Tive a honra de assistir ao slam poético organizado como prelúdio do
FAIM (Festival de Artes de Imbariê), que será realizado em novembro de 2018. Boa
música, boas companhias e boa comida no Restaurante Sinta Sabor, na Rua Goiandira,
antecederam o slam, em que cada um
faz a apresentação em três minutos de um poema seu de qualquer gênero. Sem
acompanhamento musical e sem adereços visuais, cada poeta e cada poetisa leram
em voz alta uma poesia própria e um júri avaliou os textos com notas que
variavam de oito a dez.
Uma
vez que sou estudante de Literatura, não pude deixar de analisar o que escutei.
Não pude, é claro, ler os poemas, e ainda não posso, por isso eu consigo apenas
registrar minhas impressões e opiniões com base em lembranças.
Parece
que o slam é um tipo de sarau, e não
um gênero poético. Se é verdade, então o termo slam poético é redundante, pois, nessa perspectiva, todo slam seria poético. Nele percebi que
havia variedades de temas, apesar de ter predominado a poesia que fala de
problemas sociais. A poesia periférica é um gênero, como a poesia
marginal? (esta foi praticada por
indivíduos de classe média, ao passo que aquela não). Não tenho certeza, mas
parece que é.
Que
é gênero literário? Que é literatura? Segundo Terry Eagleton, literatura é
qualquer escrita imaginativa altamente valorizada. Por isso não podemos deixar
que apenas um grupo que se considera elite detenha o monopólio do ato de
valorizar textos artísticos, como as prosas de ficção (contos, romances e
novelas) e os textos em versos (poemas e canções). Daí a afirmativa que diz que
a poesia não precisa de legitimação acadêmica para ser reconhecida e
valorizada. Deus me livre de dizer o contrário! Em verdade, é a academia que
precisa de objetos de estudo. Primeiro a Terra gira, como bem me disse um
professor, depois alguém diz que ela gira. É a ciência que precisa de um objeto
de análise, e não o contrário. E ninguém precisa de análises científicas para
apreciar e descrever a Terra. O mesmo vale para a literatura, de modo que os
sentidos produzidos quando interagimos com ela não são unívocos, isto é: não
são o mesmo: variam de pessoa para pessoa. Numa era em que se afirmam os
Estudos Culturais, capazes que são de englobar a Teoria e a Crítica Literárias,
as quais são apenas mais uma forma entre tantas de apreciar a literatura, é
preciso estabelecer os limites que separam a teoria da crítica. Estas, é claro,
não podem ser tirânicas. Ocorre que, embora sejam formas de conhecimento de
especialistas, elas precisam ser compartilhadas em diversas esferas sociais
tanto quanto certos conhecimentos da medicina. Afinal, que seria das diferentes
humanidades neste mundo moderno se o conhecimento dos germes tivesse ficado
restrito a apenas alguns médicos e cientistas?
Eu
disse que parece que a poesia periférica é um gênero. Pois bem: falar em gênero
é falar em teoria (ou em poética, para usar um termo mais antigo do que a
teoria). A teoria é uma explicação que reúne as regras de um gênero a partir da
observação de obras particulares. O gênero, como diz o nome, é a generalização,
é o geral, que nasce a partir da identificação das semelhanças que obras
específicas mantêm entrem si, até mesmo por causa da intertextualidade. Quando
as obras particulares são examinadas separadamente e se descobre que, apesar
das diferenças, elas empregam basicamente a mesma fórmula, postula-se que elas pertencem
a um gênero. Sendo assim, tudo quanto se diz de um gênero é teoria, enquanto
tudo que se diz de uma obra particular é crítica (crítica não é necessariamente
falar mal). Do particular vai-se ao geral (esse é o trabalho da teoria, da
poética), e do geral vai-se ao particular (esse é o trabalho da crítica). Eu,
por exemplo, sou humano, então podemos, com base numa generalização acertada,
dizer que preciso beber água, mas o modo particular como faço isso pode destoar
do modo como fazem outras pessoas.
