“O
pensamento utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações
sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo,
ou mesmo explosivo. O sentido estreito e pejorativo do termo (utopia: sonho
imaginário irrealizável) nos parece inoperante, uma vez que apenas o futuro
permite que se saiba qual aspiração era ou não ‘irrealizável’. ”
(Michael
Löwy, 1987, p. 12.)
Cultura
é modo de viver, e é nela que, como seres históricos, as pessoas se educam
mediatizadas pelo mundo, como diz Paulo Freire (Pedagogia do Oprimido, 2011, pp. 95-100), ao que se acrescenta que
são também mediatizadas pela arte, que é antes de tudo uma ação transformadora,
calcada na certeza do inacabemento do ser humano. Sendo ele um ser inconcluso e histórico, tem
consciência de seu inacabamento, e por isso mesmo tem a vocação para ser mais (idem, ibidem, pp.
101-7). Não há determinismo: há
condionamento, e a arte é um fator condicionante por excelência de um certo modelo
de ser humano que a educação escolar tenta (pelo menos em tese) construir na
interação entre seres humanos, ou seja: na vivência, ou seja ainda: na
convivência. “Desta maneira”, escreve o educador recifense, “a educação se
refaz constantemente na práxis. Para ser tem que estar sendo” (idem, ibidem, p. 102). É por isso que se faz necessário um currículo
escolar pautado por uma “concepção problematizadora, que, não aceitando um ‘presente-comportado’,
não aceita igualmente um futuro pré-datado, enraizando-se no presente dinâmico,
[e] se faz revolucionária” (idem,
ibidem, p. 102). Em verdade, a ação
cultural aqui proposta seria uma resposta à espoliação do 3º Distrito de Duque
de Caxias, região na qual fica o local de nascimento daquele que dá nome ao
município, mas a qual, quando não é invisibilizada, é estigmatizada com os
casos de criminalidade urbana, como se eles fossem a única forma de
violência. Acontece que a criminalidade
urbana e a pobreza são um fruto de uma violência muito maior, que não é vista
como tal, e que é reforçada diariamente: o status quo, que impossibilita que
áreas periféricas, onde moram os trabalhadores e as trabalhadoras, contem com
bibliotecas, teatros e cinemas. Em
outras palavras: este ensaio é uma resposta em forma de “Denúnica de uma
realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens possam ser
mais”, ao mesmo tempo que a utopia é “a unidade inquebrantável entre a denúncia
e o anúncio” (Paulo Freire, 2011, p. 102).
É
preciso que em Imbariê haja uma revolução curricular e didática que consista em
instrumentalzar pedagogicamente alunos do curso de formação de professores (curso
Normal) com informações de conteúdos artísticos; assim, é possível estabelecer uma relação
entre as diferentes formas de arte e o ensino-aprendizagem. Essa proposta, é claro, pode ser levada ao
curso de formação geral e ao Ensino Fundamental também. Em última análise, é
necessário proporcionar pedagogicamente àquelas e àqueles que são as futuras
professoras e os futuros professores do primeiro segmento do Ensino Fundamental
o acesso a atividades artísticas e culturais.
É
nesse segmento que mais se desenvolvem as habilidades básicas (e não
propriamente conteúdos). Uma vez que as
habilidades intelecutais (ler, escrever e contar) dependem do corpo tanto
quanto as habilidades motoras, a educação artística pode proporcionar um
condicionamento complementar a tais habilidades, além, é claro, de proporcionar
vez e voz às pessoas matriculadas no curso Normal, em cujo currículo, sujeito
que está a imposições mercadológicas que não dão valor às artes, nem sempre encontram
margem para que possam se expressar nem treinar o que será uma de suas
ferramentas de trabalho: a voz e o restante do corpo.
A
falta de vez e a ausência de voz, é claro, vão muito além da instrumentalização
da arte como ferramenta pedagógica ou complemento curricular de formação de
cidadãos e futuros professores e professoras.
Com efeito: os habitantes de Imbariê e do restante de Duque de Caxias
não veem na própria identidade a autonomia.
Dentre os que podem fazer uma intervenção, poucos seguem o raciocínio
abaixo, lido em voz alta por uma famosa escritora britânica para os formandos
de Harvard de 2008:
Se
vocês escolherem usar seu status e sua influência para elevar a voz por aqueles
que não têm voz; se escolherem se identificar não apenas com os poderosos, mas
também com aqueles que não têm poder; se vocês conservarem a capacidade de se
imaginar na vida dos que não possuem as mesmas vantagens que vocês, então não
serão apenas suas famílias orgulhosas que irão comemorar sua existência, e sim
milhares e milhões de pessoas cuja realidade vocês ajudaram a mudar para melhor.
(J. K. Rowling, 2017, p. 67.)
