, num cassino, é impossível ganhar sempre).  Se o indivíduo souber aplicar dinheiro na Bolsa de Valores, nunca perderá um real, sequer.  Por isso mesmo, as operações da Bolsa não se confundem com os jogos de azar (MAGALHÃES, 1986, p. 61, negrito nosso).

 

            Por outro lado, o fracasso, tão atribuído ao indivíduo pela lógica da meritocracia, é arrancado da responsabilidade do indivíduo mais adiante:

 

Ora, o próprio Governo usa a palavra azar, quando se refere aos jogos de azar.  O azar não é um bicho com cabeça de águia, corpo de cavalo e garras de leão: o azar é um conjunto de circunstâncias que fazem com que uma pessoa obtenha tudo (ou quase tudo) quanto deseja, e isto sem o menor esforço, ao passo que outras se esforçam loucamente para obter as mesmas coisas e o resultado é sempre negativo (MAGALHÃES, 1986, p. 74).

 

            E complementa a definição com os termos seguintes: “Azar é má sorte, é a falta de boa sorte, é a desdita, é o que faz com que uns sofram muito, e outros não sofram nada” (MAGALHÃES, 1968, p. 75).

 

 

3.      Imanência e transcendência em poemas de Síndrome do Pânico

 

A neurose do autor pernambucano foi tema de Síndrome do Pânico[8], livro de poesias cujo poema de abertura, “Alvará.”, descreve o livro como sendo “Leibnitz em gênero, número e caso;/ No sistema nervoso —— tudo péssimo:/ É Schopenhauer com/ As Dores do Mundo” (2002, p. 9), e em cuja capa o horizonte de expectativa e o protocolo de leitura do leitor empírico são condicionados pelo paratexto que diz: “Poesia abstrata, bissexta, concreta, contraditória, filosófica, maníaco-depressiva, negativa, paranoica, pessimista, simbolista, surrealista”.  Sob a rubrica de tal descrição o autor deixa claro que não se trata de prosa. Portanto, Neurose é diferente de Pânico por naquele haver linhas contínuas, indispensáveis à prosa, enquanto neste há versos — versos às vezes sem rigor métrico, como os do poema “Maldição” (2002, p. 94), transcrito a seguir:

 

O ricochetear das balas

Nas pedras irregulares

Da rua sem nome.

 

O medo cheio de sombras,

Os arrepios de morte,

Os soluços de quem fica.

 

Cidade amaldiçoada,

Cães famélicos,

Vampiros e lobisomens.

 

Em cada esquina um fantasma;

Dos beirais me espiam gárgulas;

Dos meios-fios, zumbis;

Dos esgotos surgem miasmas;

Das fossas vêm sucuris.

 

Vale a pena viver assim?

 

Ficou dito que Diógenes Magalhães deixa claro que não se mata de covarde por ter medo do além, ao passo que Augusto dos Anjos se rebela contra a finitude da matéria. Esta, por sua vez, é uma hipotética e agradável circunstância para o eu poético de Diógenes (2006, p. 149):

 

O CONVÍVIO DO SILÊNCIO.

 

Campa, carneiro, catacumba,

Cova, jazigo, mausoléu,

Sepulcro, tumba, túmulo,

A derradeira morada...

Aqui, sim:

A imobilidade, a quietude,

A paz da necrópole,

Do sepulcrário...

O convívio do silêncio...

†††††††††††††

Fantasmas num cemitério?

Não, nunca, Jamais,

Em tempo nenhum!

Com tanto castelo medieval

Na Europa...

Com tanto recanto lúgubre,

Tanta área tétrica,

Tanta escuridão maldita,

Ficar no campo-santo,

Para assustar alguém,

Seria frustração.

 

2000, novembro.

 

Outro poema de versos livres é um que demonstra semelhança temática com Augusto dos Anjos: “Desintegração.” (com ponto final depois do título mesmo) (2002, p. 91, negritos nossos), com a diferença de que até a alma sofre a decomposição:

 

Em noites enluaradas

(Nas outras —— não!),

Ouço (não há remédio)

O antirruído estranho

De cidades mortas...

(Mortas pela bruteza da guerra.)

Vejo o brilho fúnebre dos fogos-fátuos

Nas ruínas repugnantes;

Julgo perceber o pranto

E o ranger dos dentes

Das viúvas e das filhas

Dos guerreiros que se sacrificaram

Por nada, nesta guerra inútil.

(Inútil como todas as guerras.)

São visões loucas,

São fantasmas de fantasmas.

É a antimatéria...

É a decomposição do cérebro,

Da mente, da alma, de tudo.

Não resta nada:

Só existe a dor.

 

1944.

 

Entretanto, o modo como a morte pode ocorrer causa ansiedade e angústia:

 

PESADELO.

 

Silêncio profundo

Amortalhava o mundo.

Era o fim (eu sabia), era o final,

O derradeiro final...

Pesadelo!!!

Sou campeão: campeão do pesadelo.

 

Tudo parado. A campina imensa,

Quieta, vazia, sem ninguém.

(Eu sozinho!)

Expectativa de angústia.

Sim, sem dúvida: era o fim.

Saber —— eu sabia,

Mas como seria?

Pelo fogo? Pela água?

Pela desintegração atômica?

E, de repente,

Silenciosa também,

Ei-la vem: surge no céu

A aeronave de outros mundos,

Enorme, fabulosa,

Medonha, impossível...

E para; não se move.

Tão grande se mostra,

Que era como se tomasse

Todo aquele espaço:

Dum horizonte a outro.

E agora?

 

Quem por isso jamais passou,

Quem nunca estas coisas viu

Não sabe o que significa

Sentir que tudo se desfaz

Pela Vontade que se chama Divina,

Aviso, premonição, profecia... (MAGALHÃES, 2006, p. 87.)

