quarta-feira, 15 de abril de 2020

Carta aberta ao Conselho Federal de Psicologia do Brasil: Por que não contratar psicólogos e psicólogas para as escolas públicas brasileiras




INTRODUÇÃO

         Senhoras e senhores do Conselho Federal de Psicologia:

            Numa era de neoliberalismo econômico, imediatismo de tecnologias móveis, falta de investimentos estatais, privatização do ensino, privatização da saúde, privatização de espaços públicos, pauperização do trabalho docente, imposições descabidas do Banco Mundial, aumento premeditado e deliberado da pobreza, garantia de um baixo salário aos professores, criação de mão de obra barata não só para as escolas particulares — que deveriam ter sido estatizadas no mundo todo —, mas também para as outras empresas, e criação de um exército de desempregados para as pessoas empregadas serem mais facilmente substituíveis, ainda vemos os frutos da psicologização do ensino, iniciada que foi por John Dewey (1859-1952), fundador do Escolanovismo (também conhecido como tendência Liberal Renovada Progressivista), e perpetrada por William Kilpatrick ((1871-1965) discípulo de Dewey, professor de Física e defensor do que hoje chamam de pedagogia de projetos, adotada por Freinet) e Carl Rogers (este deu início à linha não-diretiva). Graças a Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando Azevedo, o Manifesto dos pioneiros da Escola Nova (1932), tão do gosto da burguesia industrial emergente dos anos 1930 (época da Velha República) e do econômico e liberal ideário burguês de “democracia” e do preparo para o mercado (mercado, e não mundo) do trabalho num país cuja bandeira contém o mote das elites econômicas em seu positivismo comtiano, influenciou e condicionou de maneira muito contundente as diretrizes ideológicas da escola pública brasileira — tanto que, em 1959, foi redigido o Manifesto dos educadores mais uma vez convocados, um indício de que o entusiasmo pela educação e o otimismo pedagógico, ligados ao Escolanovismo, ainda dão uma continuidade, agora renovada pelo neoliberalismo e pelas condições impostas pelo Banco Mundial (sendo uma delas a redução do Estado em assuntos econômicos), à transferência de funções que não deveriam ser atribuídas à escola pública, mas que ela abraça por causa dos despautérios impostos de cima para baixo com todos os fumos de democracia. Some-se tudo isso às tais “metodologias ativas”, à pedagogia de projetos, às más interpretações atribuídas aos construtivismos (o de Piaget e o de Vygotsky) e à inépcia que a Pedagogia tem em lidar com adolescentes por contemplar só a criança (principalmente na Belle Époque finissecular oitocentista, em que floresceram a valorização da infância, a do sonho infantil, a do desejo de consumo e a da família nuclear moderna, diferente do clã) e aquilo que, a meu ver, é o prelúdio do que hoje é o prolongamento da infância e da adolescência engendrado pela ausência de ritos de passagem. Uma vez que sei me situar nisto tudo, devo dizer a Vossas Senhorias que vejo com enorme desconfiança todo o projeto de contratação de psicólogos para as escolas públicas. Em verdade, tal declaração é só um modo diplomático de me opor a ele: eu sou contra mesmo — visceralmente contra. Tudo indica que em nenhum momento as associações de Psicologia e o senhor José Carlos Elias, que apresentou o projeto que hoje é a Lei 13.935, consultaram os professores da educação básica, porém, com o perdão do lugar-comum, tenho voz e o direito de me manifestar.

1.      A infraestrutura, a superestrutura, o entusiasmo pela educação, o otimismo pedagógico e a herança do escolanovismo

            É preciso entender que a contratação de psicólogos para a escola pública brasileira, do jeito que é concebida no estágio de globalização (mundialização) do neoliberalismo, em sua aparente inocência em forma de boa intenção, é perniciosa na medida em que reafirma o entusiasmo pela educação e o otimismo pedagógico, que transferem para um tipo específico de superestrutura (a escola pública dos ensinos infantil, fundamental e médio) a tarefa de gerar justiça social sem levar em conta a infraestrutura (formada por pavimentação, saneamento, distribuição de água potável, energia elétrica, transporte público, boas moradias, prédios para bibliotecas públicas, cinemas e teatros, etc.). Com efeito:

A ênfase colocada na educação como responsável por todos os problemas nacionais tem a virtude de chamar a atenção para a necessidade de universalizar a educação elementar, mas tem também o grave defeito de mascarar a análise da realidade, deslocando da economia e da formação social a origem dos problemas nacionais (MOURÃO SÁ, 2012, p. 155).

Passamos pelo tecnicismo (implementado no Brasil pela Lei 5.622, de 1971), que impôs a figura do supervisor escolar tanto quanto o Brasil Império impusera a do inspetor e esvaziou o currículo em nome do preparo de uma mão de obra barata e acrítica no cenário geopolítico do período da ditadura militar sem abandonar o ideário escolanovista; para isso contou com poucos recursos (raros até os dias de hoje, em que se acentua a maligna ideologia da competência e da meritocracia) e toda a autoridade “científica” de Skinner e dos outros comportamentalistas. Tanto estes quanto aquele não vinculavam os conteúdos das disciplinas ao contexto social e político dos discentes, motivo por que são tendências acríticas, ainda que John Dewey falasse em democracia. Infelizmente, davam muita ênfase ao modo de ensinar (didaticismo) e colocavam o aluno (mais especificamente: a criança) no centro do trabalho docente, de modo que o plano de curso e o conhecimento ficavam em segundo plano. Depois vieram as Correntes Interacionistas (os Construtivismos, de Piaget e Vygotsky), a Pedagogia Crítico-Libertadora, cujo representante é Paulo Freire e cuja característica marcante é a valorização do cotidiano do aluno, a Pedagogia Histórico-Crítica (que assume que a Pedagogia é uma ciência da educação e para a educação, fato que a maioria das pedagogas ignora na medida em que a Pedagogia trabalha como um capitão do mato do poder), a Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, representada por Libâneo, e a Pedagogia Libertária, de Freinet, além, é claro, da “pedagogia” Waldorf, cujos alunos, segundo a pedagogista sueca Inger Enkvist, já revelam defasagem de conteúdo. Mas a educação brasileira não melhorou: a escola pública continua sendo ruim[1] para os que, como eu, lutam por um ensino público, gratuito e de qualidade dentro dos padrões da Social Democracia, e isso é muito bem explicado pelas tendências crítico-reprodutivistas, tais como: a teoria da escola como forma de violência simbólica, de Pierre Bourdieu e Passeron, teoria da escola como forma de Aparelho Ideológico do Estado, que é controlado pelo mercado, de Louis Althusser, e a teoria da escola dualista, de Christian Baudelot e Roger Establet; esta última, por sua vez, não exige pesquisa para ser comprovada: todos e todas sabem que a escola particular forma pessoas para os serviços mais prestigiados, como os da burocracia estatal da classe dirigente e os encargos das profissões liberais (como a do médico, a do advogado e a do psicólogo), enquanto a escola pública forma trabalhadores subproletarizados[2]. (A propósito: Vossas Senhorias têm filhos? Se sim, foram matriculados em escola pública ou particular?) Todas elas denunciam que a função da escola é a manutenção ou a reprodução do status quo em consonância com as divisões social e internacional do trabalho num país que exporta matéria-prima aos países desenvolvidos por um preço baixo. Infelizmente, prevalece a “lógica” do otimismo pedagógico, cujos representantes

não estão voltados para as consequências políticas da preparação de um maior número de votantes [objetivo de todas as campanhas de alfabetização do Brasil, como o Mobral]. Em sua maioria são técnicos que defendem seu campo de trabalho da intervenção de políticos e diletantes, isolando-se no tratamento de problemas concernentes aos aspectos pedagógicos do ensino. Por terem se fixado numa perspectiva unilateral da educação, os pedagogos dessa corrente reforçaram a função do sistema educativo como instrumento de conservação das estruturas socioeconômicas e políticas da sociedade. Essa unilateralidade no tratamento das questões educacionais pode ser considerada a principal marca do otimismo pedagógico: a desvinculação entre o pensamento pedagógico no Brasil e a reflexão (imprescindível) sobre questões sociais. Uma marca tão profunda que reinou de forma quase absoluta até os anos 60 e, até hoje, pode ser encontrada nos meios educacionais brasileiros (MOURÃO SÁ, 2012, p. 156).

Assim,

A armadilha ideológica montada com essa associação de ideias garantiu a sobrevivência desse fenômeno educacional até nossos dias, agora não mais com a pureza e a ingenuidade de um Miguel Couto, mas com a esperança de muitos de obter um lugar de direção [3]nos quadros educacionais oficiais e/ou de justificar sua presença nesses quadros (MOURÃO SÁ, 2012, p. 156).[4]

Um pouco mais antigo do que tal otimismo é o entusiasmo pela educação. Este, a seu turno, se opunha à chaga do analfabetismo de tal modo, que em 1916 foi criada a Liga de Defesa Nacional e, em 1917, criou-se a Liga Nacionalista do Brasil. Ambas as ligas lutavam contra o analfabetismo (quanta bondade!) com as bênçãos de Miguel Couto[5], que era médico, e não professor. Todos partiam do pressuposto de que a educação escolar, sozinha, tiraria o Brasil do atraso, sem muitos gastos, é claro. Hoje, a OCDE, que aplica o Pisa, e o Banco Mundial, que só fornece dinheiro aos países mediante obediência incondicional às suas diretrizes educacionais economicistas e neoliberais, fazem com que a escola seja obrigada a tratar o aluno como cliente a ser tirado das ruas para viver o sonho da pedagogia de projetos. Assim, a droga é receitada e usada em crianças e adolescentes enquadrados em psicopatologias, como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, que passaram a ser divulgadas em consonância com o crescimento do neoliberalismo para a glória da indústria farmacêutica, ainda que a droga ilícita, em tese, não possa entrar na escola, conquanto esta seja obrigada a aceitar qualquer tipo de aluno em qualquer estado psicofísico em nome de uma inclusão social que é, na verdade, uma inclusão social às avessas; no caso da escola particular, adolescentes drogados de bairros da alta classe média, que contam com a certeza da impunidade, são a evidência da hipocrisia a que estou me referindo. Tira-se da cidade a obrigação de amparar as crianças e os adolescentes, já que as ruas não foram feitas para eles, e, uma vez que os pais e as mães, explorados que são em trabalhos informais ou empresas do setor terciário, não podem ficar com os filhos em casa, relegam à escola a responsabilidade que seria deles; mesmo os que podem conviver com os filhos em casa nem sempre querem fazer isso — daí a defesa do ensino de tempo integral. Tira-se, ideologicamente, de elementos infraestruturais e externos à escola a responsabilidade pelas crianças e pelos adolescentes, que passam a ser vacas sagradas para a legislação[6] e para a Psicologia, mas que vão para o abate de um modo ou de outro.
            Aceitar todos e todas na escola é uma concepção burguesa de educação, uma concepção que contém as aparências de democracia, mas produz os efeitos a ela contrários:

O direito de todos à educação decorria do tipo de sociedade correspondente aos interesses da nova classe que se consolidara no poder: a burguesia. Tratava-se, pois, de construir uma sociedade democrática, de consolidar a democracia burguesa. Para superar a situação de opressão, própria do “Antigo regime”, e ascender a um tipo de sociedade fundada no contrato social celebrado “livremente” entre os indivíduos, era necessário vencer a barreira da ignorância. Só assim seria possível transformar os súditos em cidadãos, isto é, em indivíduos livres (SAVIANI).