Contudo,
seria ingenuidade esperar que de cima para baixo viesse um projeto como este,
que oferecerá a tais estudantes acesso a informações de conteúdos pedagógicos
sobre a Arte e suas implicações no ensino-aprendizagem.
Pode-se
afirmar que a razão de ser deste ensaio é a carência de espaços culturais. Sem eles, as professoras e os professores não
poderão proporcionar aos alunos o que eles mesmos (professoras e professores) não
têm: uma vivência artística produzida num curso que é voltado inteiramente para
a Arte, inviabilizada em outros espaços pelo simples fato de estes praticamente
não existirem ou por existirem em quantidades pífias. Há, sim, arte em muitos lugares, e não apenas
em museus e teatros de renome. Uma vez
que “A educação em arte só pode propor um caminho: o da convivência com as
obras de arte” (Maria Aranha e Maria Martins, 1986, p. 386), é necessário
perceber aquelas “que estão nas ruas: certos edifícios, casas, jardins,
túmulos. Passamos por muitas delas, sem
vê-las. Por isso, é preciso uma
determinada intenção de procurá-las, de percebê-las” (idem, ibidem, p. 387).
O
que mais inviabiliza a concretização das ideias aqui apresentadas é a falta de
bibliotecas públicas. A Bilioteca Pública
de Imbariê foi
destruída durante uma chuva, que danificou boa parte do acervo. Uma biblioteca é tão indispensável quanto um
hospital ou uma escola, mas há anos ela é tratada como se não fosse imprescindível.
O
principal objetivo deste projeto é o de evidenciar e reafirmar a arte não
apenas como uma ferramenta de integração e fortalecimento do laço social, mas
também como caminho para a emancipação e empoderamento de normalistas e outros
estudantes da região, já que fazem parte das classes educacionais menos favorecidas
do distrito, da comunidade.
A
arte é capaz de produzir conhecimento a serviço daquelas e daqueles que a
produzem ou com ela interagem, como se vê nos estratos mais privilegiados da
população. Thomas Mann, autor do romance
Doutor Fausto, na narrativa apresenta
o personagem Adrian Leverkünhn, um compositor que acredita que a arte precisa
se libertar
De ficar
só com uma elite a que damos o nome de “público”, pois esta elite em breve não
mais existirá e, de fato, atualmente não mais existe. E, quando ela deixar de existir de todo, a
arte ficará completamente sozinha, mortalmente só, a menos que encontre um
caminho para o “povo”, ou, para dizê-lo em termos menos românticos, a menos que
encontre um caminho para os homens. (Thomas
Mann, citado por Ernst Fischer em A
necessidade da arte, sem data, p. 236.)
No
dizer de Fischer (quando cita Mann), na realização desse vislumbre, a arte
conseguiria “mais uma vez se ver como serva da comunidade, uma comunidade
que não tivesse uma cultura, mas
talvez fosse uma cultura..., uma arte
intimamente vinculada ao gênero humano” (idem, ibidem, p. 236, destaques deste
ensaio).
A
principal motivação deste projeto é a vontade de ajudar a suprir a carência de
oportunidades de acesso a conteúdos do campo da arte na educação de jovens do curso
Normal e de outros segmentos e níveis de ensino escolar. O intuito é o de instrumentalizá-los para
futuras ações na sala de aula.
Os
objetivos desta proposta curricular ficam listados da seguinte forma:
a) conceituar
as artes com o público-alvo, que será composto por professorandas e professorandos e por
outros estudantes;
b)
trabalhar as artes de
modo interdisciplinar;
c)
enxergar a arte do
ponto de vista estrutural e ontológico (isto é: do ponto de vista da afirmação
do que seja a arte) e do ponto de vista funcional (ou seja: do ponto de vista
dos efeitos que ela produz);
d)
criar possibilidades de
construção de conhecimento e de uso do senso crítico, sem os quais não há
cidadania;
e)
buscar uma resposta que
atenda de forma quantitativa e qualitativa à demanda regional por informações pedagógicas
de cunho estrutural e de cunho funcional no campo da arte-educação;
f)
desenvolver habilidades
a partir de conteúdos e conteúdos a partir de habilidades.
Tome-se
a dança como exemplo de expressão artística.
Desde
as “agitadas danças tribais que
precediam uma caçada” e “aumentavam o sentimento de poder da tribo” (Ernst
Fischer, sem data, p. 46), elas são vistas como o primeiro contato dos seres
humanos com a dança. Nossos ancestrais
usavam-na para rituais, já que
As
cerimônias religiosas, com suas convenções estritas, realmente ajudavam a
instalar a experiência social em cada membro da tribo e a tornar cada indivíduo
parte do corpo coletivo. O homem, aquela fraca criatura que se
defrontava com uma natureza perigosa e incompreensivelmente aterradora, era
muitíssimo ajudado em seu desenvolvimento [...]. (Idem, ibidem, p. 46, destaque nosso.)