 

           

Os versos de “Necrotério.” (2006, p. 89) são quase do mesmo jaez, com a diferença de que fica nítido o medo do além, que, em última análise, é o medo de o sofrimento do eu continuar a existir depois da morte pela hipótese de a consciência ser mantida — o que, neste particular, sugere a única diferença temática entre o autor de “Psicologia de um vencido” e o escritor pernambucano, já que para este a morte é alívio, ao passo que para aquele é justamente a certeza da finitude que gera angústia:

 

A decomposição que se espera

Não se realizará.

Temo ficar de novo em pé;

Temo sair andando,

Fantasmagoricamente.

 

Trouxeram-me para cá:

Não vim: fui trazido.

Não pude fazer nada:

Não me foi dado reagir.

 

Saí da verticalidade

Para o sentido horizontal;

Agora a lanceta,

Sob o comando apático do legista,

Vai exercer a função:

Vai despedaçar-me...

 

E depois?

Depois?! Não sei.

 

            Por outo lado, permanece a visão da morte como consolo. Talvez o escrito que melhor exemplifica tal expectativa de consolo seja o soneto abaixo (MAGALHÃES, 2006, p. 86):

 

SÍNDROME DO PÂNICO.

 

O que sinto, no peito, permanente,

É o medo atroz, universal,

De homem que derrotado se sente

Da vida na batalha desigual.

 

Portanto, o que desejo, tão somente,

É da morte o repouso natural:

Desfazer-me na terra, lentamente,

Aos poucos transformar-me em vegetal.

 

E começarei tudo, novamente,

Dos vermes serei grato festival.

A eles servirá o pobre ente,

 

Que, vivo, sempre foi inconsequente:

Na vida nada fez: nem bem nem mal.

Viveu, sim, mas não foi um ser vivente.

 

            Mais uma vez, o eu poético de Diógenes Magalhães confirma o que dizia o seu eu empírico, que aparece em Acuso!: é desejável a morte: prefere a finitude ao além. O poema acima está mais próximo de “Psicologia de um vencido” na medida em que ambos os textos são enquadrados no gênero soneto, mas se distanciam por retratarem a finitude de modos praticamente opostos.  O único ponto de igualdade temática está em que as duas poéticas trabalham com a certeza da finitude, isto é: com a decomposição da matéria. Para a desdita do autor de Síndrome do Pânico, foi ele “doutrinado para crer na Eternidade,/ Na vida depois da vida,/ E no sofrimento que recai sobre/ Quem tal coisa faz” (MAGALHÃES, 2002, p. 124), como atesta o eu poético de “Lamentações do escritor frustrado”, um de seus poemas. Coaduna-se tal atitude, que reforça a coerência interna de um livro de poemas surrealistas (os quais, em tese ou por definição, não são necessariamente lógicos), com o que o poeta afirma em “Problema? Não!”: “Não tenho medo a ti, ó Morte!/ Definitivamente: não!/ O medo que me consome/ É daquilo que encontrarei/ Depois que eu for/ Considerado morto” (2002, p. 67). O eu lírico (que, neste caso, por motivos biográficos, confunde-se com o eu empírico) teme continuar vivendo. O que ele deseja é o silêncio, o repouso, de modo que o perturba qualquer possibilidade de transcendência, em conformidade com o já analisado poema “O convívio do silêncio.”.

Os versos que Diógenes mais usa são os livres; entretanto, há sonetos decassílabos nas páginas, como no soneto acima, apesar de conter um verso de oito sílabas poéticas. É interessante e curioso notar que os poemas em que se espera o consolo há mais rigor formal na medida em que, mesmo que cada verso não assuma uma métrica rigorosa, eles assumem a forma de soneto, ao passo que “Pesadelo” e “O convívio do silêncio” apresentam menos rigor formal. Trata-se, pois, dos procedimentos estéticos de que Diógenes Magalhães lança mão para singularizar os objetos e as imagens que inocula em sua poesia. Com efeito: Diz Viktor Chklovski (1978, p. 39-56) que, se há imagem poética, há singularização. Segundo essa proposta, o objetivo da imagem poética não é o de ser um predicado para sujeitos variáveis nem o de possibilitar o reconhecimento ou compreensão do que ela representa, mas sim o de criar uma percepção particular do objeto. Em última análise, uma divisão e uma métrica clássicas são usadas ou descartadas por Diógenes de acordo com a necessidade de singularizar objetos através de imagens com o propósito de causar o estranhamento por meio do uso especial do idioma (literaturidade), de que fala Terry Eagleton (2006, p. 8-12). O estranhamento, como se sabe, é o que acontece quando o leitor vê um objeto prosaico de um modo inédito ou como se o estivesse vendo pela primeira vez.

            O estranhamento está vinculado não só à forma e ao estilo, mas também ao binômio imanência/transcendência e, portanto, aos elementos estruturais ou componentes do conteúdo, como nos versos abaixo, em que comparecem o medo do além e o medo da falta de tranquilidade:

 

Encarnar, Desencarnar, Reencanar...

 

Sim, para que isto?

De que me serve isto?

Por que estou aqui?

É frustração...

Tudo quanto faço me sai falho.

Para que, portanto, isto?

É a queima do carma.

É o Outro Lado implacável.

É o Além...

E se não existir o Além?

Falo: não me respondem...

Olho: não vejo ninguém...

 

Dezembro de 1998. (MAGALHÃES, 2006, p. 68.)

