domingo, 12 de agosto de 2018

CARTA DE AMOR A FULANA


Imbariê, bairro sede do 3º Distrito de Duque de Caxias.  De 18 a 25 de abril de 2018.

            Prezada Fulana:

            Sei que é extremamente incomum que uma pessoa se apaixone por outra sem que se conheçam muito bem.  Mais incomum é que um sujeito fique escrevendo versos para a amada em pleno século XXI. Só que eu não consigo esconder meus sentimentos, que borbulham quando eu a vejo passar: estou perdidamente apaixonado por você, que é um dos poucos motivos pelos quais ainda bate meu coração, cujo ritmo acelera como as batidas de um tambor quando eu a vejo.  É preciso ter coragem para declarar o amor, mesmo que haja o risco de ele causar estranheza.  (Não tenho opção: acho que em breve estarei saindo do estado do Rio por conta de alguns concursos públicos que prestei; então tenho de aproveitar minha estada aqui.)  Seu olhar, cuja ternura é irresistível, arrebatou meu coração como um clarão de luz arrebata um crente que, à espera do dia em que será levado ao paraíso, ascende aos céus depois de ser sugado pela coluna de luz.  O equilíbrio cósmico do universo repousa com absoluta simetria em seus olhos, que me conquistaram desde a primeira vez em que a vi na Praça de Imbariê (e também na segunda ocasião, que foi o Festival de Artes de Imbariê).  E ainda nem mencionei o seu sorriso, que, como diz a canção, de tão resplandecente, deixou meu coração alegre. 
            Você deve ter notado que no poema que escrevi para você há uma exaltação da sua figura.  Talvez essa exaltação seja uma forma de objetificar você, apesar de essa interpretação não me agradar nem um pouco.  Ainda que eu seja favorável ao feminismo, sou obrigado a reconhecer que muitas noções masculinas e machistas podem ter condicionado o modo como descrevo você naqueles versos: mesmo que minha intenção não tenha sido a de estereotipar ou reduzir a sua figura a um objeto de contemplação, posso ter feito isso por causa de uma visão de mundo da qual nem sempre consigo escapar.  Afinal, por mais que eu não queira, sou influenciado e favorecido pela mentalidade machista.  Caso você tenha notado essa redução em forma de objetificação, deixo aqui o meu pedido de desculpas.  (Florbela Espanca, uma poetisa de Portugal, conseguia exaltar o homem amado, mas, embora eu não consiga me lembrar direito dos versos que ela escreveu, acho que ela fazia isso com uma maestria da qual nem chego perto quando escrevo sobre você.)
            Na verdade, você vai ter de me perdoar duas vezes, porque você é um anjo, um ser celestial.  Nem o mais incandescente dos astros brilha tanto quanto sua graciosidade; nem o mais pálido raio de luar é mais puro e alvo do que o seu rosto juvenil; nem a mais suntuosa e mais polida moldura de ouro é tão resplandecente e firme quanto os seus olhos; nem os mais belos véus de água de cachoeira são tão bonitos e puros quanto os seus cabelos; nem o mais límpido céu é tão perfeito quanto você, por quem Deus deveria descer à Terra, onde proclamaria a eternidade da primavera, que passaria a ser estação única.  Tivesse eu o poder, ergueria um grande templo para fazer culto à sua imagem.  Eu seria um religioso xiita que faria sacerdócio do cultivo do meu amor por você, a quem eu ergueria um grande monumento, uma grande estátua feita à sua imagem e semelhança (preferencialmente em frente a igrejas em que se concentram homofóbicos e lgbtfóbicos), e em torno dela, montado em Pégaso, eu faria muitas e muitas reverências para pagar tributo.
            Costumo dizer que sou ateu e comunista de carteirinha, mas, como diz Mário Quintana no poema Cocktail Party, “somos democratas e escravocratas”; então, posso ser e não ser ateu ao mesmo tempo.  Digo que sou ateu e comunista por razões políticas.  É um modo de fazer oposição a valores falsos, como a misoginia, o machismo, a homofobia, a meritocracia e a teologia da prosperidade, ideias perigosas que estão em entidades religiosas que se aproveitam da ignorância de muitas pessoas.  Por isso eu gostaria de viver numa sociedade em que Marilena Chauí, Márcia Tibúri e Simone de Beauvoir fossem algumas das referências nas conversas entreouvidas nas ruas por onde ando.  Na verdade, deveriam ser referências no mundo todo, um mundo ideal em que, como diz Fábio Altro, da banda Dance of Days, na canção Se essas paredes falassem, “Marte ama Marte,/ e Vênus pode passear/ De mãos dadas com Vênus sem se preocupar”.  Espero que, como professor de Literatura, Português e Produção Textual, eu consiga mudar isso.  Imagino que você, que faz o curso Normal, também deseje mudanças sociais.  Diz Paulo Freire que mudar é difícil, mas não impossível.  Acredito na utopia.  E acredito também na necessidade de lutar.  Sabe...  em Harry Potter e o Enigma do Príncipe (página 504), há uma passagem em que Harry se lembra da necessidade de lutar; é assim:

E Harry lembrou-se do pesadelo que fora sua primeira ida à Floresta, a primeira vez que encontrara a coisa que então era Voldemort, e como a enfrentara, e como, pouco tempo depois, ele e Dumbledore tinham discutido as razões de se travar uma batalha perdida. Era importante, dissera Dumbledore, lutar, e recomeçar a lutar, e continuar a lutar, porque somente assim o mal poderia ser acuado, embora jamais erradicado.