“A
realidade”, diz o autor (p. 47), “virou mito, a cerimônia mágica virou
encenação religiosa, a magia cedeu lugar à arte”.
Pode-se
dizer que a dança cria uma consciência em relação ao corpo com base no
princípio de que, com o incentivo à dança, constrói-se um indivíduo mais consciente do próprio corpo ou mais consciente da presença deste. Trata-se, em resumo, da produção de uma
autoconsciência de corpo. Isso permite
que uma pessoa note as possibilidades de seu próprio corpo justamente por ser
ela corporalmente presente. Ainda que
por razões históricas e culturais prevaleça no Brasil uma concepção segundo a
qual o corpo é inferior ao espírito, conforme o sociólogo Jessé Souza, o
trabalho corporal ambém reforça a integração social na medida em que
O movimento rítmico apoia o trabalho,
coordena o esforço e liga o indivíduo ao grupo, ao social. Toda perturbação de ritmo é desagradável
porque interfere no processo da vida e do trabalho; com o que encontramos o
ritmo assimilado nas artes como repetição de uma constância, como proporção e
simetria. (Ernst Fischer, sem data, p.
45.)
Além
disso, “Na relação entre os corpos, resultam afecções, ou seja, é da natureza
do nosso corpo afetar outros corpos e ser afetados por eles” (Maria Aranha e
Maria Martins, 1986, p. 350).
Considerações
finais
A
preservação excessiva do senso comum afeta a maneira de interpretar e construir
a realidade, isto é: o modo de viver. Por meio da arte, há uma ruptura com
certos mitos do senso comum, de modo que se garante o progresso.
Contudo,
três são os obstáculos às ideias aqui sugeridas:
1. a divisão social do
trabalho, que garante a manutenção da escravidão
moderna no Brasil, país em que o grande problema não é a corrupção política,
mas sim a herança da escravidão, nunca discutida e sempre preservada por elites
fincanceiras tacanhas, elites que corrompem o Estado, que é mínimo só para o
povo, mas máximo para as grandes empresas e para os especuladores do mercado
financeiro, que causaram a falta de receita.
Esta é o que causou a recessão econômica dos últimos três ou quatro anos. Essa divisão social do trabalho não valoriza
a formação de bibliotecários;
2. a divisão internacional
do trabalho, que faz que o Brasil seja exportador
de matéria-prima barata e fonte mão de obra pouco qualificada. Isso, é claro, conta com o apoio da classe média
reacionária, que, apesar de ser prejudicada pelas elites, defende-a como seu
leal cão de guarda com capataze e vive matriculando os filhos em escolas particulares, de modo que ela pouco se importa com a escola pública, que cai aos pedaços;
3. o currículo oculto,
que á mais danoso do que o currículo nulo.
O currículo oculto pode muito bem invisibilizar a importância das
bibliotecas públicas na formação do cidadão.
O currículo está a serviço da instrução e da capacitação de mão de obra,
e não a serviço da formação cidadã.
Márcio Alessandro de Oliveira. Imbariê, bairro sede do 3º Distrito de Duque de Caxias. 12 de maio de 2018.
Referências
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MARTINS, Maria Helena Pires. “Capítulo
32 — O corpo”. In: ______. Filosofando:
introdução à filosofia. São Paulo:
Moderna, 1986, pp. 342-51.
______. “Capítulo 38 — Arte como forma de
pensamento”. In: ______. São Paulo: Moderna, 1986, pp. 384-90.
FISCHER, Ernst. A
necessidade da arte. Trad. Leandro
Konder. São Paulo: Círculo do livro, sem
data.
FREIRE, Paulo. Pedagogia
do oprimido. 50. ed. rev. e
atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2011.
GIROUX, Henry A.; SIMON,
Roger. “Capítulo 4 — Cultura popular e
pedagogia crítica: a vida cotidiana como base para o conhecimento
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Flávio; SILVA, Tomaz Tadeu da (organizadores).
Currículo, cultura e sociedade. Trad. Maria Aparecida Baptista. 7. ed.
São Paulo: Cortez, 2002, pp. 93-104.
LÖWY, Michael. “Introdução: Visões sociais de mundo,
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As aventuras de Karl Marx contra o
Barão de Münchensen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. Trad. Juarez Guimarães e Suzanne Felicie
Léwy. São Paulo: Busca Vida, 1987.
ROWLING, Joanne K.. Vidas muito boas: as vantagens do
fracasso e a importância da imaginação. Trad. Ryta Vinagre. 1. ed. Rio de
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SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Rio de
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