            Trata-se de uma lógica utilitarista, que põe a vida do aluno a serviço de um tipo de economia que, para as classes dominantes, é a utopia[7] delas, conquanto seja a distopia da esmagadora maioria da população mundial, anestesiada pela ideologia[8]. Contudo, a economia deveria estar a serviço da educação, e não o contrário, e a educação deveria estar a serviço da vida. Educar, educere: fazer vir para fora.
            Sem as condições materiais básicas, negligenciadas pela barbárie da civilização hipermoderna, cujo progresso é meramente financeiro, as escolas públicas brasileiras, mesmo as que estão no Sudeste, a região supostamente mais rica e desenvolvida do Brasil, transformam-se em centros de assistência social[9], em centros de adestramento e espaços de oba-oba pedagógico, mas não tiram o país do atraso. É que, sozinha, a escola pública não pode fazer isso. É o que comprova a experiência realizada nos anos 1950 e relatada abaixo:

Em Itaperuna trabalhava uma equipe composta de: agrônomos, médicos, veterinários, enfermeiras, assistentes sociais etc., cuja meta inicial era investigar os interesses e as necessidades da comunidade, no intuito de promover cursos, palestras e atividades culturais que possibilitassem a mobilização comunitária e o progresso das populações do campo. A CNER [Campanha Nacional de Educação Rural] trabalhava como Missões Rurais Educativas e Centros de Treinamento. Tais missões deviam atuar o tempo necessário para que a própria comunidade assumisse seus problemas e buscasse seu desenvolvimento, pregavam o princípio da autocapacitação. Essa campanha manteve 18 missões e seu período de atuação [...] foi de 1952 a 1963. Ao longo desse período, ficou constatado que o desenvolvimento de uma comunidade não dependia apenas de sua autocapacitação; ou seja, a educação por si só não promove o desenvolvimento de uma comunidade (MARTINS, 2008, p. 74, destaque meu).
           
            É a mentalidade dos anos 1930 e 1950 a que ainda reina nas políticas públicas (que são privatizadoras) de educação do Brasil, e é esse o motivo por que ainda atribuem à escola, espaço reduzido à socialização e ao oba-oba pedagógico, a messiânica missão de reduzir a criminalidade, função que nunca deveria ser atribuída a ela. Não é à toa que o excerto acima é muito parecido com a Lei 13.395, de 2019   , que “dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica”:

O P R E S I D E N T E D A R E P Ú B L I C A

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu promulgo, nos termos do parágrafo 5º do art. 66 da Constituição Federal, a seguinte Lei:

Art. 1º As redes públicas de educação básica contarão com serviços de psicologia e de serviço social para atender às necessidades e prioridades definidas pelas políticas de educação, por meio de equipes multiprofissionais.

§ 1º As equipes multiprofissionais deverão desenvolver ações para a melhoria da qualidade do processo de ensino-aprendizagem, com a participação da comunidade escolar, atuando na mediação das relações sociais e institucionais.

§ 2º O trabalho da equipe multiprofissional deverá considerar o projeto político-pedagógico das redes públicas de educação básica e dos seus estabelecimentos de ensino.

Art. 2º Os sistemas de ensino disporão de 1 (um) ano, a partir da data de publicação desta Lei, para tomar as providências necessárias ao cumprimento de suas disposições.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 11 de dezembro de 2019; 198º da Independência e 131º da República.


            Há dois tipos de implícito: o pressuposto e o subentendido. O pressuposto é facilmente comprovável. Exemplo: Fulano é mais alto do que eu (esse é o posto); mesmo que eu não diga, o não-posto, que é o pressuposto, está embutido no posto: Fulano é mais alto, mas eu também sou alto. O subentendido, por sua vez, não pode ser provado, mas as suspeitas são reforçadas pela Análise do Discurso (AD). Aqui estou lidando com explícitos e implícitos: do dito eu vou ao não dito. Este condiciona o sentido daquele. Contudo, não é preciso que eu vá tão longe: os trechos destacados da lei já permitem que se note que ela, imposta de cima para baixo sem que tivessem pedido a minha opinião e a de outros professores de sólida formação acadêmica e alto nível, repete os erros do século XX.
            Eu vinculo essa proposta de contratar psicólogos para as escolas ao otimismo pedagógico e ao entusiasmo pela educação, movimentos ligados ao escolanovismo. Este, por sua vez, é uma tendência pedagógica não-crítica que foi apoiada por elites. Viam a educação como redentora da sociedade. Transferiram para a escola funções que não são dela. Ela não vai transformar a realidade dos alunos sozinha. Se efetivados, os psicólogos de escola pública vão lidar com os sintomas, mas não vão combater as causas, pois estas estão além se seu alcance: são econômicas[10]. De que adianta manter psicólogos e assistentes sociais nas escolas, se os alunos não contam nem com afeto em casa, nem com teatros, nem com cinemas, nem com bibliotecas públicas, nem com espaços públicos decentes de lazer? De que adianta empurrar para a escola atribuições que não são dela? Distribuição de renda, taxação das grandes fortunas, valorização do salário mínimo, moradias populares (estas são uma luta das faculdades de arquitetura e urbanismo), tudo isso tem de ser implementado. Em resumo: um único setor da superestrutura, formada por leis, religiões, artes, ciências e ensino, não vai resolver sozinho problemas da infraestrutura, que, por sua vez, são as condições materiais de vida. (A diferença entre as duas estruturas, a infra e a super, é feita por Marx.)
            No que concerne à infraestrutura (as condições materiais de trabalho), a imposição de uma nova lei (que acabará fracassando para depois se tornar letra morta) cheira a uma tentativa de implementação de uma solução mágica e simples para um problema complexo. Sabemos que nas ciências humanas nenhum problema complexo pode ser resolvido com uma solução simples. Mas a minha principal motivação é o medo: não quero mais pessoas que deem palpite no meu trabalho com a autoridade que o diploma a elas confere. Elas vão acabar sendo úteis às imposições dos sistemas de ensino: os gestores vão querer manter salas superlotadas em nome do dinheiro extra que eles recebem como gratificação e em nome das avaliações externas, como o Saerj e a Prova Brasil. Tudo é transformado em números e índices: tudo é quantificado. O paternalismo e a “valorização” do aluno geram gordas verbas para a educação. Boa parte delas vai para o bolso de editoras que vendem livros didáticos. Enquanto isso, não contratam bibliotecários para as escolas. Os profissionais da Biblioteconomia e o conselho deles não aceitam o salário que as redes públicas dos ensinos fundamental e médio oferecem, e estão certos. Se nem sequer temos bibliotecas que amparem o programa de ensino (o plano de curso), quais seriam as condições de trabalho dos psicólogos escolares? Eles teriam todos os recursos materiais? Teriam condições sanitárias? Teriam uma sala? Nós, professores, nem sempre temos. Eles seriam terceirizados? Se não, que tipo de vínculo teriam? Seriam servidores temporários ou seriam efetivos? Essas duas últimas perguntas são inevitáveis num contexto de privatização, terceirização, subproletarização e neoliberalismo econômico. Um psicólogo terceirizado ou temporário ficará vulnerável: se não fizer o que manda o gestor, será dispensado. É assim com o professor temporário. A Lei é muito clara: deverão seguir o projeto político-pedagógico das redes de ensino. Adianto o que diz o site Nova Escola: 66% dos professores tiram licença ou pedem afastamento. Será que eles (os professores) também vão receber atendimento? Será que os psicólogos também vão receber? Se começarem a trabalhar em escolas públicas, vão precisar, porque, graças ao escolanovismo, a pedagogia se tornou uma pseudociência repleta de falsas teses, que colocam o aluno no papel de protagonista e o professor no de coadjuvante — uma inversão de valores —, e praticada por pedagogas ignorantes, muitas das quais nunca puseram os pés na sala de aula do ensino infantil nem do primeiro segmento do ensino fundamental (que são os níveis que lhes cabem) para dar aula, mas que acham que podem dar palpite no trabalho dos professores que lecionam disciplinas que elas não dominam, mesmo com o baixíssimo grau de letramento que demonstram com a regularidade do sol. Para compensar seu raquitismo intelectual, fazem outros cursos; é assim que surgem outras aberrações úteis à lógica clientelista... Estou me referindo às psicopedagogas, que, como diz o nome, mostram clara influência da psicologização do ensino e superprotegem crianças e adolescentes de conteúdos que os pais, muitos dos quais são parvos e iletrados, não aprovam, como se os filhos, cuja preciosa flor da inocência não pode murchar jamais, fossem feitos de cristal. Logo se entende a motivação do principal ofício das pedagogas: cortar e colar papel (para bandeirinhas e desenhos cheios de estúpidos babadinhos ou não). E acham que podem avaliar o professor, mesmo que nunca tenham assumido a regência de uma turma: mesmo com a falta de empiria, acham que podem fiscalizar o professor, conforme notícia divulgada pelo site Plural em 6 de outubro de 2019. Nessa realidade, que tipo de papel o psicólogo desempenhará? Haverá mais ingerências no trabalho docente? O psicólogo não aceita que lhe deem palpites leigos, o médico também não, mas no trabalho do professor e na escola todos mandam e desmandam sem formação acadêmica. A comunidade acha que pode fazer isso. É exatamente isso o que fazem os pais que matriculam os filhos em escolas particulares, que vão desde as de fundo de quintal até as renomadas. As classes mais baixas seguem o exemplo: mandam e desmandam na escola pública.
            No caso da escola particular, quem a fiscalizará? Sabe-se que nela reina a livre iniciativa, que não se importa com a formação do professor: em muitas escolas particulares trabalham professores sem diploma. E as pedagogas? E as psicopedagogas? Quem vai exigir do psicólogo, que já trabalha em escola particular antes de a Lei ser promulgada, que apresente o diploma? As escolas particulares vão respeitar o piso salarial? A propósito: o profissional liberal não tem piso; como então o psicólogo denunciará abusos ao sindicato ou ao conselho? A Lei contempla a escola pública, mas a escola particular, como sempre, fica isenta.
            É desesperador notar que a Lei 13.395 contempla a comunidade (e, por tabela, as sagradas famílias) em seu parágrafo primeiro. Isso está de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação e com as políticas do Banco Mundial. Infelizmente, a atual LDB equivale àquela que foi idealizado por Darcy Ribeiro, e não ao texto que propusera o deputado Otávio Elísio (PMDB/MG). Refiro-me ao projeto de lei 1.258, de 1988, para o qual o relator escolhido foi o deputado Jorge Hage (PDT/BA), que “ouviu as entidades da sociedade civil e outros parlamentares e apresentou, em agosto de 1989, o primeiro substitutivo do Projeto Otávio Elísio, que contou com o apoio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública” (MARTINS, 2008, p. 93). Infelizmente,

a vitória de Collor priorizou as propostas educacionais do empresariado industrial. No início de 1990, Jorge Hage apresentou o segundo substitutivo, mas os defensores dos interesses privados criaram uma série de mecanismos para que esse substitutivo não caminhasse na Câmara dos Deputados. Collor reuniu aliados para barrar o projeto do deputado Jorge Hage; assim, foram criados vários empecilhos que impediram a votação do projeto na Câmara dos Deputados. Em 1992, Darcy Ribeiro apresentou outro projeto de LDBEN, que também foi assinado por Maurício Correa (PDT/RJ) e Marco Maciel (PFL/PE). Logo em seguida, o projeto do deputado Jorge Hage foi retirado do Congresso, o projeto de Darcy Ribeiro foi votado e transformou-se na nova LDBEN, Lei 9.394, promulgada em 20 de dezembro de 1996 (MARTINS, 2008, p. 93).