               Uma das formas de luta é a arte.  A arte é forma de existir e também de resistir.  E isso porque é uma forma de sonhar.  Os fuzis e outras armas de fogo estão nas ruas do bairro, mas mesmo assim eu lhe escrevi um poema de amor.  Onde há trevas, a arte projeta luz (espero que essa luz banhe o mundo e nele transborde).  A propósito: amar é um gesto político.
            É bem provável que você não queira nada comigo.  Mas quero que saiba que, mesmo que jamais haja a menor chance de aproximação amorosa, vou gostar muito de pelo menos ser seu amigo — se você permitir, é claro.  Se você não permitir nem uma coisa nem a outra, vou aceitar de modo resignado e continuar desejando, com admiração, que você continue sendo essa pessoa maravilhosa.  (Caso algum dia cheguemos a ter uma aproximação, e ela der em casamento, você precisará de paciência para lidar com um homem que vive dos estudos linguísticos e literários e para eles.  Também vai precisar lidar com o ciúme, pois terei duas amantes: Dilma Rousseff e Marilena Chauí.  É que cada uma delas ainda dá um caldo, rs.)  Brincadeiras à parte, você transmite boas vibrações, boas energias, e elas reverberam pelo cosmo, do qual me aproximo graças a elas.
            Sempre que precisar de ajuda, e eu puder ajudar, poderá contar comigo: estou às ordens: eu me coloco a seu serviço como um vassalo.  E desejo a você toda a felicidade do mundo, do fundo do coração deste poeta amador.
            Aguardo resposta.
            Sinceramente,

            Márcio

quarta-feira, 16 de maio de 2018

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PEÇA "A CLOACA", DE PAULO JORGE DUMARESQ


          Toda crítica precisa ser fundamentada.  Isso quer dizer que não pode ser baseada apenas em gostos pessoais nem apenas em impressões.  Não pode, em tese, ser meramente valorativa.  Hoje, no entanto, talvez eu faça uma exceção para quebrar meu código de conduta.  É que em 2017, na Casa Brasil de Imbariê, foi encenada a peça A Cloaca, um triste espetáculo de cenário grosseiro, diálogos exagerados, coerência interna duvidosa e símbolos que não passam de personificações moralistas da humanidade, uma abstração eurocêntrica e judaicocristã que condiciona a intenção do autor, cujas personagens se dirigem ao público: este é interpelado de modo incômodo por aquelas.
            A produção de sentidos, é claro, é fruto da interação: o público interage com a peça, em que, num fim de mundo, Pérfido, na abertura, simula a excreção.  Nota-se que se trata de uma baixaria feita apenas para apelar.  Apelar, aliás, é lugar-comum na sociedade do espetáculo, em que prevalece o oba-oba das artes visuais e dos sentidos.  A razão quase não é praticada.  Não por acaso a peça foi apresentada em Imbariê num ano em que a Biblioteca Pública de Imbariê está fechada devido ao danos causados no prédio por uma chuva, que destruiu boa parte do acervo.  Mas voltemos à indigna peça: nela conversam as personagens Soberbo, Modesto, Pérfido e Tristânia (três homens e uma mulher).  Tristânia é uma bela mulher que se envolve num triângulo amoroso.  Sua roupa de baixo fica guardada numa caixa, que pertence a um dos homens.  Ela é estuprada por Soberbo na presença de Pérfido.  O estupro é vingança contra Tristânia e seu namorado, já que ela preferiu Pérfido a Soberbo.  Até hoje não sei como não senti náusea diante da cena de estupro.  Tristânia fica de quatro e o ator que representa Soberbo simula a penetração por alguns minutos.  Detalhe: no folheto de anúncio da peça, não havia classificação indicativa de idade.  A única mulher da peça é disputada como um objeto.  Essa é a moral machista do texto.  Uma crítica feminista pode analisar muito melhor essa parte.  Eu, que não entendo desse tipo de crítica, posso apenas ficar com a advertência de Machado de Assis, que não queria ver o Naturalismo no teatro.  Agora sei por quê.
            Não há alegoria, pois não há nada para decifrar: há apenas personificações óbvias e grosseiras de uma humanidade com a qual eu decididamente não me identifico.  O linguajar rebuscado, marca de certas identidades, erra a mão em alguns pontos da encenação a que assisti: em alguns momentos pode ter sido praticada a incompatibilidade de registros.  Parece que ela é o que acontece quando se misturam os registros formal e informal.  E não há verossimilhança que justifique isso: a proposta é a de mostrar personagens pedantes: Soberbo não é o único a apresentar uma retórica sofisticada.
            A coerência interna do texto é questionável: Afinal, a cloaca é o fim do mundo?  Se sim, há imanência ou transcendência?  Não há nada que indique uma coisa ou a outra.
            A conclusão a que chego é a de que o autor queria montar cenas de conflitos, justificadas por um contexto qualquer.  Intrigas amorosas e sexo atraem público, que de brinde recebe um verniz pseudofilosófico.
            Espero que nunca mais encenem A Cloaca em Imbariê.  Este povo não precisa de peças pessimistas nem de personagens que perguntem qual é o sentido da vida ao público.  (Curiosamente, uma das respostas contemplou a família e Deus, ou seja: o senso comum, ou seja ainda: o status quo.)  O povo precisa de uma ficção que lhe dê esperança e nele desperte raciocínios, e não de um texto que apenas reforce o quão nefasta é a humanidade.

(Márcio Alessandro de Oliveira.  Imbariê, 17 de maio de 2018.)

sábado, 12 de maio de 2018

POR UM CURRÍCULO QUE VALORIZE A ARTE NA EDUCAÇÃO DE IMBARIÊ, UM DISTRITO ESPOLIADO PELA BURGUESIA




 “O pensamento utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo explosivo. O sentido estreito e pejorativo do termo (utopia: sonho imaginário irrealizável) nos parece inoperante, uma vez que apenas o futuro permite que se saiba qual aspiração era ou não ‘irrealizável’.

(Michael Löwy, 1987, p. 12.)