 

Seriam os fantasmas a prova da transcendência? (cuja inexistência causa revolta em Augusto dos Anjos, mas cuja suposta existência apavora Diógenes Magalhães, que teme e reprova qualquer forma de vida após a morte, até mesmo a reencarnação). A crítica metrificada à existência após a morte está em outro soneto (2002, p. 69):

 

Reencarnação, queima de carma:

 

Caminhar vagarosamente no infinito,

Nas esferas do exemplo singular,

Deitar vozes ao guardar o rito.

No sentido pasmoso de encantar.

 

Grandes sapos grudados na parede,

Com intuito senil de me espantar,

Tola gente no embalar da rede,

No futuro vazio do avatar.

 

Reencarnação fatídica, segura,

Para queima certa, profética, do carma.

É a desgraça de toda criatura.

 

É o destino maldito do retorno,

O encontro das vítimas de outrora,

Para a vingança do silêncio morno.

 

 

                Os versos mais angustiados são os que apresentam menos rigor formal na métrica de cada verso e na distribuição deles nas estrofes.

Em “Profecia.” (2002, p. 52, negritos nossos), o autor, assim como em “Desintegração.”, não poupa a alma do aniquilamento:

 

Eu sei: andam fantasmas no teu quarto,

Andam sombras errantes, alvadias,

Desejos incontidos de heresias

Em ruínas de engodos e de enfarto.

 

Teu cérebro é qual trecho gotejante

De carne que se esvai feita em fatias,

E se acaso resistes é que os dias

Não se afastam do olhar da incauta amante.

 

Agora que endoideces na alquimia

Das interpretações de puro encanto,

Hás de ver o que te espera certo dia:

 

Decomposição da alma que fazia

Planos de bom viver e de acalanto;

Miséria, podridão, vida vazia.

 

            Malgrado o fato de Augusto dos Anjos preferir o soneto e sua métrica modelar — o que comprova que tal gênero, como uma das espécies animais que não desaparecem quando se adaptam, “adaptou”-se ao “ambiente” moderno desde que se salvou da insurreição romântica contra os esquemas formais dos gêneros clássicos — a liberdade formal de Diógenes Magalhães na poesia e os procedimentos estilísticos abstracionistas ou surrealistas apontados por Fausto Cunha aproximam o reservado escritor pernambucano, que é do século XX, do escritor paraibano do século XIX não só no que concerne aos temas, mas também no que diz respeito a um atributo caro a ambos os literatos: o individualismo, a valorização daquilo que é um valor burguês (e que causa a problemática taxonômica dos gêneros literários), pois que tal liberdade estilística, que permite tanto o emprego do soneto decassílabo como o uso de versos livres, é sinal da valorização do ego do artista, que desde que se livrou das amarras da aristocracia exige para si um reconhecimento (BORDIEU, 1968, p. 105-45). Ocorre que “o individualismo foi e continua de certo modo querendo ser o eixo da moral burguesa” (CÂNDIDO, 1952, p. 4).  É essa valorização que faz com que os dois autores acabem falando do que dá título ao único livro de poesias de Augusto dos Anjos: o eu, dependente que é da matéria, cujo destino certo é a decomposição na opinião de ambos os poetas, conquanto estes, deixando que cada verso caia “gota a gota, do coração”, como diz Manoel Bandeira (1955), sempre esperassem por algo mais na vida, para citar Bram Stoker (1847-1912), mesmo que o que aguardassem fosse apenas a morte. É que a vida “se resume a uma constante espera por algo mais, e não tem nada a ver com o que estamos fazendo, e a morte é a única certeza que podemos esperar”[9] (STOKER, 2014, p. 69).

 

4.      O vampiro e outros insólitos em Síndrome do Pânico numa perspectiva biográfica e temática

 

Se o eu poético de “Maldição” (2002, p. 94) diz: “Em cada esquina um fantasma;/ Dos beirais me espiam gárgulas; Dos meios-fios, zumbis; Dos esgotos surgem miasmas; Das fossas vêm sucuris”, então o leitor é apresentado a uma atmosfera urbana cujos perigos são representados por imagens de seres fantásticos, como fantasmas, gárgulas e zumbis, e por sucuris, que seriam um elemento autóctone. É possível concordar com Tzvetan Todorov (2017, p. 162) quando afirma:

 

A distinção entre inconsciente coletivo e individual, quer seja ou não válida em Psicologia, não tem a priori nenhuma pertinência literária: os elementos do “inconsciente coletivo” misturam-se livremente aos do “inconsciente individual”, seguindo-se as análises do próprio Penzoldt.

 