Até hoje a LDB é conhecida como Lei Darcy Ribeiro. Reflete as contradições da educação pública brasileira e define a educação como dever do Estado e da família. Esta, é claro, é religiosa e tacanha, e por isso mesmo não respeita a liberdade de cátedra do professor. Para o azar dos professores progressistas, “as esperanças dos educadores, de ter uma educação fundamentada, discutida e organizada sob os princípios da dimensão crítico-social foi abortada pela Lei Darcy, que não representa a vontade e o sonho dos educadores brasileiros” (THOMAZ; CARINO, 2008, p. 149).
            A participação das famílias, que, em última análise, equivale ao clientelismo da lógica mercantil imposta ao setor público pelo setor privado, como se a escola devesse agir como uma companhia privada, é a participação da comunidade escolar, tão do gosto do Banco Mundial. Este, além de impor a redução do Estado e o aumento da participação do capital estrangeiro e da iniciativa privada, prega que “os pais são os que melhor podem determinar quais são os conhecimentos e habilidades que desejam que a escola dê a seus filhos”[11] (ARAUJO, 2008, p. 35). Também prescreve (destaques meus):

o aumento de custos e melhoria da aprendizagem através do aumento do coeficiente professor/aluno; notamos que no Brasil há uma tendência crescente ao aumento do número de alunos nas salas de aula;
[...]
a implantação da promoção automática, para resolver a repetência e evasão escolar;
[...]
o aumento dos projetos de financiamento dos livros didáticos pelo Banco Mundial;
[..]
a implantação de mais programas escolares; defende a introdução de programas integrados de saúde, nutrição e estímulo cognitivo às crianças desfavorecidas;
a administração massiva, através da escola, de medicamentos para vermes e de suplemento vitamínico, como sendo, talvez, os métodos mais eficazes para melhorar a capacidade da criança para aprender, segundo o documento [do Banco Mundial];
uma maior atenção aos rendimentos, aos resultados (ARAUJO, 2008, p. 35-6).

           
            Não é à toa que há quem queria que o professor reconheça sinais de abuso em alunos em situação de risco, como se isso fosse responsabilidade dele. Ele não tem tempo para planejar aulas nem para ministrá-las; e, se tentar fazer isso, será visto como tradicional e despótico; se não o fizer, será visto como preguiçoso, indolente; os projetos, estes tiram o tempo das aulas expositivas e causam uma defasagem de conteúdo. O professor tem de ser um coach, um psicólogo e um assistente social. Com tais identidades[12], forjadas no fogo da Psicologia e da Pedagogia do neoliberalismo, ele jamais será perdoado se proporcionar o que sempre faz parte da vida e do crescimento: a dor. Com efeito:

             A metanarrativa marxista na educação induzia o profissional do ensino à suspeita e à busca de verdades, que foram disseminadas como verdades pedagógicas universais ou ocultadas pela ideologia pedagógica das classes dominantes. Induzia, ainda, esse profissional a desenvolver proposições otimistas e implementar ações que visassem a transformação da realidade educacional, minimizassem o “sofrimento” próprio do processo cognitivo, corrigissem injustiças curriculares e promovessem a inclusão educacional.
             Justiça, inclusão, universalização do acesso, sensibilidade às diferenças culturais e cognitivas, etc. Em outras palavras, redenção social, política e cultural por meio da educação. Muito otimismo! O empreendimento educativo tem fôlego para tanto?
             Atualmente, cremos que não! Ocorre-nos que essas “boas” intenções não passam de arroubos morais onde deveriam existir criteriosos estudos e projetos-pedagógicos sensíveis e respaldados pelas seguintes áreas do conhecimento: a Psicologia, a Sociologia, a Política, a Administração e a Filosofia. Esses estudos e projetos deveriam, ainda, ser compromissados com a logística real, e a possível, dos seguintes nichos: produtivo, de formação e de convivência social. Essa “logística real” condicionaria e administraria as potencialidades e as demandas profissionais, culturais, existenciais e sociais. O que vemos hoje é o mercado, livre na sua insaciedade, assumindo e definindo, sem aquele respaldo e aquela sensibilidade, os rumos da sociedade que mais o satisfazem (SILVA, 2011, p. 118-9).

Uma vez que o aluno é o protagonista, o conteúdo programático (o plano de curso) fica sempre no fim da fila das prioridades ou dela nem é parte. O bem-estar dele está muito, muito acima do conhecimento. O curioso é que, mesmo que seja formado por uma universidade pública, a fala do professor é sempre deslegitimada. Curiosamente, o Banco Mundial dá prioridade ao ensino básico, muito embora a qualidade dos ensinos fundamental e médio comece pela universidade, que é a responsável pela formação inicial e pelas formações continuadas em forma de mestrado e doutorado dos professores. Como se não bastasse o desprezo categórico pela formação acadêmica, “não se vê como prioridade nas recomendações do Banco Mundial o aumento salarial dos professores. O Banco Mundial entende que é preciso capacitar o corpo docente, mas por programas paliativos em serviço, se possível à distância” (ARAUJO, 2008, p. 35).
            A respeito da infraestrutura e da superestrutura, precisamos levar em conta os seguintes ditos de Marilena Chauí, registrados no livro Em defesa da educação pública, gratuita e democrática e transcritos pelo Blog do Grupo Autêntica:

Num país onde a concentração da riqueza, as taxas de desemprego, de mortalidade infantil, de desnutrição, de doenças endêmicas, de flagelados por secas e enchentes, os índices de arrocho salarial e de violência rural e urbana atingem proporções inigualáveis, por que iniciar a “justiça social” pela universidade? A não ser numa perspectiva religiosa e piedosa, que evidentemente não é a da burocracia nem a da tecnocracia nacionais, haveria como justificar a alegação do MEC?

            Opõe-se a filósofa, e com razão arrazoadíssima (se me permitem a redundância), ao projeto de privatização da universidade pública (a qual já pratica a lógica neoliberal, que é do setor privado, infelizmente). O que destaquei em negrito, porém, vale para todos os níveis e todas as modalidades de ensino, e não só para o ensino superior. A universidade pública que cobrasse mensalidades não reduziria a desigualdade e, por isso, não pode ser uma fórmula de justiça social. Isso também vale para o EaD, para o EJA (que são modalidades de ensino), para o ensino infantil, para o ensino fundamental e para o ensino médio (que são níveis de ensino). Todos enfrentam os obstáculos enumerados pela filósofa. Não faz sentido confiar tão só à educação escolar a superação da seguinte realidade (são meus os negritos), descrita por Marilena Chauí no supracitado livro:

Num país onde o déficit previdenciário e a corrupção não podem sequer ser calculados, onde as casinholas populares do BNH desmoronam antes de ocupadas e não podem ser pagas depois da ocupação, onde o transporte coletivo carrega gente como se fosse gado e passa por contínuos acidentes fatais, onde trabalhadores pagam pelo FGTS que não lhes é devolvido senão sob ação judicial, onde boias-frias (trabalhando de dez a doze horas diárias, não recebendo sequer salário mínimo, sem as menores garantias trabalhistas e submetidos à violência física patronal) não têm como sobreviver, onde com o desemprego espera-se por volta de 3 milhões de mortos por fome e desnutrição [...].

            Podemos acrescentar outras mazelas e outras crueldades, que também inviabilizam a educação escolar pública, gratuita, democrática e de qualidade, quer seja presencial, quer seja em EaD: “Em várias regiões do país”, declara Roberto Catelli (2013, p. 250-1),

existe a figura conhecida como “gato”. Ele vai à procura de homens e mulheres desempregados ou miseráveis que buscam meios de sustento, propondo-lhes salários, moradia e alimentação. Uma vez no local de trabalho — em geral, fazendas ou beneficiadoras de produtos agrícolas —, essas pessoas devem cumprir longa jornada de trabalho, muito superior às 44 horas semanais legalmente estabelecidas. Cada alimento que o trabalhador recebe é debitado dos seus rendimentos. Ao final do mês, em geral, sua dívida é maior que o salário combinado. A partir daí, o trabalhador é proibido de sair do estabelecimento de trabalho até que pague a dívida. Mas como pagar se todo mês o salário é menor que o devido? Eis o mecanismo de escravização: a dívida. O trabalhador fica preso por dever ao proprietário, e a violência é o recurso utilizado para mantê-lo no local.

José de Souza Martins (1995, p. 1-2), por sua vez, afirma ser fácil “constatar que a modalidade de escravidão [...] por dívida, ou peonagem, é encontrada em diferentes atividades econômicas”. Quem se detiver para ler o livro Em defesa da educação pública, gratuita e democrática, de Marilena Chauí, vai entender que problemas complexos da educação exigem soluções complexas.
            Diante de todas essas mazelas, pergunto: Os psicólogos do Brasil realmente acham que podem fazer intervenções contundentes nessas realidades? A Lei 13.395 foi feita para combater os sintomas, mas não as causas profundas das mazelas sociais. Estamos diante de uma batalha em que precisamos lutar contra o neoliberalismo econômico, que impõe um modelo de escola mercantil e autoritário cujo propósito é manter a infraestrutura injusta. Por isso esse modelo de escola também é um modelo de morte.

2.      Efeitos danosos da intromissão da Psicologia na educação escolar

            Se fossem eliminadas as mazelas do neoliberalismo econômico e criadas as condições dignas de existência de que muitos e muitos alunos carecem por serem espoliados pelo capital e pela globalização hipermoderna do século XXI, eu seria a favor da influência da Psicologia na educação? Ora, essa infraestrutura básica já existe para os alunos de classe média, mas existe à custa da miséria de milhões de brasileiras e brasileiros. Sinceramente, ainda que eu reconheça os benefícios da Psicologia[13], sua intromissão no ensino tem sido muito prejudicial. É antiga:

A escola seria mais eficiente, seu espírito científico qualificaria o ensino, a psicologização do processo educacional capacitaria o aluno segundo suas virtualidades, a administração escolar racionalizaria o processo educacional (CURY, 1978, p. 19 apud[14] MARTINS, 2008, p. 60).

Por trás de toda a “boa intenção” da Lei que obriga que a escola pública aceite os psicólogos (sem, contudo, garantir o aumento do orçamento de cada uma das escolas e a construção de salas e compra de equipamentos ou materiais de trabalho), existe uma preocupação com a ideologia individualista e com a criação de mão de obra, determinada que é pela classe social, invisibilizada ou posta em segundo plano pela lógica do mérito:

Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar efetivo, por um plano geral, de estrutura orgânica, que torne a escola acessível, em todos os seus graus, aos cidadãos a quem a estrutura social do país mantém em condições de inferioridade econômica para obter o máximo de desenvolvimento de acordo com as suas aptidões vitais (AZEVEDO, 1932 apud MARTINS, 2008, p. 58).
           