            Cultura é modo de viver, e é nela que, como seres históricos, as pessoas se educam mediatizadas pelo mundo, como diz Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido, 2011, pp. 95-100), ao que se acrescenta que são também mediatizadas pela arte, que é antes de tudo uma ação transformadora, calcada na certeza do inacabemento do ser humano.  Sendo ele um ser inconcluso e histórico, tem consciência de seu inacabamento, e por isso mesmo tem a vocação para ser mais (idem, ibidem, pp. 101-7).  Não há determinismo: há condionamento, e a arte é um fator condicionante por excelência de um certo modelo de ser humano que a educação escolar tenta (pelo menos em tese) construir na interação entre seres humanos, ou seja: na vivência, ou seja ainda: na convivência. “Desta maneira”, escreve o educador recifense, “a educação se refaz constantemente na práxis.  Para ser tem que estar sendo” (idem, ibidem, p. 102).  É por isso que se faz necessário um currículo escolar pautado por uma “concepção problematizadora, que, não aceitando um ‘presente-comportado’, não aceita igualmente um futuro pré-datado, enraizando-se no presente dinâmico, [e] se faz revolucionária” (idem, ibidem, p. 102).  Em verdade, a ação cultural aqui proposta seria uma resposta à espoliação do 3º Distrito de Duque de Caxias, região na qual fica o local de nascimento daquele que dá nome ao município, mas a qual, quando não é invisibilizada, é estigmatizada com os casos de criminalidade urbana, como se eles fossem a única forma de violência.  Acontece que a criminalidade urbana e a pobreza são um fruto de uma violência muito maior, que não é vista como tal, e que é reforçada diariamente: o status quo, que impossibilita que áreas periféricas, onde moram os trabalhadores e as trabalhadoras, contem com bibliotecas, teatros e cinemas.  Em outras palavras: este ensaio é uma resposta em forma de “Denúnica de uma realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens possam ser mais”, ao mesmo tempo que a utopia é “a unidade inquebrantável entre a denúncia e o anúncio” (Paulo Freire, 2011, p. 102).
            É preciso que em Imbariê haja uma revolução curricular e didática que consista em instrumentalzar pedagogicamente alunos do curso de formação de professores (curso Normal) com informações de conteúdos artísticos;  assim, é possível estabelecer uma relação entre as diferentes formas de arte e o ensino-aprendizagem.  Essa proposta, é claro, pode ser levada ao curso de formação geral e ao Ensino Fundamental também. Em última análise, é necessário proporcionar pedagogicamente àquelas e àqueles que são as futuras professoras e os futuros professores do primeiro segmento do Ensino Fundamental o acesso a atividades artísticas e culturais.
            É nesse segmento que mais se desenvolvem as habilidades básicas (e não propriamente conteúdos).  Uma vez que as habilidades intelecutais (ler, escrever e contar) dependem do corpo tanto quanto as habilidades motoras, a educação artística pode proporcionar um condicionamento complementar a tais habilidades, além, é claro, de proporcionar vez e voz às pessoas matriculadas no curso Normal, em cujo currículo, sujeito que está a imposições mercadológicas que não dão valor às artes, nem sempre encontram margem para que possam se expressar nem treinar o que será uma de suas ferramentas de trabalho: a voz e o restante do corpo.
            A falta de vez e a ausência de voz, é claro, vão muito além da instrumentalização da arte como ferramenta pedagógica ou complemento curricular de formação de cidadãos e futuros professores e professoras.  Com efeito: os habitantes de Imbariê e do restante de Duque de Caxias não veem na própria identidade a autonomia.  Dentre os que podem fazer uma intervenção, poucos seguem o raciocínio abaixo, lido em voz alta por uma famosa escritora britânica para os formandos de Harvard de 2008:

Se vocês escolherem usar seu status e sua influência para elevar a voz por aqueles que não têm voz; se escolherem se identificar não apenas com os poderosos, mas também com aqueles que não têm poder; se vocês conservarem a capacidade de se imaginar na vida dos que não possuem as mesmas vantagens que vocês, então não serão apenas suas famílias orgulhosas que irão comemorar sua existência, e sim milhares e milhões de pessoas cuja realidade vocês ajudaram a mudar para melhor. (J. K. Rowling, 2017, p. 67.) 

            Contudo, seria ingenuidade esperar que de cima para baixo viesse um projeto como este, que oferecerá a tais estudantes acesso a informações de conteúdos pedagógicos sobre a Arte e suas implicações no ensino-aprendizagem.
            Pode-se afirmar que a razão de ser deste ensaio é a carência de espaços culturais.  Sem eles, as professoras e os professores não poderão proporcionar aos alunos o que eles mesmos (professoras e professores) não têm: uma vivência artística produzida num curso que é voltado inteiramente para a Arte, inviabilizada em outros espaços pelo simples fato de estes praticamente não existirem ou por existirem em quantidades pífias.  Há, sim, arte em muitos lugares, e não apenas em museus e teatros de renome.  Uma vez que “A educação em arte só pode propor um caminho: o da convivência com as obras de arte” (Maria Aranha e Maria Martins, 1986, p. 386), é necessário perceber aquelas “que estão nas ruas: certos edifícios, casas, jardins, túmulos.  Passamos por muitas delas, sem vê-las.  Por isso, é preciso uma determinada intenção de procurá-las, de percebê-las” (idem, ibidem, p. 387).
            O que mais inviabiliza a concretização das ideias aqui apresentadas é a falta de bibliotecas públicas.  A Bilioteca Pública de Imbariê foi destruída durante uma chuva, que danificou boa parte do acervo.  Uma biblioteca é tão indispensável quanto um hospital ou uma escola, mas há anos ela é tratada como se não fosse imprescindível.
            O principal objetivo deste projeto é o de evidenciar e reafirmar a arte não apenas como uma ferramenta de integração e fortalecimento do laço social, mas também como caminho para a emancipação e empoderamento de normalistas e outros estudantes da região, já que fazem parte das classes educacionais menos favorecidas do distrito, da comunidade.
            A arte é capaz de produzir conhecimento a serviço daquelas e daqueles que a produzem ou com ela interagem, como se vê nos estratos mais privilegiados da população.  Thomas Mann, autor do romance Doutor Fausto, na narrativa apresenta o personagem Adrian Leverkünhn, um compositor que acredita que a arte precisa se libertar

De ficar só com uma elite a que damos o nome de “público”, pois esta elite em breve não mais existirá e, de fato, atualmente não mais existe.  E, quando ela deixar de existir de todo, a arte ficará completamente sozinha, mortalmente só, a menos que encontre um caminho para o “povo”, ou, para dizê-lo em termos menos românticos, a menos que encontre um caminho para os homens.  (Thomas Mann, citado por Ernst Fischer em A necessidade da arte, sem data, p. 236.)