            Contudo, ao enunciar a divisão de temas feita por Penzoldt, o mesmo Todorov (que, aliás, fala dos temas do eu), antes de fazer a afirmação do excerto acima, lembra que nem sempre os sintomas neuróticos do autor se manifestam fora da obra, o que quer dizer que a neurose fica registrada, em alguns casos, apenas dentro do texto literário. No caso de Diógenes, o caráter autobiográfico de seus desabafos literários evidencia que a sua neurose está tanto dentro quanto fora da literatura. Seja como for, parece adequado reconhecer dos temas “um duplo lugar: o inconsciente coletivo e o inconsciente individual. No primeiro caso, os elementos temáticos se perdem na noite dos tempos; pertencem à humanidade toda sendo o poeta mais sensível a eles” (TODOROV, 2017, p. 161). Também parece adequada a divisão dos temas em categorias propostas por ensaios sobre literatura fantástica que não aquelas presentes nos postulados de Penzoldt, que Todorov vê como sendo qualitativamente diferentes das dos outros. “Enquanto a maior parte dos autores classificavam os temas em rubricas como: vampiro, diabo, feiticeiras etc., Penzoldt sugere agrupá-los em função de sua origem psicológica” (TODOROV, 2017, p. 161). Tal origem, como ficou dito, seria dupla. Restam, é claro, duas ressalvas de Todorov: 1ª: uma distinção só pode ser válida em literatura quando é fundamentada em critérios literários, e não na existência de escolas de Psicologia (2017, p. 162); 2ª: “há [...] casos em que a biografia do autor acha-se em relação pertinente com sua obra. Apenas, para ser utilizável, seria preciso que esta relação fosse dada como um dos traços da própria obra” (TODOROV, 2017, p. 160). Ora, no caso de Diógenes, a biografia é um dos traços fundamentais da sua literatura. Obra nenhuma pode ser reduzida a um conjunto de sintomas numa análise realizada do ponto de vista desta ou daquela escola de Psicologia — daí a importância dos procedimentos estéticos, de que fala o já citado Viktor Chklovski (1978, p. 39-56), e da literaturidade, enunciada por Terry Eagleton (2006, p. 8-12). A afirmação de Todorov pode ser um aviso contra o reducionismo, de modo que também se tornam importantes as orientações metodológicas de François Jost. O que se propõe é um estudo comparatista justificado pelas semelhanças temáticas entre dois autores que, em seus respectivos tempos, não foram devidamente reconhecidos, o que denota a diacronia metodológica.  Um está situado no fim do século XIX e no início do século XX, ao passo que o outro está na modernidade do século XX e parte do século XXI.  De acordo com François Jost (1994, p. 334-347), o termo literatura comparada indica que a literatura deve ser comparada, mas não indica os termos de sua comparação, embora haja duas definições do termo: uma popular e outra acadêmica.  Esta engloba obras que usam códigos de estética idênticos por terem se servido do mesmo idioma e por seus autores compartilharem a mesma formação cultural, ao passo que aquela é tautológica: a literatura portuguesa, por exemplo, é a literatura de Portugal. Não se trata de literatos de países diferentes, mas apenas de tempos diferentes, e cujas preocupações e língua usada são as mesmas. (Mais adiante, será vista intertextualidade entre Magalhães e Stoker e entre o pernambucano e Mary Shelley.) De acordo com Jost, do ponto de vista técnico estamos muito mais no domínio da Weltiliteratur (literatura-mundo) do que no da literatura comparada, que pressupõe a existência de conceitos críticos modernos.  O autor chega a afirmar que seria melhor o uso do termo literatura global (que talvez se coadune com a ideia de inconsciente coletivo), pois suas diferenças específicas residem na sua natureza abrangente. Tanto num estudo de literatura nacional como num estudo comparatista empregam-se métodos parecidos: diacronia e sincronia, analogias, dedução, indução, escolha de temas, motivações e influências entre autores. Movido por um impulso interior, Diógenes, que não usou apenas a sua interioridade por não ser possível o solipsismo, serviu-se do arsenal de temas oferecido pela civilização em sua poiesis, que obviamente não é um espelho fiel da realidade, em consonância com os arrazoados de Antonio Cândido (2014, p. 27-49).

            Conforme a teoria de Nick Groom (2012, p. 76-77),[10] o poema “Maldição”, assim como tantos outros, apresenta obscuridades: a arquitetônica (gárgulas) e a espiritual (os fantasmas). O autor também menciona outras categorias, entre as quais estão as criptas, as tumbas e outras imagens de que se serve Diógenes em sua poesia. A morte, é claro, é uma delas.

            Conquanto o cenário de “Maldição” seja urbano, enquadra-se num comentário feito sobre o personagem Dr. Cláudio, do romance O Ateneu, de Raul Pompéia:

 

Na atualidade da literatura brasileira, vista em imagens violentas e chocantes, simbólicas e às vezes herméticas, ilustrada pela putrefação e estagnação dos charcos e dos pântanos, onde os pássaros fogem dos miasmas e as árvores, receosas, se debruçam sobre si mesmas, o Dr. Cláudio sente falta de uma verdadeira obra de arte (SANTIAGO, 1978, p. 94-5)

 

            A poética de Diógenes Magalhães expressa os medos de um brasileiro e, portanto, os medos de sua sociedade. Afinal,

 

A nossa crítica, rudimentar antes de Sílvio Romero e do Naturalismo, participou do movimento [de afirmação nacional] por meio do “critério de nacionalidade”, tomado como elemento fundamental de interpretação e consistindo em definir e avaliar um escritor ou obra por meio do grau maior ou menor com que exprimia a terra e a sociedade brasileira (CÂNDIDO, 2006, p. 123).

 

Obviamente as imagens insólitas de Magalhães não são exclusivamente brasileiras. Trata-se, pois, de elementos estrangeiros ou empréstimos, ainda que bem “transplantados”. Como diz Érico Verissimo (1996, p. 21), que parodia a máxima de Pero Vaz de Caminha de que, em se plantando, tudo dá no Brasil: “a terra é tão boa... Sim, de um modo que era quase uma maldição”.

Os “transplantes” mais proeminentes e bem-sucedidos realizados pelo autor de Síndrome do Pânico estão nos dois poemas transcritos a seguir:

 

UMA RÉSTIA DE ALHO PARA DRÁCULA.

 

Onde quer que eu pise,

No campo de neve,

Fica sempre a marca do meu sangue...

Sangue fraco,

De homem anêmico,

De negroide subnutrido

(Na classificação dos ianques).

Mas é este o sangue que tenho,

Era o que eu tinha,

Para dar ao vampiro,

Ao núncio do Conde Drácula,

Que me atacou de improviso,

E me rasgou a carótida.

 

Cadáver não sangra:

Logo, portanto, por conseguinte,

Não morri,

Não sou cadáver,

E, como tal,

Não poderei ser vampiro...

Em que ficamos?

 

2001, janeiro. (MAGALHÃES, 2002, p. 161.)

 

O MONSTRO...

 

...chama-se Frankenstein...