Estamos diante não só da criação de mão de obra barata (disfarçada pelo eufemismo das “condições vitais”), mas também da individualização do ensino e do foco no aluno — no aluno, e não no conhecimento nem no currículo em forma de plano de curso —, com todos os holofotes da sociedade do espetáculo e do consumo, que são a luva para a mão do oba-oba da pedagogia de projetos. Afirma Antonio Cândido (1952, p. 4): “o individualismo foi e continua de certo modo querendo ser o eixo da moral burguesa”. Com efeito: um ensino voltado só para o aluno, além de ser psicologizante, forma uma geração egocêntrica e até narcisista, conforme as afirmações da renomada pedagogista sueca Inger Enkvist, que aponta a pobreza de conteúdo dos alunos formados pela lógica da pedagogia moderna, que é neoliberal. Hoje, a Suécia se arrepende de ter negado a letalidade da Covid 19: seguiu a lógica de Bolsonaro, apesar de a população ter uma educação escolar de “excelência” — uma educação que supostamente só um país desenvolvido e amparado pelas tecnologias digitais tem. Além disso, o que se percebe em sala de aula é a ausência de vários conteúdos, a saber: os conteúdos conceituais (cuja ausência é causada pela falta de empenho nos estudos), os procedimentais (desvalorização do material didático, o que impede que o aluno folheie o livro didático e consulte o sumário) e os atitudinais (dano ao patrimônio escolar, desrespeito para com o professor). Sem essas bases, gera-se o otimismo pedagógico (um grave erro) e o professor fica sobrecarregado; por isso no site Nova Escola foi publicada uma notícia segundo a qual 66% dos professores adoecem. Paulo Freire[15] já falava da licenciosidade, que tem sido a tônica do comportamento adolescente. Por essa e por outras razões é preciso levar em conta o que diz Dermeval Saviani, para quem os estudantes devem se apropriar dos saberes filosóficos e científicos, isto é: da cultura erudita; assim, será feita a ponte entre os saberes instituintes, que fazem parte da cultura dos alunos, e os saberes instituídos, representados pela escola.
            A propósito: Vossas Senhorias têm filhos? Se sim, foram ou estão matriculados em escolas públicas de ensino fundamental e médio? Foram alfabetizados em escola pública? Que educação escolar desejam para seus filhos e outros descendentes? Uma educação mais clássica, conteudística? (que é a que forma professores universitários, médicos, advogados e dentistas). Ou querem uma educação moderna? (responsável pelo fato de muitos médicos hoje não entenderem nada de semiótica, que é a análise dos sintomas).
            Está mais do que comprovado que a psicologização do ensino produziu uma mudança de paradigma na didática e na pedagogia de tal modo, que as classes médias ao redor do planeta se tornaram as mais burras que a História Global já viu. Elegeram líderes fascistas, de modo que a extrema direita está se consolidando no mundo em pleno século XXI. A classe média já é vulnerável às mentiras das redes sociais e a uma série de estímulos (distrações); em casa, fica mais vulnerável às mentiras da imprensa tradicional (como a do caso da Escola Base). Falta uma educação mais clássica e humanista, que é inviável nos bairros de classe média, cuja miséria é a ausência de uma série de elementos: Quem se detiver para esquadrinhar as vitrines, os bancos e os shoppings dos bairros idílicos de Vitória verá que não há nem bibliotecas públicas, nem teatros, nem cinemas que não ofereçam apenas blockbusters. Se as classes médias já vivem em lugares tão miseráveis, os alunos das classes operárias têm sorte muito pior. Nessas condições não é possível formar leitores e leitoras que estabeleçam o diálogo entre o saber erudito (formado pelos conhecimentos filosófico e científico) e o saber popular. Curiosamente, é nas bibliotecas que se acham dicionários, gramáticas e manuais de redação e estilo, ferramentas indispensáveis à tarefa de escrever bem. O que as pedagogas e os psicólogos não percebem, mas as bibliotecárias devem conhecer bem, são os vários conteúdos atitudinais (que, pelo visto, não foram mencionados por pedagoga nenhuma até agora): a disciplina, o senso de responsabilidade, a higiene, o respeito, tudo isso são conteúdos atitudinais. Dentro da cabine de uma biblioteca, por exemplo, pode um grupo se reunir e conversar à vontade; já em outras seções da biblioteca, os indivíduos devem se comportar que nem monges beneditinos; assim, podem seguir as seguintes etapas: interação com conteúdo, explicação, exemplificação, exercício de fixação (avaliação formativa) e revisão — isso, é claro, quando não estiverem na biblioteca pelo puro e simples prazer de ler, que, como diria Ziraldo, é mais importante do que estudar. Numa era de cliente-aluno, adolescentes mimados, crianças insuportáveis, pais grosseiros e politicamente analfabetos e tantos estímulos audiovisuais, a tecnologia mais atrapalha do que ajuda. E, se os educandos não estudam, a Pedagogia moderna, com o aval “científico” dos departamentos de Pedagogia e Psicologia, pede a mão do professor à palmatória: a culpa é dele por não ter mudado a “metodologia”.
            A palavra metodologias foi tão banalizada na educação, que agora está vazia de significado condizente com o que deveria significar, enunciar ou representar. Quando é usada por “especialistas”, o único sentido que a ela atribuo na desagradável interação verbal que se dá entre mim e os seres pedantes é que ela (a palavra) se tornou um pedantismo na boca e no teclado de quem tenta dar ares científicos ao que dizem sem substância nenhuma. O termo mais preciso para designar o que se faz em sala de aula e no EaD é, conforme a estudiosa Turra, procedimentos de ensino; e, do ponto de vista funcional (e não do estrutural ou composicional), a avaliação feita com o propósito de construir ou formar o conhecimento chama-se avaliação formativa. Um exemplo de avaliação formativa é o dever de casa. (Se é feito de questões discursivas, de exercícios de preenchimento de lacunas ou de questões objetivas, então estamos diante da estrutura composicional da avaliação escrita.) Como os “especialistas” em educação (cujo grau de letramento, aliás, tem deixado a desejar) não querem se deter nessas reflexões, escolhem o primeiro pedantismo da moda que lhes ocorre e usam-no para designar elementos complexos que formam um conjunto mais complexo ainda. É que não gostam de pensar, nem de estudar, nem de ler, nem de qualquer outra atividade que dê trabalho.)
            Enquanto isso, as bibliotecas deixam de existir dentro da escola e fora dela. Pensam as pedagogas que a tecnologia do smartphone é mais barata e mais ecologicamente sustentável do que a tecnologia de Gutenberg, conquanto os tablets e os smartphones sejam muito mais caros (compare-se o preço deles com o salário mínimo) e contenham componentes químicos despejados aos montes na medida em que são descartados os pedagogicamente messiânicos aparelhos de silício. A bibliotecária, esta fica sem emprego ao mesmo tempo que se gera a paralisação do pensamento crítico, que depende de bibliotecas tanto quanto a pesquisa, e ninguém tornou obrigatória a contratação de bibliotecários para as escolas públicas. Isso o Banco Mundial não quer.
            A respeito da destruição das bibliotecas públicas (das pouquíssimas que tínhamos), como a de Alexandria, cabem as considerações do professor Ronaldo Lima Lins (2017, p. 21): “separar e isolar bibliotecas de seus leitores representa o maior dos fascismos. É como se uma determinação de governo tivesse a pretensão de imobilizar o pensamento”. Acrescente-se o que ele diz sobre o que, para mim, só pode ser uma docilização[16] das vítimas das tecnologias de informação imediata:

Nada de arrancar da mão do leitor, à força, os seus objetos de prazer [os livros]. Não. Para que polícia, canhões, salas de tortura, se existe a possibilidade de obter a adesão do alvo, do próprio sujeito das preocupações? Nesse caso, a tecnologia, mais do que a violência, de cilada pode se transformar em aliada [do poder das classes dominantes] (idem, ibidem, p. 15).

De acordo com a filósofa Marilena Chauí, esses aparelhos e a rede para a qual são janelas são instrumentos de vigilância e controle em escala planetária. Entende-se com isso que as novas tecnologias são mais vigilantes que o Grande Irmão, do romance 1984, de George Orwell. A diferença é que, no mundo real, cujas distâncias são reduzidas às de uma aldeia graças ao ciberespaço, não estão a serviço de um Estado totalitário, mas sim de um mercado totalitário. Basta ver os anúncios e as propagandas que as empresas nos mandam com base neste ou naquele perfil em que enquadram cada um de nós. É justamente por isso que não são libertárias as redes, sobre as quais seus usuários não têm controle pelo motivo óbvio de que não as produzem nem as detêm. Eles produzem sentidos, mas não produzem notícias: a interação com os textos do ciberespaço se dá na forma do consumo de informações dentro do imediatismo cotidiano. “Liberdade”, diz o aviso profético que George Orwell inseriu no seu 1984 (tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn, 2014, páginas 14 e 27), “é escravidão”. Essa escravidão é anestesiada pela ilusão de status e ascensão social gerada pela compra da tecnologia.
            A questão da liberdade de aprender e de ensinar se resume à liberdade de conhecer; por isso agora invoco o espírito de Fernando Pessoa (1986, p. 188-9):

LIBERDADE

(Falta uma citação de Sêneca)