            No dizer de Fischer (quando cita Mann), na realização desse vislumbre, a arte conseguiria “mais uma vez se ver como serva da comunidade, uma comunidade que não tivesse uma cultura, mas talvez fosse uma cultura..., uma arte intimamente vinculada ao gênero humano” (idem, ibidem, p. 236, destaques deste ensaio).
            A principal motivação deste projeto é a vontade de ajudar a suprir a carência de oportunidades de acesso a conteúdos do campo da arte na educação de jovens do curso Normal e de outros segmentos e níveis de ensino escolar.  O intuito é o de instrumentalizá-los para futuras ações na sala de aula.
            Os objetivos desta proposta curricular ficam listados da seguinte forma:

a)     conceituar as artes com o público-alvo, que será composto por professorandas e professorandos e por outros estudantes;
b)              trabalhar as artes de modo interdisciplinar;
c)               enxergar a arte do ponto de vista estrutural e ontológico (isto é: do ponto de vista da afirmação do que seja a arte) e do ponto de vista funcional (ou seja: do ponto de vista dos efeitos que ela produz);
d)              criar possibilidades de construção de conhecimento e de uso do senso crítico, sem os quais não há cidadania;
e)               buscar uma resposta que atenda de forma quantitativa e qualitativa à demanda regional por informações pedagógicas de cunho estrutural e de cunho funcional no campo da arte-educação;
f)               desenvolver habilidades a partir de conteúdos e conteúdos a partir de habilidades.

            Tome-se a dança como exemplo de expressão artística.
            Desde as “agitadas danças tribais que precediam uma caçada” e “aumentavam o sentimento de poder da tribo” (Ernst Fischer, sem data, p. 46), elas são vistas como o primeiro contato dos seres humanos com a dança.  Nossos ancestrais usavam-na para rituais, já que

As cerimônias religiosas, com suas convenções estritas, realmente ajudavam a instalar a experiência social em cada membro da tribo e a tornar cada indivíduo parte do corpo coletivo.  O homem, aquela fraca criatura que se defrontava com uma natureza perigosa e incompreensivelmente aterradora, era muitíssimo ajudado em seu desenvolvimento [...].  (Idem, ibidem, p. 46, destaque nosso.)

            “A realidade”, diz o autor (p. 47), “virou mito, a cerimônia mágica virou encenação religiosa, a magia cedeu lugar à arte”.
            Pode-se dizer que a dança cria uma consciência em relação ao corpo com base no princípio de que, com o incentivo à dança, constrói-se um indivíduo mais consciente do próprio corpo ou mais consciente da presença deste.  Trata-se, em resumo, da produção de uma autoconsciência de corpo.  Isso permite que uma pessoa note as possibilidades de seu próprio corpo justamente por ser ela corporalmente presente.  Ainda que por razões históricas e culturais prevaleça no Brasil uma concepção segundo a qual o corpo é inferior ao espírito, conforme o sociólogo Jessé Souza, o trabalho corporal ambém reforça a integração social na medida em que

 O movimento rítmico apoia o trabalho, coordena o esforço e liga o indivíduo ao grupo, ao social.  Toda perturbação de ritmo é desagradável porque interfere no processo da vida e do trabalho; com o que encontramos o ritmo assimilado nas artes como repetição de uma constância, como proporção e simetria.  (Ernst Fischer, sem data, p. 45.)

               Além disso, “Na relação entre os corpos, resultam afecções, ou seja, é da natureza do nosso corpo afetar outros corpos e ser afetados por eles” (Maria Aranha e Maria Martins, 1986, p. 350).

Considerações finais

            A preservação excessiva do senso comum afeta a maneira de interpretar e construir a realidade, isto é: o modo de viver. Por meio da arte, há uma ruptura com certos mitos do senso comum, de modo que se garante o progresso.
            Contudo, três são os obstáculos às ideias aqui sugeridas:
1.     a divisão social do trabalho, que garante a manutenção da escravidão moderna no Brasil, país em que o grande problema não é a corrupção política, mas sim a herança da escravidão, nunca discutida e sempre preservada por elites fincanceiras tacanhas, elites que corrompem o Estado, que é mínimo só para o povo, mas máximo para as grandes empresas e para os especuladores do mercado financeiro, que causaram a falta de receita.  Esta é o que causou a recessão econômica dos últimos três ou quatro anos.  Essa divisão social do trabalho não valoriza a formação de bibliotecários;
2.     a divisão internacional do trabalho, que faz que o Brasil seja exportador de matéria-prima barata e fonte mão de obra pouco qualificada.  Isso, é claro, conta com o apoio da classe média reacionária, que, apesar de ser prejudicada pelas elites, defende-a como seu leal cão de guarda com capataze e vive matriculando os filhos em escolas particulares, de modo que ela pouco se importa com a escola pública, que cai aos pedaços;
3.     o currículo oculto, que á mais danoso do que o currículo nulo.  O currículo oculto pode muito bem invisibilizar a importância das bibliotecas públicas na formação do cidadão.  O currículo está a serviço da instrução e da capacitação de mão de obra, e não a serviço da formação cidadã.


Márcio Alessandro de Oliveira.  Imbariê, bairro sede do 3º Distrito de Duque de Caxias.  12 de maio de 2018.

Referências

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires.  “Capítulo 32 — O corpo”.  In: ______.  Filosofando: introdução à filosofia.  São Paulo: Moderna, 1986, pp. 342-51.