Não! Não! O nome é outro.

Frankenstein é o cientista

Que confeccionou aquilo...

Aquilo —— o quê?

Todos sabem: um monstro!

Monstro? Por que monstro?

Porque foi fabricado com pedaços de cadáveres

Que o cientista juntou,

Suturou pouco a pouco

Uns aos outros, e então

Surgiu um homem...

Não era perfeito:

Quem olhasse de perto veria

Imperfeições;

Mas quem visse de longe,

E não soubesse do caso,

Aceitaria, de bom grado,

A contrafação.

 

E o clone?

Ah, o clone é perfeito:

Não pode ser chamado de monstro:

O clone é o indivíduo geneticamente igual a outro,

Mas produzido por manipulação genética,

Sem atividade sexual.

(Já existem muitos por aí,

Vivendo entre nós,

Mas ninguém percebe nada;

Justamente porque eles

São perfeitos.) (MAGALHÃES, 2002, p. 158.)

 

No poema sobre Drácula, compartilha-se uma contradição: o eu poético tem um sangue anêmico e, por não estar propriamente vivo ou sadio, já é praticamente um morto, razão pela qual não pode ser transformado em vampiro. Seu sangue vale tanto quanto um alho. O desagradável caráter racista encontra um pano de fundo histórico: o funcionário público explorado e exaurido, que tinha de dar aulas de Português para complementar a renda, ficou enfraquecido por causa da neurose e da depressão. O vampiro que vem e suga as forças pode ser a representação do explorador que pratica a mais-valia. Vale lembrar que Drácula é ícone do século XIX, século da Lei Áurea no Brasil, cuja herança maldita, segundo o sociólogo Jessé Souza, é a da escravidão:

 

O passado que nos domina não é a continuidade com o Portugal pré-moderno que nos legaria a corrupção só do Estado, como o culturalismo dominante até hoje entre nós nos diz. Nosso passado intocado até hoje, precisamente por seu esquecimento, é o do escravismo. Do escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas classes populares, que tornaram impossível uma sociedade minimamente igualitária como a europeia. Foi precisamente porque a Europa não teve escravidão que Norbert Elias pôde construir o processo civilizatório europeu a partir da ruptura com a escravidão da antiguidade (SOUZA, 2017, p. 151, negritos nossos).

 

 

5.      Imanência, transcendência e insólitos em Neurose no Corpo

 

A respeito do livro Neurose No Corpo, demonstra-se nele perícia no uso de procedimentos estéticos, os quais talvez aproximem os registros do narrador-personagem do poema em prosa, o qual, segundo a professora Olga Kempinska (2012, p. 170), foi criado por Aloysius Bertrand. No poema em prosa, não há propriamente uma narrativa, mas nela se “encena a manifestação de uma subjetividade” (KEMPINSKA, 2012, p. 170), ainda que Neurose seja uma narrativa autobiográfica. No livro, porém, prevalece a poética na forma de estilística e inoculação de imagens, porquanto em suas páginas conseguiu o autor elaborar “trechos que aparentemente não têm enredo definido. Na psicanálise, chama-se isto associação livre de ideias; na Arte Literária, chama-se abstracionismo, ou talvez surrealismo” (CUNHA, 2006, s. p., negritos nossos). Fausto Cunha, no mesmo prefácio do livro, também afirma:

 

Não há dúvida quanto ao domínio da estilística pelo autor, nestas páginas de angústia: vai ele do estilo clássico ao jornalismo burilado.  Vê-se, quase, uma demonstração de força, mas inteiramente espontânea, sem nenhuma preocupação de exibicionismo.  As palavras fluem com segurança incomum, e o leitor sente que está diante de autêntico estilista, que aprendeu — no convívio permanente com os livros, e devido ao fato de viver longamente fechado sobre si mesmo com medo de contactos — a fazer com o idioma o que bem deseja. 

 

Esse leitor fechado sobre si mesmo talvez seja o que mais se aproxima do leitor ideal, de que fala Pierre Bordieu (1968, pp. 105-45). Tal introspecção permite mais um paralelo com Augusto dos Anjos, um indivíduo “de poucos amigos, enrustido, abrindo-se só com os íntimos, e com estes afável e prestativo, sua personalidade, contudo forte, como que se apagava diante de estranhos” (BARBOSA, 2010, p. 66).

Talvez o título já prepare o horizonte de expectativa do leitor para uma compreensão materialista do escrito: a neurose está no corpo, e não no espírito ou na alma. Talvez não se trate propriamente de um poema em prosa, mas o binômio se faz presente com bastante força em algumas passagens:

 

Como eu referisse ao psicanalista o meu medo aos fantasmas, a tortura que experimento de manhã, quando, sozinho no quarto de banho, faço a minha higiene, ele me sugeriu que eu escrevesse um conto sobre fantasmas. Escrever é libertar fantasmas, dizia Dostoiévsqui [...] (MAGALHÃES, 2006, p. 120).

 

Mais uma vez, encontra-se o medo da transcendência. Todavia, houve margem para uma leve provocação aos materialistas: “Suponhamos que o leitor seja desses que não acreditam numa segunda vida além da presente. Isto de almas de outro mundo são patranhas [...]”. (MAGALHÃES, 2006, p. 122). Tal provocação fica mais patente na reminiscência seguinte (2006, p. 118):

 

Perguntei um dia a um ateu:

— És capaz de entrar, à meia-noite, sozinho, num cemitério?

— Bem, eu... (começou ele).

— ...Basta (interrompi). Já me respondeste.

 

O medo do além remete à infância:

 

Desde criança, tive grande medo aos entes sobrenaturais, mas somente quando estava sozinho; e como quase sempre havia alguém perto de mim, eu não sofri muito.