AI QUE prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

            Minhas interpretações são as seguintes: Os que tinham liberdade para estudar eram os que tinham tempo livre, o ócio. Sêneca viveu num tempo em que só os cidadãos, que eram poucos, tinham tempo livre para os estudos; afinal, só eles eram livres, ao passo que os escravizados tinham de fazer o trabalho braçal. Infelizmente, o lugar de ócio (a escola) ainda é um privilégio. Minha avó paterna, por exemplo, não pôde ir à escola: tinha de trabalhar na roça. Ela falava com muito carinho do pai e da infância dela, embora não tivesse aprendido a ler. A alfabetização não era necessária ao trabalho realizado por uma pessoa nascida em 1918. Acho que muitos pais de alunos meus tiveram uma realidade idêntica à dela. Não vejo emprenho por parte de muitos alunos, nem interesse, nem gosto, nem senso de obrigação. É preciso que o aluno tenha consciência como juiz. Ele precisa criar autodisciplina e se autoavaliar. Até onde sei (ou até onde penso saber), a consciência como juiz é um dos ensinamentos de Sêneca, filósofo estoico. (O estoicismo, em uma de suas fases, valoriza o sacerdÓCIO e, portanto, o dever; por isso é o oposto do epicurismo, que busca o prazer.) Outra interpretação é a seguinte: o estudo e a literatura não são condenados nem inferiorizados pelo eu poético de Fernando Pessoa: eles seriam apenas símbolos que representariam o pedantismo, a desonestidade intelectual e a hipocrisia dos falsos cumpridores dos deveres, características de pessoas autoritárias como Salazar, o ministro que supostamente entende o que um dos versos menciona: as finanças. Hoje estamos vendo a ascensão do intelectual orgânico (o formador de opinião) que, só por ter diploma, é seguido e respeitado pelos leigos. (Hoje existe youtuber que faz isso sem diploma.) Esse é o caso de Mírian Leitão e Alexandre Garcia. Quanto aos versos em que é mencionado D. Sebastião, gosto de fazer um paralelo com Dilma: até hoje espero o retorno dela. Também poderíamos fazer uma interpretação superficial: o eu poético estaria seguindo a lógica do carpe diem; portanto, revelaria um certo hedonismo, como se fosse escravizado pelo próprio id.
            Tão gritante e nefasta é a influência da Psicologia na educação, que graças a ela a Pedagogia consegue psicologizar o ensino e criar uma lógica de censura à didática tradicional ou a qualquer outra que não se coadune servilmente com a pedagogia de projetos e com as tais “metodologias ativas”. (Não é à toa que a disciplina Psicologia da Educação já está presente no currículo de muitas licenciaturas e no curso Normal de Ensino Médio, que forma professoras que ficarão responsáveis pela alfabetização de crianças no ensino infantil e pelo ensino de crianças do primeiro segmento do Ensino Fundamental.) O que estamos vendo é a consolidação de imposições do Banco Mundial no contexto do neoliberalismo econômico, que nada pode fazer sem o amparo da ciência, já que, conforme o sociólogo Jessé Souza, o poder de hoje precisa do prestígio acadêmico tanto quanto o poder político medieval dependia do medo e da coerção gerados pela Igreja Católica.
            Os termos metodologias, estratégias, práticas pedagógicas inovadoras e tantos outros termos arrebitados, “científicos” ou “técnicos” não são inocentes nem neutros: são usados a serviço de uma ideologia neoliberal, burguesa e pequeno-burguesa direcionada para o empreendedorismo, que depende de protagonismo, livre iniciativa, pró-atividade e tantos outros absurdos que estão sendo impostos à educação básica e em nada se assemelham com a prática docente que vi na minha formação inicial, já que o professor universitário, felizmente, ainda tem liberdade. De modo intrigante, os mestrados profissionais nem sempre fazem ciência, porque confirmam o oba-oba pedagógico e as “metodologias ativas”. A verdadeira ciência é a que questiona os próprios pressupostos teóricos e segue um método confiável a fim de chegar à verdade — e, uma vez que o método é o caminho pelo qual se chega a ela, os pressupostos teóricos são o guia. Pode-se dizer que não se constrói o alicerce da ciência em terrenos de areia ou superfícies falsas, como, por exemplo, o princípio de que o sol gira ao redor da Terra (paradigma ultrapassado com provas ou evidências). Defender “metodologias ativas”, como se fossem universais — e como se todo professor devesse se adaptar a cada um das suas centenas de alunos —, é defender a perda da cátedra e do prestígio, sem os quais não podem os lentes e os professores da educação básica criar as possibilidades de construção de novas visões sociais de mundo. Com efeito: ninguém exige que o padre, o diretor de cinema, o pastor evangélico e os capitães de navios sejam o que cobram do professor, a quem transferem responsabilidades que são das famílias, dos psicólogos, dos psicanalistas e dos assistentes sociais, que, por sua vez, devem trabalhar fora da escola, em locais que precisam de investimentos estatais. Transferir funções de tais centros para a escola é economizar o dinheiro dos impostos, que são constantes. Tal transferência é herança do otimismo pedagógico e do entusiasmo pela educação, duas maldições atreladas ao cadavérico e pútrido Escolanovismo e inevitavelmente ligadas a essa porcaria de “metodologia” ativa. Ao invés de quebrar as duas maldições, os mestrados profissionais reforçam-na com palavras mágicas, ou seja: com um vocabulário “técnico” e “científico” que apenas mascara a ignorância e a alienação. Horas de estudos e dinheiro são investidos na criação de saberes (leia-se: de falsos saberes) que legitimam o que a pedagogia moderna já faz: culpar ou culpabilizar o professor pelo fracasso escolar, atribuído a sua formação “obsoleta” e “jurássica”. O tempo e o dinheiro gasto com o tiro no próprio pé que professores estão dando poderiam ser usados em pesquisas sobre a subproletarização do magistério, sobre os péssimos vínculos em forma de contratos temporários, sobre o baixíssimo número de concursos públicos para o provimento de cargos efetivos dos magistérios públicos, sobre o reduzidíssimo número de vagas nos poucos editais publicados, sobre a pauperização do trabalho docente, sobre a maligna influência que os donos de escolas particulares exercem no Conselho Nacional de Educação, sobre os cursinhos preparatórios de fundo de quintal, sobre a falta de investimentos nas pesquisas das ciências humanas, sobre a importância de Comênio, Herbart e Pestalozzi para o ensino e sobre uma série de mazelas geradas pela direita e pelo neoliberalismo econômico.
            As universidades, ao contrário do que queria FHC, o servo fiel do mercado e do neoliberalismo que tentou transferir para os institutos a formação inicial dos professores da educação básica, ainda são as principais responsáveis pela formação dos professores e das professoras e pela pesquisa, que precisam se politizar cada vez mais e com urgência urgentíssima. Têm de fazer isso: do contrário, continuaremos a ser esmagados, as graduações e as pós serão atingidas pelo estúpido oba-oba pedagógico (se é que já não foram), o professor universitário será um coach e as tecnologias de informação imediata — que são instrumentos de vigilância, controle e manipulação de comportamento em escala planetária num verdadeiro exercício de predomínio da função conativa da linguagem (de que fala Jakobson) — vão soterrar de vez quaisquer esperanças de realizar o meu sonho: uma educação escolar formal, amparada pelo ethos catedrático do professor, mais tradicional, mais conteudística e — acima de tudo — humanística.
            Desde os jesuítas, que usavam o teatro[17]na catequese dos índios (alguns dos muitos sacrificados do Brasil), prevalece a exposição oral da matéria, marca da didática tradicional. E não importa que o Marquês de Pombal os tenha expulsado: permanece a influência deles, e o que sei fazer é isso, e está de acordo com os conteúdos das minhas disciplinas. Uma delas, a Literatura, na contramão do que diz Roland Barthes no texto Aula, deixou de ser disciplina autônoma no currículo, e até agora ninguém se mexeu para reverter esse despautério. Mas fico com a didática tradicional: prefiro essa tal ao oba-oba tecnológico: é com a tradicional didática que trabalho bem, e ela não é incompatível com o EaD (o dever de casa é praticamente um EaD). Como diria Gil Vicente, prefiro asno que me carregue a cavalo que me derrube. A didática tradicional, aliás, nunca foi transmissiva, porque não se pode transferir conhecimento. O que os tradicionais fazem é criar as possibilidades de construção de conhecimento na interação verbal, durante a qual o ouvinte não é passivo por assumir a atitude responsiva-ativa. E não sou eu quem diz isso: é Bakhtin, linguista graças ao qual se estudam os gêneros textuais e as esferas discursivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Não podemos subestimar o perigo que representa o neoliberalismo econômico nem a importância de uma reação geopolítica, que conselho nenhum pode consolidar sozinho. Trata-se de uma guerra em que os professores, como guerreiros beligerantes e intrépidos, devem lutar pela liberdade de cátedra e pelos concursos para o provimento de cargos efetivos dos magistérios públicos, que, por sua vez, são condizentes com a esfera dos direitos e da garantia do esteio da educação escolar pública (esteio, e não custeio), gratuita e de qualidade, e não com a lógica neoliberal conservadora do mercado, que impõe salários ainda mais infames do que o de gerações passadas de professores e causa a pauperização do trabalho docente e a ausência de investimentos, sem os quais não teremos cidades decentes nem aparelhos culturais. As questões cruciais são estas: nessa guerra, os psicólogos e o seu Conselho Federal devem decidir: de que lado ficarão? Do de Tanatos? (representado por todas as políticas escolanovistas e clientelistas). Ou ficarão ao lado de Eros em nome da vida? Sei que há psicólogos que, em atitude condizente com o comportamento de certos profissionais liberais, apoiam Bozonazi. Mas a decisão que estou apontando tem de ser baseada em ciência e reflexão, e não em gostos nem em opiniões pessoais baseadas unicamente em impressões distorcidas e superficiais da realidade. Sendo assim, proponho as seguintes intervenções, divididas entre a infraestrutura e a superestrutura:
            Na infraestrutura, formada por distribuição de água, luz, alimentos, moradias, saneamento básico, prédios para bibliotecas públicas, teatros e cinemas, transporte público, aparelhos de telecomunicação, etc., precisamos:

implementar todos os itens que acabei de listar e de que carece a esmagadora maioria da população brasileira: mesmo a classe média carece deles; a diferença é que os indivíduos que dela fazem parte são anestesiados pelos shoppings e, em certos casos, pela varanda gourmet, razão pela qual são um bando de pobres-diabos;
destruir todas as igrejas evangélicas que apoiaram o golpe de Estado de 2016 e o bozonazismo.

            Já na superestrutura, formada por leis, artes, religiões, educação, outras ciências e certos comportamentos (como as violências urbana e rural), precisamos:

criar leis que tornem ilegal qualquer medida do neoliberalismo econômico tanto quanto já tornaram ilegais o racismo, o fascismo e o nazismo;

revogar as capacitações oferecidas aos professores já formados, pois carecem de base científica, uma vez que partem do implícito de que não são capacitados: elas são extremamente servis ao neoliberalismo na medida em que usam os termos “gestão” da sala de aula, estratégia, metodologias (eis um termo extremamente banalizado!), dinâmica pedagógica e outras pedantarias “técnico-científicas” de um vocabulário que é parte de uma retórica falaciosa. Isso tudo confirma que a pedagogia moderna não é científica, mas sim ideológica, isto é: servil aos interesses da classe dominante;

escorraçar as pedagogas do segundo segmento do ensino fundamental e do ensino médio (daqui a pouco estarão fiscalizando o trabalho dos lentes, os professores universitários);

revogar a Lei Darcy Ribeiro;

resgatar e sancionar o texto que propusera o deputado Otávio Elísio (PMDB/MG), o projeto de lei 1.258, de 1988, para o qual o relator escolhido foi o deputado Jorge Hage (PDT/BA);

abandonar a ideia de que a educação escolar, sozinha, vai resolver os problemas sociais e econômicos: é preciso parar de transferir para a escola funções dos psicólogos e dos centros de assistência social. Sem infraestrutura decente (água potável, luz, alimentos, moradias dignas, saneamento básico, bons prédios para bibliotecas públicas, teatros e cinemas, transporte público digno, etc.), não haverá ensino de qualidade, e currículo nenhum, quer seja oculto, quer não, não vai salvar a educação nem o restante da sociedade. Quem disser o contrário disto estará confirmando o entusiasmo pela educação, o otimismo pedagógico e o escolanovismo, movimentos de praticamente um século que são acríticos e condicionados pelos interesses dos burgueses liberais brasileiros do século XX, subservientes que eram aos mestres do norte. Esse ideário de superação da pobreza pela educação é o que o Banco Mundial prega e reforça a escola dualista, explicada por Pierre Bourdieu e outros teóricos crítico-reprodutivistas;

superar a dicotomia ensino/pesquisa, que diz que quem tem perfil de professor não tem perfil de pesquisador[18]. É esse tipo de pensamento que culpabiliza o bom professor que não consegue se adaptar à lógica do ensino básico: se um doutor não se dá bem no ensino básico, mas faz ótimas pesquisas no meio acadêmico, é porque supostamente não tem perfil de professor; enquanto isso, profissionais de formação duvidosa (eu me refiro aos que fazem complementações infames de seis meses) abaixam a cabeça para os patrões e tratam o aluno como cliente em nome da superlotação das salas de aula;

valorizar mais os programas (os conteúdos) do que o aluno;

valorizar a didática tradicional e as escolhas do professor, que “pode adotar um ou outro aspecto das diferentes tendências, desde que seja coerente com a sua filosofia de educação” (GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 19);

eliminar o apego ao resultado de avaliações e acabar com as avaliações externas, como o Pisa, tão do gosto do tecnicismo;

implementar em todas as licenciaturas oficinas e palestras sobre o conceito de intelectual orgânico, de Gramsci, porque só ele pode fazer com que os professores parem de escutar pessoas intelectualmente desonestas, como Alexandre Garcia;

cultivar atitudes e comportamentos que possam preservar as bibliotecas, os museus e a res publica com base na diferença entre o espaço público e o privado;

valorizar as bibliotecas públicas;

literaturizar a sociedade brasileira; para isso, é indispensável que a Literatura volte a ser uma disciplina obrigatória do currículo da educação básica, do qual, no extremo oposto da hipótese levantada por Roland Barthes no texto Aula, foi escorraçada e supostamente incluída na disciplina Língua Portuguesa. Até agora, as pedagogas e os pedagogistas brasileiros não se rebelaram contra isso na imprensa (pelo menos eu não me lembro de ter visto isso).

            Não se nega a influência que a superestrutura exerce sobre a sua base (a infraestrutura). Acontece que não basta interferir apenas na educação escolar, principalmente numa época de privatização e redução do Estado. Este tem de ser retirado das mãos do mercado e deve fazer todas as intervenções em todas as áreas, e não apenas as irrisórias e paliativas medidas que tem tomado dentro da lógica empresarial para transferir vários e vários encargos para a escola pública. O Estado-Nação pode e deve construir moradias decentes, centros de assistência social, estatizar empresas de distribuição de gás, água e energia elétrica e construir bibliotecas públicas e centros multimídia pelo Brasil afora. Também pode e deve proporcionar distribuição de renda e implementar políticas de aumento salarial. Em última análise, não se deve fazer da escola um centro de assistência social, que isso é repetir o erro dos anos 1930 e 1950, além, é claro, de ser uma subserviência aos ditames da cartilha do Banco Mundial e do neoliberalismo econômico (que está mais para ultraliberalismo). O que se deve fazer no mundo todo é a implementação da Social Democracia, mantenedora do Estado do Bem-Estar Social. Enquanto não houver mudanças nos dois planos — o infraestrutural e o superestrutural — o trabalho dos psicólogos em escolas públicas estará transferindo para um setor específico da superestrutura — a educação escolar pública — tarefas das quais ele não vai dar conta sozinho. Os psicólogos, sabe-se lá em que regime de trabalho (celetista? Estatutário? Temporário?) e com que recursos (a Lei não garante verbas extras nem compra de materiais de trabalho), estarão combatendo os sintomas de uma crise comportamental de modo paliativo, mas não estarão combatendo as causas profundas, que, em verdade, serão confirmadas por eles quando começarem a seguir a Lei.
            Sinceramente,

Márcio Alessandro de Oliveira, formado num curso EaD de licenciatura em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de uma rede pública. 15 de abril de 2020.



APÊNDICE I:

Os três tipos de conteúdo

conteúdos atitudinais: são os valores que o aluno constrói e carrega, tais como: respeito para com todos os que estão ao seu redor, respeito à autoridade e à instituição escolares e respeito ao patrimônio;

conteúdos procedimentais: são um conjunto de habilidades, como folhear o índice de um livro ou consultar um dicionário (e não apenas o Google);

conteúdos conceituais: são os conteúdos específicos das diferentes disciplinas.