______.  “Capítulo 38 — Arte como forma de pensamento”.  In: ______.  São Paulo: Moderna, 1986, pp. 384-90.

FISCHER, Ernst.  A necessidade da arte.  Trad. Leandro Konder.  São Paulo: Círculo do livro, sem data.

FREIRE, Paulo.  Pedagogia do oprimido.  50. ed. rev. e atual.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

GIROUX, Henry A.; SIMON, Roger.  “Capítulo 4 — Cultura popular e pedagogia crítica: a vida cotidiana como base para o conhecimento curricular”.  In: MOREIRA, Antonio Flávio; SILVA, Tomaz Tadeu da (organizadores).  Currículo, cultura e sociedade.  Trad. Maria Aparecida Baptista.  7. ed.  São Paulo: Cortez, 2002, pp. 93-104.

LÖWY, Michael.  “Introdução: Visões sociais de mundo, ideologias e utopias no conhecimento científico-social”.  In: ______.  As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchensen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento.  Trad. Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy.  São Paulo: Busca Vida, 1987.

ROWLING, Joanne K.. Vidas muito boas: as vantagens do fracasso e a importância da imaginação. Trad. Ryta Vinagre. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso.  Rio de Janeiro: Leya, 2017.



sábado, 14 de abril de 2018

CONSIDERAÇÕES SOBRE HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL

J. K. Rowling. Harry Potter e a Pedra Filosofal, Rio de Janeiro, Rocco, 263 páginas, 2000. ISBN 85-325-1101-5. (Tradução de Lia Wyler.)

Duque de Caxias, RJ, 10 de agosto de 2015.
(Alterações feitas em Serra, ES, 11/4/2019. Últimas alterações feitas em Guarapari, ES, 13/6/2020.)

CONSIDERAÇÕES SOBRE HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL

Márcio Alessandro de Oliveira[1]