Quando me separei da Valquíria [...], passei a morar sozinho num apartamento, e então o medo, à noite, enchia de fantasmas o ambiente. Eu telefonava para Lenora (sim: Lenora) e pedia, rogava, suplicava que viesse dormir comigo, mas nem sempre ela podia vir.

 

[...] A noite era das aparições, das assombrações, dos avejões, dos espectros, dos fantasmas, das viagens, das visões. Mas [...] nunca vi nada. Também não ouvia nada, pois os barulhos que me chegavam aos ouvidos podiam ser imediatamente explicados. E não sentia cheiro de nada: sentia, sim, uma como presença, como se de repente eu fosse ver um ente desconhecido e altamente perigoso (MAGALHÃES, 2006, p. 156-7).

 

                Diante do exposto, é inegável que Diógenes Magalhães, assim como Augusto dos Anjos, é um mestre da poética do medo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            Não há dúvidas de que a poética do pernambucano Diógenes Magalhães é uma poética do medo por excelência. Contudo, uma vez que esta análise se pautou por considerações de Tzvetan Todorov, não pode a poesia do autor de Síndrome do Pânico ser reduzida a um sintoma neurótico, ainda que a neurose do autor se manifeste fora de sua literatura, razão por que a biografia é traço fundamental de sua catártica arte literária, que foi iniciada pelo impulso interior inerente ao artista e assumiu a forma de desabafos. Da mesma forma, não se pode reduzir a literatura de Diógenes Magalhães a sua interioridade, porque é inadmissível o solipsismo. Usa o literato brasileiro o arsenal de temas que a civilização ofereceu ao seu inconsciente por meio da barbárie da civilização e por meio da intertextualidade, que atravessa fronteiras na medida em que Drácula e Frankstein são transplantados em versos brasileiros cujo autor consegue inocular imagens de uma cidade repleta de sucuris. O reducionismo se torna inconcebível na medida em que se veem os procedimentos estéticos do autor no manejo do idioma, ao qual, conforme os formalistas russos, dava um tratamento especial. Cria-se, dessa forma, a possibilidade do estranhamento: o autor proporciona um frescor novo e uma singularização a imagens e temas já conhecidos: ele não fica no lugar-comum. Pode-se dizer que, além disso, o eu poético teme a transcendência e prefere a finitude ao além, o que torna coerente o teor de suas mensagens. Em outras palavras: é assim que garante a coerência interna do material coletado, evidenciada também pelos paratextos autorais e por outros condicionantes do horizonte de expectativa do leitor. No que concerne à finitude da matéria, opõe-se a Augusto dos Anjos, de quem também se diferencia por não usar apenas o verso decassílabo. Os trechos de Neurose no Corpo, por sua vez, poderiam se aproximar do poema em prosa devido ao que Fausto Cunha chama de abstracionismo, de que Diógenes lança mão para dar voz a sua própria subjetividade. Suas qualidades artísticas, porém, não foram suficientes para lhe dar mais visibilidade no campo intelectual, de que são provas dois fatos: o de só ter contado com seus próprios recursos para publicar seus livros e o de ter sido rejeitado pela ABL.

 

REFERÊNCIAS

 

ANJOS, Augusto.  Eu e outras poesias. 48. ed. especial revista e ampliada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

 

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 54. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999-2011.

 

BARBOSA, Francisco de Assis.  Notas biográficas.  In: ANJOS, Augusto.  Eu e outras poesias. 48. ed. especial revista e ampliada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

 

BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte.  In: ______.  A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

 

BORDIEU, Pierre. Campo intelectual e projeto criador. Tradução de Rosa Ribeiro da Silva. In: ___ et al. Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1968, p. 105-145.

 

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APÊNDICES

 

Adeus, meio acadêmico!

 

Diante de tantas denúncias contra professores universitários; diante de tanto extremismo da esquerda e da direita (extremismo, e não radicalismo); diante de tantas evidências de déficit de compreensão de texto; diante da lógica segundo a qual o aluno é um cliente (que sempre tem razão); diante da falta de lógica na atualização insana do Lattes; diante do fato de que a universidade pública introjetou e passou a aplicar, com a regularidade do sol, os valores de produtividade do neoliberalismo mercadológico, motivo pelo qual age como se fosse uma ORGANIZAÇÃO privada por meio da gestão (conforme a vontade da Escola de Chicago), e não como se fosse uma INSTITUIÇÃO pública (na concepção da Escola de Frankfurt); diante de que o meio acadêmico é a fogueira das vaidades, de que fala Tom Wolfe; diante do fato de que nos campi há muita hipocrisia; diante do fato de muitos universitários carecerem de ritos de passagem e de maturidade; diante das evidências de duplipensamento (contradição); diante da mediocridade dos que não sabem enunciar nem explicar os conhecimentos de que supostamente são porta-vozes; diante do fato de muitos lentes formarem professores para o ensino básico sem que jamais tenham lecionado em tal nível de ensino; diante da subproletarização dos professores universitários que aceitam contratos temporários; diante do fato de haver bolsas raras e irrisórias para pesquisadores dos Estudos Literários; diante do oba-oba sociolinguístico; diante da hipocrisia dos acadêmicos que “defendem” a escola pública e matriculam os filhos em escola particular; diante da incapacidade de entender que a política e a ideologia são o oposto da ciência; diante do fato de os ativismos tomarem conta dos campi e do fato de fazerem ganhar o debate quem fala mais alto; diante do fato de que quem TRABALHA na pesquisa não recebe décimo terceiro, nem férias, nem direito à licença; diante do fato de que no século XIX havia pesquisas proporcionalmente superiores aos trabalhos que têm sido feitos; diante da liberdade do diletantismo; diante das imposições dos periódicos, cujas regras de formatação de texto nem sempre acatam as NBRs (as normas da ABNT); diante do fato de o Lattes não ser garantia de pensamento crítico; diante do fato de a esquerda ser colonizada por ideias do neoliberalismo; diante do fato de toda a crise ter sido iniciada muito antes da ascensão de Bolsonaro; diante do fato de o meio acadêmico ter ajudado a chocar os ovos do basilisco que está nos dando o bote; diante do fato de as horas em qualquer biblioteca serem muito mais valiosas do que as horas em áreas externas da universidade; diante do fato de que na educação básica sou efetivo, razão por que tenho direitos básicos, como férias; diante do fato de os alunos do Sexto Ano serem maleáveis e compreensivos (atributos inexistentes nos ativistas de Iphone dos campi), decidi que não farei mais nenhuma pós-graduação. Agradeço a todos que me deram as oportunidades. Agora, caminharei sozinho. A melhor forma de fazer pesquisa é seguir os passos da professora Minerva, do mundo de Harry Potter: farei um trabalho diletante semiautodidático, sem prazos, sem Lattes, sem pressa (a inimiga da perfeição), sem pressão.