            Os tipos de conteúdo podem se unir: Numa aula de Português, por exemplo, eu posso dizer que não há apenas uma forma de dizer determinada frase, que varia de acordo com vários fatores, dos quais um é o nível de formalidade. A partir disso, eu poderia deixar claro que não há apenas um modelo linguístico correto ou superior aos outros. Dessa forma, eu desenvolveria não apenas um conteúdo específico da disciplina, mas também um valor, isto é: um conteúdo atitudinal. Este, por sua vez, poderia gerar outro: os alunos deixariam de zombar de um colega que tivesse sotaque (conquanto os estudos da fala e os estudos da Sociolinguística não possam nem devam ser reduzidos ao sotaque nem ao vocabulário regionais).
            O grande desafio hoje é desenvolver conteúdos atitudinais. Sem eles, os alunos não vão folhear livros, não vão valorizá-los e consequentemente não vão desenvolver os outros dois tipos de conteúdo. Detalhe: os conteúdos atitudinais dizem respeito à ideologia, que não é vista como tal e que está ligada ao currículo oculto.

Os tipos de currículo

Currículo oculto: É formado pelas práticas reais da escola, condicionadas pelo senso comum, pelo poder e, é claro, pela infraestrutura, que é obrigatória e indiscutivelmente econômica. São sutis, e por isso seu caráter curricular costuma ser invisibilizado. Existe o debate entre o currículo propedêutico e o técnico. Este último forma mão de obra barata até hoje com a herança do tecnicismo, enquanto o outro deve estar ligado à infame indústria do vestibular. As injunções econômicas, pelo visto, até hoje não permitiram que a Psicologia tomasse uma medida realmente útil à realização dos sonhos dos alunos, ainda que seja ela o esteio das pedagogas e das psicopedagogas que gostam de dar carteirada: na escola pública, até hoje não individualizou o currículo para cada aluno de acordo com as aptidões dele. Realmente, a ciência nem sempre pode fazer o que deveria. É a partir do currículo, dividido em etapas ou séries graças a Comênio, que se faz o plano de ensino (plano de curso ou conteúdo programático).

Os três tipos de avaliação

avaliação diagnóstica: É uma avaliação de sondagem. Não saber, assim como o próprio saber, não é uma doença (com exceção da dislexia e de outras idiossincrasias). Tenta averiguar o que o aluno sabe, o que não sabe, o que é capaz de fazer em prova e se já tem pré-requisitos para as matérias do novo ano escolar, o que se coaduna bem com dois conceitos: o de zona de desenvolvimento proximal, que é formada pelo que o aluno não sabe, mas já é capaz de aprender por já ter os pré-requisitos; e o conceito de zona de desenvolvimento real, formada pelo que o aluno realmente já sabe ou já é capaz de fazer. Tais zonas são taxinomias de Lev Semyonovich Vygotsky, uma das tantas e tantas inteligências que a Rússia, minha segunda pátria-mãe, forneceu ao mundo. Um exemplo: quando uma criança sabe somar, diminuir e multiplicar bem, tais habilidades, devidamente cristalizadas, compõem a zona de desenvolvimento real; a divisão, por sua vez, está na zona de desenvolvimento potencial.

avaliação formativa: É usada para construir ou formar o conhecimento. Todas as atividades em sala são avaliações formativas. Seu objetivo não é proporcionar nota, mas sim fazer com que o aluno expanda a zona de desenvolvimento real. Está diretamente ligada ao método e, consequentemente, à metodologia de ensino.

avaliação somativa: Seu compromisso não é com o conhecimento, mas sim com a atribuição e soma de notas.

Os planos de ensino: o plano de curso e o de aula

            Escolas há em que a burocracia, amparada pela Pedagogia, que, por sua vez, apresenta pressupostos pseudocientíficos cristalizados e nunca (ou quase nunca) questionados devido à sua mística aura científica (o que é uma contradição em termos, já que o que é místico não pode ser científico), impõe planos de ensino semanais ou quinzenais, cujo único efeito é deixar os professores sobrecarregados de tal modo, que os documentos, que abam sendo um fim, e não um meio, inviabilizam o ensino de qualidade e tiram dos professores o bem-estar inerente à cátedra. Os planejamentos têm tudo que ver com o método. Tais planejamentos estão nos níveis macro (BNCC e PCNs), meso (currículos das secretarias de Educação e das escolas particulares) e micro. Neste último estão os planos de ensino, que são o plano de curso e o de aula. Vejamos:

plano de curso: Pode ser anual. Contém um cabeçalho, um objetivo geral e referências. Lista as matérias, os objetivos específicos de cada conteúdo, os materiais e os procedimentos de ensino; as avaliações formativas são alguns deles.

plano de aula: Basicamente, é o detalhamento de um dos integrantes da lista de conteúdos do plano de curso.  

Procedimentos de ensino: técnica, método, metodologia e pressupostos teóricos (paradigmas científicos)

            Grosso modo, o método é como uma estrada, a técnica de ensino é como um veículo automotor, a metodologia é como um mapa e os pressupostos teóricos são que nem um guia ao mesmo tempo que também são um ponto de partida. Dentro disso tudo, é claro, estão as avaliações formativas. O termo procedimentos de ensino é, justamente por ser genérico, o que designa com mais justiça e mais precisão tudo o que é feito em nome do aprendizado. Muitos professores

optam no seu cotidiano pelo emprego do termo procedimentos de ensino para externar a forma de encaminhar o ensino e a aula. Turra (1985) parece ter compreendido bem isto, pois, para a autora, o termo procedimento de ensino “generaliza todas as ações, processos ou comportamentos planejados pelo professor, para colocar o aluno em contato direto com coisas, fatos ou fenômenos que lhes possibilitem modificar sua conduta, em função dos objetivos previstos” (p. 126)”.
             Para Turra, qualquer forma de intervenção na aprendizagem do aluno é um procedimento de ensino do professor. [...] (SANTOS e GRUMBACH, 2012, p. 35).

            Para Luckesi (1995, p. 138 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 33),

o método pode ser entendido dentro de uma concepção teórica ou de uma compreensão técnica. O autor compreende Metodologia como a concepção segundo a qual a realidade é abordada. Esta é uma concepção teórica do método. Porém, afirma que há uma compreensão técnica do método que também atravessa o conteúdo, visto que “são modos técnicos de agir que estõ dentro do conteúdo que se ensina” (p. 138). Exemplo: o modo de extrair raiz quadrada (Matemática) ou o modo de proceder numa análise sintática (Língua Portuguesa). Tanto uma quanto a outra perpassam os conteúdos tratados nas diferentes disciplinas curriculares.

            Isso quer dizer que os procedimentos estão embutidos nos conteúdos, que as pedagogas não dominam devido à necessária e indispensável fragmentação do conhecimento em diferentes disciplinas.
            Podemos, pois, estabelecer o seguinte glossário:

            método: “é o planejamento geral das ações que se efetiva através das técnicas de ensino. Hoje, utilizamos a palavra procedimentos para designar um método ou uma técnica” (GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 51). É que nem uma rota. “Método é uma palavra que vem do grego, methodus, e tem duas raízes: meta (fim) e hodus (caminho)” (VASCONCELLOS, 1996, p. 40 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 33).
                metodologia: é a concepção teórica do método: este é antecedido por aquele. A concepção teórica tem de ser baseada em paradigmas científicos, como heliocentrismo numa aula de Ciências;
            técnica de ensino: é a realização ou efetivação do método. Com base nos resultados atingidos e pesquisas cujos fins são didáticos (e não propriamente científicos)[19], o professor pode mudar o método, ou seja: pode mudar o que foi planejado, “num movimento de síncrese, análise e síntese” (GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 37), de modo que a práxis seja de fato a superação da dicotomia que separa prática de teoria, cada vez mais separadas pela pobreza de recursos da escola pública.

            Com base em Herbart e nos conselhos de uma professora veterana, aprendi a dividir a aula da seguinte forma:

1ª parte:           revisão do conteúdo da aula anterior;
2ª parte:           lançamento do conteúdo novo da aula;
3ª parte:           explicação e exemplificação do conteúdo novo;
4ª parte:           fixação da matéria por meio de exercícios (avaliação formativa);
5ª parte:           dúvidas dos alunos e lição para o lar.

            Infelizmente, certos pedagogistas, que, pelo visto, nunca puseram os pés numa sala de aula como professores por se trancafiarem em torres de marfim, afirmam despautérios que apenas confirmam a supervalorização do aluno. Um exemplo são os seguintes dizeres de Vieira Pinto (1986, p. 87 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 34): “o método não pode ser imposto ao aluno, e sim criado por ele no convívio com o educador”. Eis uma premissa falsa: trata-se de um falso princípio: é falso o pressuposto de que o aluno pode criar o método. Fica implícito que o professor que se recuse a seguir esse princípio “científico” é tachado de despótico. Esse é só mais um dos vários abusos da Pedagogia moderna.
            Ressalte-se que o Sr. Vieira Pinto escolhe a palavra educador, e não a palavra professor. É que o professor é rebaixado ao nível mais subterrâneo e mais marginal. Vejamos o que diz o Sr. Rubem Alves (1983, p. 17-8 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 18):

professores são habitantes de um mundo diferente, onde o educador pouco importa, pois o que interessa é um crédito cultural que o aluno adquire numa disciplina identificada por uma sigla, sendo que, para fins institucionais, nenhuma diferença faz aquele que a ministra. Por isso mesmo, professores são entidades descartáveis, da mesma forma como há canetas descartáveis, coadores de café descartáveis. De educadores para professores realizamos o salto de pessoas para funções.

            Parece que é brincadeira, mas não é. O Sr. Rubem Alves não percebeu que abriu um precedente terrível: Se um intelectual do nível dele pode dizer o que diz como um sujeito impenitente (isto é: sem punição), que mal haverá quando pessoas de instrução muito inferior à dele seguirem o exemplo? Bom mesmo é ser educador, com toda a polissemia da palavra — coach, treinador, pai, mãe, babá, psicólogo... professor é só uma função. É incrível a ingratidão dele tanto quanto sua desonestidade. Ainda bem que já se tornou lugar-comum que pode um intelectual ser apenas um imbecil em várias línguas.
            Destaquem-se as funções institucionais. O Sr. Rubem Alves não percebeu, mas o educador, com seu olhar voltado para as emoções do cliente-aluno, tornou-se uma função organizacional no sentido mercadológico do termo, conforme o que pregam os seguidores da Escola de Chicago, ao passo que o professor, qual sacerdote, está a serviço de uma instituição; por isso sua função é institucional. A diferença entre instituição e organização é, conforme a filósofa Marilena Chauí, a diferença entre o mercado e o Estado, entre a Escola de Chicago e a Escola de Frankfurt.

APÊNDICE II

Quadro sinóptico das tendências pedagógicas e didáticas

Tendências não críticas
(não vinculam a escola aos problemas sociais e econômicos nem à hegemonia das classes dominantes)
Tendências críticas
(vinculam a escola aos problemas sociais e econômicos e à hegemonia das classes dominantes)
Teorias Crítico-Reprodutivistas[20]
(vinculam a escola aos problemas sociais e econômicos e à hegemonia das classes dominantes e denunciam que a escola mantém o estado de injustiça social, razão pela qual a elas se atribui o pessimismo pedagógico)
Pedagogia e didática tradicionais (de 1549 a 1930), representadas por Heinrich Pestalozzi (1746-1827), John Frederick Herbart (1766-1841), João Amos Comênio (1592-1670) e pelos jesuítas.
Pedagogia crítica libertadora, representada por Paulo Freire (1921-1997).