O mundo editorial se divide em antes e depois do primeiro romance da britânica J. K. Rowling (31/7/1965), Harry Potter and the Philosopher’s Stone, recusado por doze editoras antes de ser aceito pela Bloombury, que o lançou em 1997. Há quem diga que o sucesso da história, prelúdio de uma série de sete livros, é explicado com o marketing, como se o discurso literário da autora se resumisse a modismo e a dinheiro, mas essa tese não se sustenta. O que Rowling produziu foi muito mais do que um conto de fadas comercial, e isso se vê no conteúdo, repleto de temas e alegorias escolhidos por uma autora cuja origem é a classe trabalhadora, na estrutura folhetinesca de romance policial e no estilo, que, graças à prodigiosa habilidade de Lia Wyler, atenta ao contexto e à intenção da autora, foram bem preservados na tradução brasileira, Harry Potter e a Pedra Filosofal, da editora Rocco, tradução em que o leitor brasileiro encontra o mesmo efeito de sentido do original britânico.
A história começa a ser narrada com o casal Dursley e seu filho, uma família de classe média que, tendo orgulho de seu status, é arrogante, mesquinha e preconceituosa.  A figura paterna, o obeso Sr. Dursley, na manhã da terça-feira de 1º/11/1981, indo para o trabalho, nota comportamentos atípicos, como um gato lendo uma placa e pessoas vestindo trajes que as pessoas “normais” não usam; e, vendo telejornal no fim do dia ao lado da esposa, Petúnia, uma mulher pescoçuda que espia os vizinhos, ele toma ciência de fenômenos estranhos, como voos de corujas e estrelas cadentes dignas do quinto dia de novembro (em que é celebrada a Noite de Guy Fawkes). Por detestar a anormalidade, Válter Dursley (Vernon Dursley, no original) não gosta de vincular os ocorridos estranhos à irmã de Petúnia, Lílian, casada com Tiago Potter (James Potter, no original), muito menos de pensar que tudo aquilo possa afetá-lo.
Os estranhos acontecimentos daquela manhã, no entanto, têm uma explicação que afeta bastante a vida de Válter e Petúnia Dursley: Na noite de 31/10/1981 (Dia das Bruxas), no vilarejo de Godric’s Hollow, Lílian e Tiago Potter foram assassinados por Lorde Voldemort, um bruxo das trevas que tentara derrubar o Ministério da Magia da Grã-Bretanha com seus leais seguidores na Primeira Guerra Bruxa, que já durava onze anos. O que encerrou essa guerra foi o filho de Lílian e Tiago, Harry, de apenas um ano, a quem a mãe tentou proteger interpondo-se entre ele e o assassino. Após matar Lílian, Voldemort apontou a varinha para o bebê (que se tornara o principal alvo do homicida por motivos revelados apenas num dos romances posteriores da série) e lançou-lhe um feitiço mortal; este, porém, não causou a morte de Harry, que sobreviveu e na testa ficou apenas com um corte em forma de raio, sua futura cicatriz. Mas o mais intrigante é que o feitiço voltou-se contra o feiticeiro, feiticeiro que (por uma razão também revelada apenas em uma das continuações) não morreu, porém ficou sem corpo e extremamente enfraquecido; por isso, ele, que matara tantos dos mais poderosos e habilidosos bruxos do país, fugiu depois de ser derrotado por um bebê. Assim caiu Lorde Voldemort, e sua queda foi o motivo dos comportamentos atípicos e comemorações com estrelas cadentes notados até pelos trouxas (muggles, no original), humanos sem nenhuma gota de sangue mágico que ignoram a existência da comunidade mágica, comunidade respeitadora do Estatuto Internacional de Sigilo em Magia...
Entretanto, esse estatuto não impossibilita que parentes trouxas conheçam a verdade de seus familiares bruxos mais próximos, como no caso da Sra. Dursley, que na manhã de 2/11/1981, no batente do número quatro da Rua dos Alfeneiros, Little Whinging, Surrey, encontra o sobrinho e uma carta em que se revelam os terríveis acontecimentos sobre a irmã e o marido desta. De má vontade, Petúnia acolhe o garoto, que certamente seria tão “anormal” quanto os pais dele, a quem ela desprezava categoricamente. Tendo como quarto o interior de um armário embaixo da escada, ele será maltratado e oprimido pelo crime de ser bruxo sem saber a sua real natureza, biologicamente determinada, embora vá produzir magia inconscientemente. Só conhece a verdade em 31/7/1991, dia de seu 11º aniversário, quando escuta a revelação conversando com Rúbeo Hagrid, o meio-gigante que trabalha na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, a escola em que se formaram os pais de Harry e para a qual ele também irá depois de, esclarecido e acompanhado por Hagrid, de quem se torna amigo, comprar todo o material escolar no Beco Diagonal, onde descobre ser rico (seus pais lhe deixaram muito ouro guardado no banco de Gringotes), famoso e conhecido como O Menino Que Sobreviveu. É no Beco Diagonal que Harry descobre que Hogwarts é dividida em quatro casas, que valorizam diferentes características. De uma delas saiu a maioria dos bruxos das trevas britânicos.
Do Gringotes, banco de segurança máxima administrado por duendes, Hagrid retira um preciosíssimo objeto por ordem de Alvo Dumbledore, diretor da escola e único bruxo suficientemente poderoso para enfrentar e intimidar o desaparecido e semimorto Voldemort mesmo quando o bruxo das trevas era poderoso.
O Beco Diagonal é uma espécie de bairro comercial em que o herói tem o primeiro choque de realidade mágica (com exceção do primeiro encontro com o próprio Hagrid). Descobre não só que pode comprar livros, varinha e animais, como a sua coruja, que ele usará para se corresponder com os amigos, mas que também há preconceito na sociedade em que é inserido. De fato, as duas sociedades, a bruxa e a trouxa, podem ser violentas, autoritárias e preconceituosas. Para ver isso basta analisar a conversa entre Harry e Draco Malfoy, que se conhecem no supracitado Beco. Na opinião do jovem Draco, bruxos nascidos de pais trouxas não deveriam ser aceitos em Hogwarts, mesmo que tenham sangue mágico (o que, de acordo com uma declaração da autora que está fora dos livros, só é possível graças a um ascendente ou antepassado que tenha sido bruxo). A família Malfoy, conforme se vê nos outros romances da série, valoriza a pureza do sangue dos bruxos, um dos ideais por que lutaram os seguidores de Voldemort. Pode-se dizer que a família Malfoy está para o mundo bruxo assim como a família Dursley está para o mundo trouxa.
Contra a vontade dos tios, em 1º de setembro Harry vai para a escola tomando o Expresso de Hogwarts, uma locomotiva que se toma depois que se atravessa a barreira da Plataforma 9 ½ (9 ¾, no original), “situada” entre as plataformas 9 e 10 de King’s Cross, a estação de Londres, em que Rowling tivera a ideia de escrever a história de Harry.
A escola é um castelo, e nele Harry recebe mais um choque de realidade mágica. É em Hogwarts que ele sela seu contato com a fauna e a flora que dizem respeito aos bruxos e às bruxas, animais bípedes racionais dotados de magia que podem ser tão capitalistas e cruéis quanto os humanos não mágicos, embora esses aspectos sejam melhor explorados nas continuações. É na escola que descobrirá os centauros e os unicórnios da Floresta Proibida, e é nela também que aprenderá as primeiras lições de Herbologia.
Os determinismos biológico e social que forçam o herói a seguir seu destino não anulam completamente seu poder de opção. Pede, por exemplo, que não seja incluído na Sonserina (Slytherin), casa a que pertenceu o assassino dos pais; por isso vai para a Grifinória (Gryffindor), em que se valoriza a coragem. Além disso, pode desenvolver seu talento nas diferentes disciplinas: Feitiços, Transfiguração, Herbologia, Poções, Defesa Contra as Artes das Trevas e História da Magia (as aulas desta última disciplina são ministradas por um fantasma). Por outro lado, Harry foi meio que forçado a aceitar ir para Hogwarts (embora não seja obrigatória a escolaridade; os pais têm a opção de não matricular os filhos, que, aliás, podem ser enviados a escolas de outros países). Preferiu aceitar a bruxidade a permanecer na condição degradante a que seus tios o submetiam. Sua vida, porém, não é fácil: Tem de suportar a aversão não disfarçada do professor Snape, que dá aulas de Poções, e de Draco Malfoy.
            Além do Quadribol (Quiddtch) (o esporte que os bruxos praticam montados em vassouras), dos trasgos e das aulas, outros assuntos ocupam a mente do jovem bruxo, como o Espelho de Ojesed, que revela o mais profundo desejo de quem nele se vê, e outros mistérios de Hogwarts, cujo terceiro andar fica proibido e ocupado, em parte, por um cão de três cabeças vindo da Grécia. Somando esse último fato à tentativa de roubo no Gringotes feita no mesmo dia em que Hadrid e ele visitaram o banco (31/7/1991), o protagonista começa a suspeitar que a Pedra Filosofal, fabricada por Dumbledore e Nicolau Flamel, tenha sido transferida do banco para a escola, um lugar mais seguro do que o próprio banco, considerado impenetrável. Mais: Harry acha que Snape, tempos atrás dado às artes das trevas, está tentando obtê-la para que seu antigo senhor recupere as forças...
A cada novo capítulo as suspeitas de Harry são alimentadas tanto quanto as do leitor. Como um detetive, o herói formula uma hipótese, faz dela uma conclusão e com base nela tenta avisar Dumbledore do que está acontecendo, mas o diretor se ausentara. Temendo que Voldemort recupere as forças com a Pedra Filosofal, Harry decide roubá-la primeiro, e recebe a ajuda de seus melhores amigos, Rony e Hermione.
Harry confronta Voldemort, que partilha o corpo de outro bruxo. O objetivo do vilão é obter a Pedra para se livrar da condição fantasmagórica a que se condenara. Para isso, tentará usar o próprio Harry, que, para a sua surpresa, descobrirá que sua mãe não precisava ter se sacrificado por ele. O garoto, no entanto, não terá tempo para fazer conjecturas: depois de ser forçado a encarar-se no Espelho de Ojesed, este lhe revela o desejo de frustrar Voldemort. A Pedra, então, surge no seu bolso. Voldemort, depois de falar da morte de Tiago e do supostamente desnecessário sacrifício de Lílian, tenta tomar a gema, mas, quando Harry é tocado pelo bruxo cujo corpo Voldemort partilha, o garoto causa um forte e doloroso dano. Percebendo o poder que tinha, Harry toca seus dois antagonistas: um deles morre; o outro, Voldemort, escapa e se esconde mais uma vez.
Na ala hospitalar, o garoto conversa com Dumbledore. O diretor afirma que o menino derrotou Voldemort mais uma vez porque sua mãe lhe conferira uma poderosa proteção. Também afirma que só quem desejasse obter a Pedra sem querer usá-la em benefício próprio conseguiria tirá-la do Espelho.
Recuperado, Harry volta à casa dos tios sabendo que a Pedra Filosofal foi destruída para não cair em mãos erradas. Com eles terá de conviver até ao início do segundo ano letivo.
A estrutura folhetinesca, que se dá com a divisão em capítulos, e os registros feitos por um narrador observador onisciente renderam mais de duzentas páginas, motivo por que o livro foi recusado tantas vezes. Afinal, crianças não liam tanto. Apesar disso, é um livro infantil: é destinado a crianças de nove a doze anos. Naturalmente, isso não impossibilitou que caísse no gosto de adolescentes e adultos, principalmente no de pais, que foram os primeiros divulgadores.
Partindo da premissa de que o livro se destinava a crianças, Lia Wyler adotou a práxis mundial de tradução de livros de literatura infantil. De acordo com a teoria extraída da práxis, devem ser traduzidos os nomes de batismo. Com a aprovação da própria autora, recriou neologismos, como Slytherin e Quidditch. É claro que, pelo seu histórico, Lia verteria o prenome de todo personagem mesmo se não se tratasse de livro infantil, pois, embora muitos ignorantes sustentem o mito de que nome próprio não se traduz nunca, academicamente pertence a uma corrente de tradução que faz o que se vê na Bíblia: a tradução de nomes próprios. Em virtude dos prazos curtos e da interferência de outros, uma falha aqui e outra li podem ser identificadas nas versões brasileiras da série, mas nada que comprometa a obra. Lia Wyler, merecidamente, ganhou o Prêmio Monteiro Lobato Tradução-Criança, assim como Rowling recebera um prêmio do Scottish Arts Council, o British Book Awards Children’s Book of the Year e o Smarties Prize.
Pedra Filosofal e suas continuações não agradaram a todos. Basicamente, dividem-se os seus detratores em dois grupos: o dos que o acusam de bruxaria, e o dos que o acusam de não passar de fancaria literária. Portanto, há os que o criticam tão só por causa do conteúdo, e há os que o criticam por causa do conteúdo e da forma; mas tanto por uma coisa como pela outra se salva o romance.
            Para entender o absurdo da suposta bruxaria, é preciso considerar as palavras de Lia Wyler, que, em entrevista [2]concedida em 28/11/2003 ao site Omelete, afirmou:

Dizer que a série de Harry Potter tem qualquer relação com a bruxaria é das tolices mais rematadas que já se disse desde o seu lançamento. A acusação tem partido de seitas televisivas em países de língua inglesa e seus seguidores no Brasil e não se sustenta; tente você fazer qualquer dos feitiços que Harry faz e verá que vai quebrar a cara. Além disso, no Brasil sempre houve uma tradição de respeito a todas as religiões e essa intolerância nascente é extremamente preocupante.

De fato, nenhum leitor de Harry Potter tem sangue mágico: não foi biologicamente determinado para ser bruxo. E, por mais que queiram, os seres humanos reais não podem encontrar um fabricante de varinhas, nem unicórnios, nem dragões, nem uma fênix, animais dos quais se tira um pelo, fibra de coração e pena (respectivamente), materiais usados nas varinhas dos bruxos britânicos.
            Inegavelmente, houve algum pano para manga: a palavra trouxa deu margem a que se acusasse a série, mas, dependendo do contexto, não é pejorativa no imaginário da comunidade de que fazem parte Harry e seus amigos, que não se sentem ofendidos por serem chamados de bruxos e não experimentam nenhum sentimento de desprezo quando se referem à comunidade não mágica usando a palavra trouxas. O termo está cristalizado no inconsciente dos bruxos, e é empregado apenas para designar quem não tem magia ou não crê na existência dela. Só dão carga pejorativa à palavra os bruxos preconceituosos, como Draco Malfoy, que a ela dá expressividade à sua maneira, o que comprova o que postula Bakhtin, para quem as palavras estão soltas no léxico de tal modo, que cabe ao falante dar expressividade a elas. Assim, mesmo que o significado de um palavrão seja ofensivo, o sentido pode não ser: o termo, com a intenção, condicionada pelo contexto (situação) de um discurso falado típico de um brasileiro, pode ser forma amistosa de um amigo se dirigir a outro. A própria Hermione sabe que seus pais são trouxas, todavia, ela não usa o signo (a palavra) para ofender ou menosprezar os pais pelas costas quando a eles se refere; chega a verbalizar que é nascida trouxa (muggleborn). Alguns bruxos são alvo de preconceito por terem ligação sanguínea ou afetiva com trouxas, mas nem por isso são chamados de trouxas. Em Harry Potter e a Câmara Secreta, segundo livro da série, descobre-se que bruxos nascidos em famílias trouxas são chamados de sangues-ruins, termo usado apenas por bruxos preconceituosos. Estes não se dão com os bruxos mais tolerantes, entre os quais há aqueles que sentem fascínio pela sociedade não-mágica.
Lia Wyler, na referida entrevista, esclarece:

A controvérsia sobre a palavra muggle é artificialíssima. A autora declarou em juízo, na Inglaterra, que a palavra e seus n significados foi por ela usada no sentido de fool. Fiz uma análise de todas as palavras que significavam fool em português e me fixei em trouxa por ser mais forte que tolo ou bobo e mais branda que otário, e, ainda, por lembrar a sonoridade de bruxo. Trouxa é o indivíduo incapaz de devanear, de sonhar, de fantasiar de cara limpa.  (Os grifos são desta resenha.)