(Guarapari, ES. 27 de janeiro de 2021.)


O Príncipe da Redação

 

(A Diógenes Magalhães.)

 

“Master!

Apprentice!

Heartborne, 7th Seeker

Warrior!

Disciple!”

 

(Tuomas Holopainen)

 

 

Koch, Bakhtin e Marcuschi, silêncio!

Agora Sua Alteza em transcendência

É louvado por seus experimentos:

Sua perícia merece reverência.

Sua empiria e posicionamento

Geram valiosa doutrina, essência

De um saber em pleno funcionamento

Acima d‘outros posicionamentos.

 

Mestre e discípulo do vate Camões,

Leitor de Anjos ao gosto do diabo,

Retalhador de estúpidos bordões

— Esse é Vossa Alteza, que aos despachos,

Memorandos e ofícios das seções

Vai filologicamente dos clássicos,

Que perlustra com suas assombrações,

As quais dão à pena as suas funções.

 

Tem um saber de experiências feito.

Pernambucana é a sua raiz,

Desenvolvida sob olhar estreito,

O olhar alheio de gente infeliz,

De gente que nunca leu um soneto,

Mas que tenta ditar a diretriz

Da ignorância e de seus maus efeitos.

Mas o real saber não quer maus feitos.

 

Sendo eu simples bruxo em treinamento

No duro labor do ímpar Assis,

Seu livro é guia do meu pensamento,

Que não sou discípulo de Avis.

No ofício de poções e encantamentos,

Mestre real e alquimista aprendiz.

Com clareza, tinta em firme seguimento;

Tristeza, pena a pena em sangramento.

 

Faz distinção: a Arte de Escrever

Não é a Técnica de Redigir.

Mil rascunhos, mil lições por fazer,

Mil contrafações antes de exibir

O escrito definitivo por ler.

Só o literário pode conferir

Sol ao não-literário e conceder

Ao redator estilo de valer.

 

Sai da desliteraturização,

Ainda que separe a estilística,

Conjunto de regras de criação,

Da técnica, de outra composição:

Esta, de natureza não artística,

É diferente daquela, em que a ação

Do escritor é que nem a de um pintor

De telas; paredes ao redator.

 

A pena, que pode mais do que a espada,

Conta com dicionários, tira-dúvidas,

Dicionários de regência; e, amparada

Dessa forma, dá uma forma antirrústica

Ao conteúdo sublime, ideia temperada

Na razão, na lógica taciturna.

Sendo avesso a alguns usos da palavra,

Está muito acima das silabadas.

 

Bem, bem abaixo está o remendão,

O jornalistazinho de dar dó.

Chega ao inevitável: conclusão

De premissas (a maior e a menor).

É pelo infalível silogismo em ação

Que chega à ímpar coerência mor

E evita o jornalismo e o jargão:

Não é dos ianques um servil cão.

 

E banha de luz em tinta da aurora

O leitor com soberbo literário.

Clareza e simplicidade de outrora,

Concisão, correção, lei do unitário

E circunspecção na sua retórica;

Vigor, rimas e ecos no itinerário

Da revelação de imagens simbólicas,

Injetadas em lira melancólica.

 

Faz mais que juízos de realidade:

Toma partido, ainda que aos partidos

Diga um sonoro não com propriedade.

A índole do idioma, verdade

Que conhece como sol repartido,

Faz indagar: donde a genialidade?

Razões que homem não tem conhecido,

Mesmo longe do medieval período.

 

Esse é Diógenes, esse é o mistério,

O Enigma do Príncipe da Redação.

Revela-se positivista e bem sério,

Mas, porque não aceita o nosso mundo

Tal como é (por ser ele um despautério,

Um lugar de burrice muito imundo),

Muda-o, não-mudo, em revolução

— Revolução-Poiesis-Redação.

 

Na sua revolução-redação,

Isto é: no nobre uso da palavra,

Que vai à lírica composição,

É marxista sem que sequer o saiba!

É mais que Bilac, mais que a promoção

De Almeida, Quintana, Oliveira, arcádias,

Mariano, ABL e é mais que os medonhos

Que o atormentam. É técnico em sonhos!

 

Príncipe da Redação, Rei dos Reis

Da nobre estilística, cuja voz,

Mesmo que abafada e sem sua vez,

Vai ser cantada e espalhada entre nós

E a todo poeta-aprendiz cortês

Àquele que se banhou de mil sóis

Em solidão e transbordou mercê

Qualquer de qualquer supérfluo dizer.

 

(Guarapari, ES, 20 e 23 de março de 2020.)