Teoria da escola como forma de violência, desenvolvida por Pierre Bourdieu e J. C. Passeron (1975).
Escola Nova (escolanovismo ou tendência liberal renovada progressivista) (de 1930 a 1960), representadas por John Dewey (1859-1952), Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo.
Pedagogia Histórico-Crítica.
Teoria da escola como A. I. E. (Aparelho Ideológico de Estado), desenvolvida por Louis Althuser.
Linha não-diretiva, representada por Carl Rogers.
Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, representada por Libâneo (1945).
Teoria da escola dualista, desenvolvida por C. Baudelot e R. Establet (1971).
Tecnicismo (pós-1964-1970), representado por Skinner.
Pedagogia Libertária, representada por Célestin Freinet (1896-1966).


Construtivismos (Correntes Interacionistas), representados por Jean Piaget (1896-1980) e Lev Semyonovich Vygotsky.


Prática reflexiva, influenciada por John Dewey, Donal Schön e Zen Zeichner.


APÊNDICE III

Características gerais das tendências pedagógicas e didáticas:

1.      Tendências não críticas
1.2.Didática tradicional
Obras: Didática Magna, de João Amos Comênio, e Ratio Studiorum, dos jesuítas.
Características: exposição oral da matéria; o professor, e não o aluno, como o principal centro do trabalho docente; valorização dos conhecimentos acumulados pela humanidade. No caso de Herbart, existem os quatro passos, a saber: preparação e apresentação da matéria nova, fixação de relações entre a matéria nova e a antiga, generalização e aplicação. Com efeito: “Comênio, Pestalozzi e Herbart formularam um método que acreditavam ser dotado de valor universal, ser capaz de imprimir ordem e unidade em todos os graus de saber” (TITONE, 1966, p. 497 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 20).

1.3. Escola Nova (escolanovismo ou tendência liberal renovada progressivista)
Obras (uma das): Manifesto dos pioneiros da Escola Nova (de 1930).
Características: influência despudorada da Psicologia; o aluno como ser ativo (embora não se tivesse provado que era passivo); o aluno como o centro de gravidade mais importante do trabalho docente; didaticismo.

1.4.Linha não-diretiva
Características: trabalho terapêutico centrado na pessoa.

1.5.Tecnicismo
Características: estudo dirigido; instrução programada; módulo instrucional; avaliação supostamente voltada para todo o processo de ensino; individualização do ensino (terrível pata turmas superlotadas); desprezo pelos condicionantes sociais; plano de aula e plano de ensino detalhados, com objetivos; valorização dos conteúdos de caráter científico; presença do supervisor escolar; gosto por resultados em exames e apego a dados quantitativos.

2.      Tendências críticas
2.1.Pedagogia crítica libertadora
Características: denúncia das condições alienantes do povo; contemplação da realidade social; valorização do cotidiano do aluno; reconhecimento do óbvio: a impossibilidade de transferência do conhecimento.

2.2 Pedagogia Histórico-Crítica
Característica: É fundamentada no princípio de que a pedagogia é uma ciência da educação e para a educação (ainda que ninguém tenha avisado as pedagogas desse princípio); acha que pode orientar a prática cotidiana dos professores.

2.3 Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos
Características: grande importância à didática; didática que tem como meta a direção do processo de ensinar; finalidades sociopolíticas e pedagógicas; tem em vista as condições e os meios formativos. Na opinião de Libâneo,

um dos principais expoentes dessa teoria, o que importa é que os conhecimentos sistematizados sejam confrontados com as experiências socioculturais e com a vida concreta dos alunos, de forma a assegurar o acesso aos conhecimentos sistematizados a todos como condição para a efetiva participação do povo nas lutas sociais (GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 28).

2.4 Pedagogia Libertária
Características: representada por Célestin Freinet (1896-1966); reflexão; experimentação; compromisso com uma escola democrática e popular; autogestão e educação pelo trabalho; correspondência interescolar; imprensa escolar; cultivo de horta.
Obras: As Técnicas Freinet da Escola Moderna e O Método Natural, ambas de Freinet.

2.5 Construtivismos (Correntes Interacionistas)
Características: representados por Jean Piaget (1896-1980) e Lev Semyonovich Vygotsky; má divulgação e má assimilação das teorias construtivistas no Brasil; valorização da interação.
Em Piaget: maturação biológica; teoria psicogenética; criança como ser ativo sempre; erro como parte fundamental do aprendizado; uso de esquemas mentais por parte da criança; estágios de desenvolvimento da criança:
período sensório-motor (0 a 2 anos);
período pré-operatório (2 a 7 anos);
período das operações concretas (7 a 11 ou 12 anos);
período das operações formais (11 ou 12 anos em diante[21]).
Em Vygotsky: atribuição de importância aos fatores externos à criança; materialismo histórico; zona de desenvolvimento proximal, que é formada pelo que o aluno não sabe, mas já é capaz de aprender por já ter os pré-requisitos; zona de desenvolvimento real, formada pelo que o aluno realmente já sabe ou já é capaz de fazer. Um exemplo: quando uma criança sabe somar, diminuir e multiplicar bem, tais habilidades, devidamente cristalizadas, compõem a zona de desenvolvimento real; a divisão, por sua vez, está na zona de desenvolvimento potencial.
Obras: Construção do real na criança, de Jean Piaget, A Formação Social da Mente, de Vygotsky, e Pensamento e Linguagem, também de Vygotsky.

2.6 Prática reflexiva
Características: influenciada por John Dewey, Donal Schön e Zen Zeichner; o ensino é encarado como forma de investigação e experimentação.

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[1] Em 2019, numa padaria, escutei por um telejornal matutino que, em fevereiro de 2020, a rede municipal de ensino de Viana (ES) implementaria a primeira escola cívico-militar. Na entrevista que uma subsecretária concedeu à televisão, disse ela que quer que os alunos sejam educados dentro da lógica do patriotismo. Isso reforça três teses: 1ª: o projeto escola sem partido é um ultraje; 2ª: a pedagogia moderna, com seu vocabulário neoliberal, sua herança escolanovista, sua licenciosidade e sua preocupação com o indivíduo que é o aluno (que, por sua vez, aprendeu a olhar apenas para o próprio umbigo em consonância com o individualismo, o mais forte eixo da moral burguesa, e com a “meritocracia”), promoveu uma inclusão às avessas, preparou o terreno para a crise da educação e, assim, facilitou a aceitação de fórmulas mágicas para a crise que estamos testemunhando, exatamente como acontece na área da segurança pública e na economia; 3ª: a educação moral e cívica nunca saiu das escolas, em que sempre esteve presente na forma do currículo oculto, tema que estudantes de Pedagogia ignoram e que, pelo visto, não é discutido nem pelos pedagogistas progressistas em suas lutas empreendidas em torres de marfim. Estamos mesmo entre dois polos: é oito ou oitenta: ou o aluno é um cliente dentro da lógica do novo totalitarismo, que, conforme luminosamente observa a filósofa Marilena Chauí (Deus a abençoe sempre!), é o neoliberalismo econômico, que impõe a mercoescola, ou caímos de vez no modelo militar de escolas. Nele, é claro, o aluno será um cliente-soldado e ninguém vai ser neutro, e justamente por isso ninguém vai admirar os feitos de Che Guevara.

[2] Daí a hipocrisia do discurso que diz que a escola é caminho de justiça social. Mas então ela não pode promover mobilidade social? Não é ela um dos mais importantes caminhos para que qualquer um tenha igualdade de oportunidades para exercer a função que esteja de acordo com suas inclinações ou talentos? Em tese, sim, mas ela não poderá fazer isso enquanto estiver subordinada à hegemonia do neoliberalismo econômico. Nas palavras de Thomas Piketty (2014, p. 471), “em todos os países, por todos os continentes, um dos principais objetivos das instituições educativas e das despesas públicas de educação é possibilitar certa mobilidade social. O objetivo reivindicado é que todos possam ter acesso à formação, qualquer que seja a sua origem social. Em que medida as instituições existentes realmente alcançam tais objetivos?”. E continua no parágrafo seguinte: “Vimos na Terceira Parte que a elevação considerável do nível médio de formação que se deu no século XX não permitiu reduzir a desigualdade da renda do trabalho. Todos os níveis de qualificação se elevaram (o diploma de ensino fundamental de antes é equivalente ao de ensino médio de hoje; se antes era preciso ser formado numa faculdade para exercer certa função, agora se exige um doutorado). Considerando as transformações técnicas e do mercado de trabalho, todos os níveis de salários progrediram em ritmos semelhantes, de modo que a desigualdade não se alterou. A questão que nos colocamos agora é a da mobilidade: a massificação do ensino permitiu uma renovação mais rápida entre vencedores e perdedores dentro da hierarquia das qualificações, para uma dada desigualdade? De acordo com os dados disponíveis, a resposta parece ser negativa: a correlação intergeracional entre diplomas e rendas do trabalho, que mede a reprodução das hierarquias no tempo, não parece manifestar uma tendência de baixa no longo prazo e parece até mesmo manifestar uma tendência de aumento mais recente”. Resta a discriminação: impor grais de escolaridade para serviços domésticos, por exemplo, é uma prática elitista que assume a forma de violência simbólica. A educação escola deixa de ser um direito para ser uma obrigação.

[3] O desejo por promoções e ascensão na carreira pode gerar a obediência cega e o pensamento de grupo, marcas do nazismo. Disso tudo é prova o caso de Eichman, analisado por Hanna Arendt.

[4] Daí o cuidado que devemos ter com Paulo Freire, para quem não devem trabalhar na educação aqueles que nela não acreditam. Ele, que não era licenciado em Pedagogia, mas era bacharel em Direito, reforça o entusiasmo pela educação e o otimismo pedagógico, que são extremamente úteis à direita e ao capital. Não é a toa que ele, que não gostava de que a professora fosse chamada de tia, se tornou pai da educação. Com efeito: as palavras, pai, pátria, patrono e padre são cognatas. Ele é patrono da educação brasileira.

[5] Segundo a professora Marcia Souto Maior Mourão Sá (2012, p. 155), com Miguel Couto, “o preconceito contra o analfabeto atinge a sua forma mais extrema: ‘Analfabetismo é o cancro que aniquila o nosso organismo, com as suas múltiplas metástases, aqui a ociosidade, ali o vício, além do crime. Exilado dentro de si mesmo como em um mundo desabitado, quase repelido para fora da espécie pela sua inferioridade, o analfabeto é digno de pena e a nossa desídia indigna de perdão enquanto não acudirmos com o remédio do ensino obrigatório’”.

[6] O simples fato de o Código Civil e o Penal não darem conta de simbolizar a obrigatoriedade de respeitar as crianças e os adolescentes (que deveriam ser respeitados de acordo com o bom-senso, e não por obrigatoriedade normativa) revela que foi necessário usar a força da lei para garantir que não se repetissem erros históricos, erros que causaram a morte de vários deles. Contudo, embora o ECA acerte ao dar, por exemplo, garantias idênticas aos filhos adotados e aos biológicos, ainda há um quê de superproteção. Mas o ruim não é o ECA: ruim são as interpretações reducionistas que gestores escolares a ele atribuem para ameaçar professores. Tais gestores, que esqueceram a importância do trabalho de construção de conhecimento ou que nunca a tiveram em mente na medida em que não foram bons estudantes nem bons professores, ignoram que o ECA adota a concepção de sujeito jurídico, compatível com a sociedade democrática, livre e burguesa, muito diferente da sociedade religiosa do Antigo Regime (o regime feudal), que, a seu turno, era a sociedade medieval, em que não havia cidadãos, mas sim servos. A mentira de tais gestores consiste em dizer que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos, enquanto o adulto é um sujeito de obrigações. São cínicos tais gestores escolares: as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos, mas também são sujeitos de deveres: a existência de um direito sempre pressupõe a existência de um dever. Não existe uma moeda de apenas uma face: essa é a condição básica do contrato social e das sociedades ditas democráticas. A prova disso é que adolescentes não podem ser presos, mas podem ser apreendidos e encaminhados a locais próprios de reclusão.