            Sendo tão fácil comparar a história de Harry a de Cristo, que também foi perseguido por um tirano capaz de causar a morte de crianças, é de estarrecer que o prefiram tachar como porta de entrada para o mundo da bruxaria a entender a sua história. A mãe do herói se sacrifica pelo filho, a quem caberá o dever moral de lutar em nome da comunidade, e não apenas de sua felicidade ou bem-estar pessoal, o que lhe proporcionará o derramamento do próprio sangue.
            Há muitos temas “adultos”, como a morte, que, por motivos biográficos, permeia a ficção de Rowling, cuja mãe faleceu depois de sofrer os efeitos da esclerose múltipla. Quando não o acusam de bruxaria, alegam que Harry mostra às crianças coisas horrendas, que podem arrancar a preciosa flor de sua inocência, das quais a morte, segundo os que o condenam, pode ser a pior: “A morte, não o sexo, é agora o tabu que violamos — a ‘pornografia da morte’ causa-nos excitação” (José Luíz de Sousa Maranhão, O que é morte, pág. 10, citado por Maria L. de A. Aranha e Maria H. P. Martins, em Filosofando: Introdução à Filosofia, pág. 370.) “Escondemos a morte das crianças: esse não é mais um tema de conversa entre pais e filhos, elas não mais participam de velórios e funerais, evitamos que assistam a filmes ou ouçam histórias que trazem a ideia de morte à tona” (Rosely Sayão, Bruxas, monstros e morte, no blog da autora[3]). Mais um motivo para respeitar Harry e sua autora: ela abordou um tema tabu e abalou a visão do senso comum, efeitos típicos da boa literatura.
            Com relação também à forma (e não apenas ao conteúdo), Harry Potter é visto como subliteratura ou fancaria literária por fazer muito sucesso comercial, como se fosse um produto de segunda categoria cujo único mérito é engrandecer o capital. Nada mais falso. Quem isso diz não leu os livros, repletos de mistérios, intrigas, alusões aos preconceitos racial e social (trouxas e bruxos, Dursleys e Malfoys) e temas políticos do Ministério da Magia somados aos seres fantásticos, lugares incríveis e personagens verossimilhantes, que apreciam e depreciam letras de canções, livros didáticos, avisos, panfletos, notícias, reportagens, cartas sociais e diálogos entre inferiores e superiores hierárquicos. Com tanta riqueza de gêneros textuais e polifonia, as más línguas poderiam ser menos preguiçosas e ignorantes; assim, leriam e poderiam emitir conceitos a respeito da obra, vista por Harold Bloom [4] e Ruth Rocha[5] como mais um modismo midiático, e não como literatura. Curiosamente, os profissionais de Letras e a Ecdótica fazem o que se faz desde o Realismo, no tempo de Flaubert[6]: encarar a prosa de ficção como um produto (e a palavra aqui não é usada por acaso; uma pequena análise de discurso de linha francesa confirma o que subjaz a ela), e quando uma autora alcança o reconhecimento e muito dinheiro com seu trabalho, e não propriamente com a inspiração, o produto não é bem visto por todos os acadêmicos, nem pelos acadêmicos brasileiros, que se curvam às imposições do Banco Mundial. Como é isso?  Seriam C. S. Lewis, Lewis Carroll (pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson), Monteiro Lobato e Pedro Bandeira produtores de subliteratura infantil ou mesmo de fancaria literária infantil? (o que seria sinalizado com o sucesso comercial). Ou seriam modismos de suas respectivas épocas? E o que dizer dos contos infantis reunidos na Europa durante o Romantismo, vendidos até hoje? Se o sucesso comercial e o “modismo” são indícios ou provas de má literatura, infantil ou não, então José Saramago produziu a pior espécie de texto literário.
Há quem levante a hipótese de que redatores-fantasmas (ghost-writers) tenham produzido os livros de Harry Potter, como supostamente acontece com outros best sellers. Isso, porém, é mentira: A Crítica Textual pode confirmar que Rowling trabalhou de 1990 a 2007 para ser lida, como todo indivíduo escritor, e não para ganhar dinheiro. Chegou a reescrever o primeiro livro dez vezes antes da publicação, e já foi até exposto um rascunho. Além disso, o redator-fantasma é um profissional que trabalha com textos não literários, e não é reconhecido nunca pelo público leitor. Quando se trata de prosa de ficção em forma de conto ou romance, o autor assume o trabalho, mesmo que seja apenas um adaptador, como no caso de Alan Dean Foster, que fez uma adaptação literária em prosa com base no roteiro de Star Wars, em 1976. Não se redige um romance (redigir nem sempre é sinônimo de escrever): ele é escrito com arte, e com efeito: o redator-fantasma só produz texto não-literário. Essa é uma diferença que se baseia num conhecimento básico.
Não há dúvidas de que Rowling marcou para sempre a literatura e o mundo editorial. Marcou ainda mais o enorme público, que ela cativou. E aí reside a mais poderosa magia de Harry Potter: ele fez uma geração gostar de ler. No Brasil, país de milhões de analfabetos, isso é motivo para estrelas cadentes.

      

      

      




[1] Licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor efetivo de uma rede pública de ensino.

[2] Entrevista disponível em: http://omelete.uol.com.br/games/entrevista/omelete-entrevista-lia-wyler-a-tradutora-de-harry-potter/#.UiR4D9I3uHc.

[6] Consultar: https://www.youtube.com/watch?v=NC3_e-Acvpk.