 

 

 

 

 

 



[1] Concluído em Guarapari, ES, em janeiro ou fevereiro de 2020. Última revisão: Guarapari, ES, 31 de janeiro de 2021.

 

[2] Nascido em 10/5/1990, no Rio de Janeiro. Criado em Duque de Caxias (RJ). É licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de uma rede pública. Mora no Espírito Santo há dois anos e vive no município de Guarapari há quase um ano. Currículo na Plataforma Lattes: < http://lattes.cnpq.br/0328708771235302)>.

[3] Os sugestivos A Noite Decepada, Simbologia do Onírico e As Horrendas Faces da Neurose, títulos listados nos paratextos autorais com a rubrica “Livros de Diógenes Magalhães”, ficaram de fora deste exame, mas poderão ser contemplados por estudos posteriores. Ocorre que, como será dito mais adiante, o autor precisou se firmar no campo intelectual sozinho: imprimia os livros por conta própria e os vendia por um preço tal, que chegava a levar prejuízo, ainda que não se tenha notícia de falência. Seus livros se acham apenas em sebos.

[4] De acordo com Millôr Fernandes, a ABL se compõe de 39 membros e um morto rotativo.

 

[5] A rede social é o Orkut. Até o momento de elaboração deste artigo, não foi possível visualizar a comunidade de leitores e admiradores, com os quais Diógenes chegou a interagir. A eles revelou a razão por que não foi aceito pela ABL.

 

[6] Ainda que não se trate de uma prosa de ficção, o que só pode ser afirmado com base na confiança que o leitor deposita no autor, que admite que não tem como provar o que aconteceu, o fato é que Acuso! demonstra as características indispensáveis ao livro ao qual se queira dispensar a classificação de literário: é uma escrita em que existem o cuidado com o idioma e criatividade imaginativa, mesmo que não se trate de ficção. A valorização a ele conferida é baseada nesse e noutros critérios, como a escolha de temas e o estilo, cuidadosamente empregado pelo autor, conforme ele mesmo afirma no prefácio.

[7] Mesmo hoje há certa resistência à poética de Augusto dos Anjos. Antônio Cândido é quem a manifesta. “Um grande crítico de geração seguinte”, diz Assis Barbosa (2010, pp. 84-5), “Antônio Cândido, não concordaria nem com Manuel Bandeira [que, segundo Assis Barbosa, colocara o autor de ‘Psicologia de um vencido’ em posição de primeira grandeza] e muito menos com Otto Maria Carpeaux [que considerava Augusto o mais original e mais independente dos poetas brasileiros]. E toca num ponto que julga definitivo para a condenação do poeta: o seu propalado mau gosto. ‘Augusto do Anjos [diz o autor de Literatura e Sociedade] não é dos poetas que amo, embora lhe admire a magia verbal e sinta a grandeza de seu abismo interior. O Sr. Manuel Bandeira, num traço iluminante, aproxima-o de Euclides da Cunha, a cuja família espiritual sem dúvida pertence. Penso que ele representou admiravelmente, como Euclides, a nossa inclinação verbalista, criando uma retórica por vezes bela e concebendo a realidade como cidadela misteriosa que é preciso abordar com torneios algo alucinantes de expressão. Não é à toa que Otto Maria Corpeaux, apaixonado do barroco, veio a se entusiasmar no Brasil por este rebento do velho tronco gongórico, constante em nossa literatura sob as suas formas mais discursivas e superficiais. O mau gosto de Augusto dos Anjos funciona normalmente na sua poética de recursos tensos. Quase desesperados, e a grandeza do seu drama queima como um fogacho nem sempre suportável’.” A arbitrariedade e a subjetividade de uma crítica ainda estão patentes em pareceres que ao poeta atribuam as características bom e mau. É o que atesta Emmanuel Pereira Filho (1972, p. 14) em seus Estudos de Crítica Textual: “ou Augusto dos Anjos foi bom poeta com todas as palavras que empregou (e talvez principalmente por tê-las empregado), ou foi mau poeta, o que é o mesmo que dizer que não foi poeta”.

[8] Esse livro de versos contém muitos poemas que também figuram em outro livro de poesias de Diógenes Magalhães: Simbologia do Onírico.

[9] Em inglês, lê-se isto: “For life be, after all, only a waitin’ for somethin’ else than what we’re doin’, and death be all that we can rightly depend on”.

[10] Nick Groom (2012, p. 76-77) divide as obscuridades em sete categorias para que sejam propostas ao romance gótico: metereológicas (névoas, nuvens, vento, chuva, tempestade, fumaça, escuridão, sombras, melancolia), topográficas (florestas impenetráveis, montanhas inacessíveis, abismos, desfiladeiros, desertos, charnecas destruídas, campos de gelo, oceano sem limites), arquitetônicas (torres, prisões, castelos cobertos de gárgulas e ameias, abadias e priorados, túmulos, criptas, masmorras, ruínas, cemitérios, labirintos, passagens secretas, portas trancadas) materiais de tecido ou para o corpo (máscaras, véus, disfarces, cortinas ondulantes, armaduras, tapeçarias), textuais (enigmas, rumores, folclore, manuscritos ilegíveis e inscrições, elipses, textos quebrados, fragmentos, linguagem coagulada, polissilabismo, dialeto obscuro, narrativas inseridas, histórias dentro de histórias), espirituais (mistério religioso, alegoria e simbolismo, ritual católico romano, misticismo, maçonaria, magia e ocultismo, satanismo, feitiçaria, invocação, condenação) e psicológicas (sonhos, visões, alucinações, drogas, sonambulismo, loucura, personalidades divididas, identidades erradas, duplos, desarranjos, presenças fantasmagóricas, esquecimento, morte, assombrações).