[7] Adoto o que diz Michael Löwy (1987, p. 12) (que distingue utopia de ideologia e ideologia de visão social de mundo): “O pensamento utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo explosivo. O sentido estreito e pejorativo do termo (utopia: sonho imaginário irrealizável) nos parece inoperante, uma vez que apenas o futuro permite que se saiba qual aspiração era ou não ‘irrealizável’”.

[8] Também adoto o que diz Marilena Chauí (1997, p. 3), que define ideologia com os termos seguintes: “não é apenas a representação imaginária do real para servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes, como não é apenas a inversão imaginária do processo histórico na qual as ideias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante”.

[9] Raquel Souza Lobo Guzzo, num dos textos reunidos no livro Psicologia Escolar: que fazer é esse? (2016, p. 21, destaques meus), oferece ao leitor um parágrafo que, a meu ver, é meio confuso: “A implementação de políticas públicas e programas que visem a [sic] proteção à [sic] crianças e adolescentes, [sic] é determinada de forma ampla pelo modelo social predominante. Sociedades neoliberais, cujos valores são a competição e a [sic] individualismo [sic] têm pouca preocupação com a implementação de políticas que se voltam para uma ação coletiva. É preciso que se tenha claro que, [sic] o trabalho em comunidade de risco só tem sentido se estiver inserido em um conjunto de políticas públicas mais amplas, nas quais todos os segmentos da sociedade possam estar incluídos. A busca pela colaboração solidária como uma alternativa para o combate à globalização capitalista tem sido uma fonte inesgotável de trabalhos comunitários que pouco contribuem para as mudanças sociais”. A implementação de tais políticas é determinada de forma ampla, mas, para a autora, tem de ser ainda mais ampla do que já é. Que se deve entender por amplitude e “todos os segmentos da sociedade”? Está ela se referindo às condições materiais de vida? Ou está se referindo ao engajamento de todas as classes quando usa a palavra segmentos? Ainda que ela acerte ao fazer crítica às sociedades neoliberais, ela se queixa da globalização capitalista, quando o problema é a forma que o capitalismo assume: a forma financeira e neoliberal. Além disso, as sociedades capitalistas têm preocupação em implementar políticas públicas de proteção e amparo: fazem parte das políticas das classes dominantes desde aos anos 1930 e 1950 e da cartilha do Banco Mundial, como demonstro nesta carta. O livro todo, lamentavelmente, só dá atenção ao que pensam os professores em apenas um dos vários textos nele reunidos. Toda a preocupação do livro é com a assistência social, com a inclusão e com toda uma série de ideais e princípios cooptados pelo neoliberalismo. Meu palpite é o de que uma análise minuciosa revelará que subjaz aos textos um conjunto de consciências ingênuas.

[10] Tratar sintomas e causas de sintomas de adolescentes com o mínimo de estrutura socioeconômica deve ser bem mais fácil. Nesse caso, o trabalho do psicólogo é viável, a despeito da delinquência praticada e acobertada por pais e mães da alta classe média.

[11] Se eu tivesse de arriscar um palpite, eu diria que isso é fruto da influência do estilo de vida estadunidense (american way of life). Os ianques, reconhecidamente burros e dados ao pensamento de grupo, este que tem tudo que ver com os totalitarismos e que deve ser estudado pela Psicologia Social, integram todos os aparelhos ideológicos da comunidade em nome da repressão. Isso tem que ver com os calvinistas. Acho que não há uma escola pública sequer dos meios urbanos brasileiros que não conte com a influência de um pastor evangélico.

[12] As educações escolares (a pública e a privada) herdaram os resquícios da herança da escravidão, da ditadura militar e, hoje, demonstram que conseguiram domesticar o magistério, cuja formação inicial e cuja formação continuada ainda são precárias. O pior é ver a identidade profissional que se construiu: A relação entre o escravizado e o cidadão gregos deu lugar à que havia entre o vassalo e o suserano; esta, por sua vez, foi substituída pelo conflito entre o empregado assalariado e o patrão quando o segundo (ou o protótipo do segundo) ascendeu de classe média mercantil a capitalista industrial. Hoje, testemunhamos um novo salto, dessa vez num abismo frio e lúgubre: o do empreendedorismo que é praticado pelo sujeito que se vê como empresário de si mesmo e que, no Brasil, marcado e até hoje prejudicado pelo regime trabalhista que Portugal aplicou na expansão marítima na contramão do progresso que a Grécia antiga jamais testemunharia (até porque mil anos antes ela aplicava o regime da escravidão), mistura-se com uma série de ideias capitalistas implementadas sem a mínima base, o que nos remete à tese de que em se plantando tudo dá, mas a ela se acrescenta que é como uma maldição. O professor brasileiro, é claro, não é imune a essa imitação servil do american way of life (estilo de vida estadunidense), razão pela qual ele, que há muito deixou de ser equiparado ao sacerdote, ao militar ou a outro agente ideológico de prestígio de Estado, passou a ser o desgraçado vendedor de aulas que tem sido nos últimos tempos, em que, com a regularidade do sol, sofre todos os efeitos danosos da mais-valia, e a isso reage da pior forma: aceita tudo e mais um pouco; até abre cursinho preparatório depois de internalizar a identidade de patrão ou “empreendedor”, como se construção de conhecimento fosse mercadoria. Quanto mais internaliza os valores burgueses, mais subproletarizado fica o magistério — e dessa condição, causada por uma série de fatores, advém uma cascata de efeitos que retroagem sobre a origem, condicionada pelo contexto geopolítico.

[13] É importante que o aluno associe a imagem do professor a coisas agradáveis. (Se eu pudesse, daria chocolate a todas as minhas turmas no primeiro dia de aula.) Isso tem que ver com o behaviorismo. A publicidade sempre faz isso: os fabricantes de cerveja, por exemplo, contratavam (ou ainda contratam) atrizes bonitas para os comerciais. (O dinheiro gasto na propaganda deve ser repassado pro consumidor, mas isso não vem ao caso.) O estímulo simples em forma de afeto vai aos poucos condicionando o aluno no esquema estímulo-resposta-reforço. Não conheço Henri Wallon, mas, se eu tivesse de arriscar um palpite (eu, que não sou pedagogo nem pedagogista), diria que todas as tendências pedagógicas posteriores ao Escolanovismo seguiram o que diz John Dewy (que era mais psicólogo do que professor). Os construtivismos não escapam disso. O problema é que o professor precisa repreender os alunos, e existem lugares onde tem que fazer isso com a regularidade do sol, e aí ele se torna refém de uma psicologia duvidosa, inciada por John Dewey em 1920, ano do Escolanovismo, que dez anos depois chegaria ao Brasil ao ser “importado” por Anísio Teixeira e outros. Não nego afeto, mas, pelo que entendi, o que Henri Wallon postulava ou propunha era que o afeto fosse condicionante (mas não necessariamente determinante) do desenvolvimento do aluno dentro dos estágios de desenvolvimento de Piaget. Esses estágios, por sua vez, dizem respeito à infância, então meu interesse por eles é muito distante e muito pequeno. É que eu trabalho no segundo segmento e no ensino médio (e se tudo der certo estarei dando aula na faculdade). Todas essas teorias já têm uns cem anos. Parece que falta contextualização. Acho mesmo que devem ser examinadas, contextualizadas, testadas e exemplificadas nos artigos acadêmicos e em outros textos de divulgação científica dentro e fora da faculdade, que é a responsável pela formação de quem vai trabalhar em sala de aula, só que pro meu azar elas não se limitam à educação infantil nem ao primeiro segmento do ensino fundamental: a Pedagogia, que sempre se preocupou com a criança, e nunca (ou quase nunca) com o adolescente nem com o adulto, tenta impor tudo o que ela diz a todos os níveis (ao segundo segmento do ensino fundamental, ao ensino médio e até ao ensino superior) e a todas as modalidades de ensino (EAD, presencial, EJA, educação no campo). Num tempo em que faltam ritos de passagem e pessoas continuam morando com os pais até os quarenta ou cinquenta anos, isso é preocupante. Não é à toa que, hoje, alunos do 7º Ano (antiga 6ª série) chamam o professor de tio.

[14] Sou obrigado a usar o apud: faltam bibliotecas públicas, livrarias e dinheiro: sem esses elementos, não posso ler na íntegra o que dizem certos autores.

[15] É ele, que nunca trabalhou como professor da educação básica, que diz que quem não acredita na educação deve trabalhar em outra coisa. Com isso reforçou o ideário escolanovista e o otimismo pedagógico. Ele e o escolanovismo têm uma coisa em comum: concentram-se demais no aluno e na socialização.

[16] A título de curiosidade: Michel Foucault não é dono da verdade. A docilização dos corpos, de que fala o intelectual francês, é uma teoria baseada nos séculos XVII, XVIII e XIX, períodos em que prevalecia o capitalismo produtivo, que dependeu do trabalho braçal. Hoje, estamos testemunhando a ascensão e a consolidação do capitalismo financeiro, que anda de mãos dadas com o neoliberalismo econômico e com a ditadura da sociedade de consumo e espetáculo da hipermodernidade. Essa sociedade não depende da exploração do corpo nem da repressão da sexualidade (que têm muito que ver com o surgimento da psicanálise e toda a moral vitoriana finissecular dos anos 1800): ela depende, antes de tudo, do ócio, do tempo livre, sem o qual o indivíduo que fica horas e horas no campus lendo textos de intelectuais de ponta não pode ir ao shopping para comprar uma camisa com a imagem de Che Guevara nem se entregar aos prazeres passageiros proporcionados pelas tecnologias de informação imediata, como smartphones, tablets e videogames. Esse mesmo ócio é útil ao que Olgária Matos chama de apelo sensual do inorgânico, presente nas vitrines das lojas e dos anúncios publicitários, que seduzem os potencias consumidores que carregam cartão de crédito. Para a escola pública brasileira do século XXI (da qual estão bem distantes os filhos dos brasileiros e brasileiras que escrevem textos sobre as ideias de Foucault, uma vez que estes matriculam aqueles em escolas particulares), a docilização está em preparar o aluno para ser um escravo dos prazeres e do desejo de consumir a tecnologia produzida por países desenvolvidos. É preciso rever as teorias foucaultianas e toda a pedagogia escolanovista à luz da hipermodernidade. Sem uma contextualização apropriada, qualquer intervenção vai ser vista como opressora, quando na verdade o que se quer é fazer com que os alunos deixem de ser escravizados pelos próprios ímpetos.

[17] Uma pedagoga moderna certamente diria que o uso do teatro é uma “metodologia ativa”.

[18] Infelizmente, Hammersley e Ludke aumentam a distância entre a pesquisa e o ensino. Ludke, por exemplo, chega a dizer que o professor não deve ser pesquisador por ele (o professor) correr o risco de não fazer bem nem a pesquisa, nem o trabalho de ensino. Obviamente isso é um despautério.

[19] No caso da educação linguística, é preciso entender que o professor de língua não é necessariamente um linguista, embora todo bom professor seja um pesquisador. Se eu, por exemplo, formulo a hipótese de que as palavras vampira e vampiresa são variantes que coexistem e exemplificam a diferença entre norma culta (que é real) e norma culta-padrão (que é idealizada e, em muitos casos, fica distante do português realmente escrito e falado por pessoas letradas), então eu tenho uma hipótese de pesquisa para a área da Sociolinguística ou Linguística Variacional. Já o trabalho de descobrir em livros e até em outros textos de divulgação científica o melhor caminho para no 6º Ano ensinar o adjetivo e seu funcionamento dentro do sintagma, embora seja trabalho de professor-pesquisador, é um ofício cujo propósito é didático, e não propriamente de descoberta. O professor tem de estar em dia com o conhecimento científico, ao passo que o linguista cria tal conhecimento.

[20] Foi Dermeval Saviani quem, em 1984, deu esse nome ao identificar as correntes francesas. Foi ele também quem fez a divisão das tendências em três categorias.

[21] Parece que não é à toa que o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que, a partir dos doze anos completos e até a véspera do décimo oitavo aniversário, o indivíduo não é mais criança, mas sim adolescente. Para Rosely Sayão, não existe pré-adolescência.