Por
que fazer crítica? Porque é preciso que se descubra o que há de diferente em
obras particulares, pois, dependendo das mudanças praticadas pelos autores, um
gênero sofre mutação. Ocorre que, às vezes, uma obra destoa do gênero em que é
enquadrada. Um exemplo é o romance O
Castelo de Otranto (1764), de Horace Wapole (1717-1797). Continua
pertencendo ao gênero romance, mas é um romance gótico. É marco fundador do
romance gótico: inaugurou esse gênero de romance, e isso se comprova com base
no fato de que foi imitado. A descoberta do que ele tinha de diferente é
trabalho que a crítica faz. Outro exemplo é o romance policial. Desde o século
XIX, toda narrativa detetivesca emprega a seguinte fórmula: um crime é
identificado, mas suas causas são desconhecidas. Um detetive, cuja personalidade
é formada por características muito suas, como uma mania ou um passa-tempo,
reconstitui os passos do criminoso pelo uso da razão. No desfecho, descobre-se
que a hipótese mais improvável é a verdadeira. Não há o elemento sobrenatural
nem magia. Contudo, há uma obra particular que emprega essa fórmula, mas insere
a magia: a série romanesca Harry Potter
(1997-2007), de J. K. Rowling (1965). Outra regra (isto é: outra teoria
postulada a partir de evidências, que, por definição, são empíricas) é a de que
a narrativa policial se passa na pólis, ou seja: na cidade. Se admitirmos que
isso é verdade, Pântano de Sangue (1987),
aventura escrita por Pedro Bandeira (1942), destoa dessa regra, pois a maior
parte da investigação criminal é realizada no Pantanal, no Mato Grosso do Sul,
um ambiente mais natural.
(Lidar
com gêneros literários é um pouco difícil. Já se fala em não-romance. É que o
romance é um gênero originalmente burguês, e os valores, que mais são
desvalores, da classe burguesa estão em crise, e por isso mesmo já se fala em
crise dos gêneros. Contudo, ainda acho válido o uso da noção de gênero literário
como ponto de referência. Afinal, todos os seres humanos usam taxonomias, isto
é: todos usam classificações. Outra coisa difícil é a própria crítica. Todos e
todas têm o direito de ventilar opiniões sobre textos reconhecidos como
literários. Acontece que, se a crítica científica quer ser tão fundamental para
a sociedade quanto a medicina é para os não médicos, a crítica especializada
precisa ser melhor divulgada sem deixar de ser fundamentada e mais cirúrgica do
que a crítica impressionista dos jornais, ainda que ambos os tipos de crítica —
a acadêmica e a não-acadêmica — possam coexistir.)
Sim,
mas eu falava da poesia periférica. Como posso avaliar textos declamados numa
noite de inverno se não conheço as regras do gênero a que pertencem? Falta
leitura da minha parte, e justamente por isso podem ser muito falhas as
impressões que compartilho a partir de agora.
A
primeira pessoa a declamar foi uma poetisa. O eu lírico se dirigia a alguém
distante e estava decidido a não olhar para trás. A segunda das duas poetisas
que se apresentaram também usou lindas imagens: falou da lua e do aumento que
sofreria sua beleza se ela tivesse flores, que deixariam a noite menos atroz. Com
o perdão do sexismo: parece que os sentimentos mais suaves foram externados
pelas poetisas, ao passo que os mais violentos foram retratados pelos poetas. É
que elas, a menos que eu esteja muito enganado, não abordaram problemas
sociais, enquanto eles sim, o que talvez sugira que eles foram mais fiéis a um
gênero de poesia de contestação social (a poesia periférica). Não que isso seja
tudo: não se reduz o poema ao seu teor. Todos e todas exploraram o ritmo, a rima
e outros efeitos sonoros. Em outras palavras: tentaram usar estilo:
preocuparam-se não apenas com o que diriam, mas também com o modo como diriam. Um
dos poetas usou as palavras topo, queda e crack para dizer que espera a queda de uma forma específica de
injustiça da qual não me lembro agora enquanto ele fica no topo do morro. Ele
fica no topo (e repete a palavra topo:
“topo, topo, topo, topo”) (no topo do morro, onde se usa crack) ao mesmo tempo
que espera a queda (“queda, queda, queda, queda”). Que vigor! As repetições
formam um paralelismo a partir de opostos: o alto (o topo) e o baixo em
potencial da queda. Teria o eu poético dito que ele está num nível ético mais
elevado do que o de quem pratica a injustiça, mesmo que esteja economicamente
num nível mais baixo (o de quem mora no morro)? (O curioso é que topo tem o mesmo radical de utopia.) Acredito que a expressividade
seja reforçada pelo /p/, um som plosivo, e pelo som “crepitante” do encontro
consonantal entre /c/ e /r/, presente na palavra crack.
Acho
que nunca se sabe que efeitos podem ser causados pela interrupção do
paralelismo. Quando alguém escreve “Comprei três tipos de fruta: maçã e uva”,
esse alguém cria uma expectativa e rompe com ela: o receptor espera três tipos,
mas só há referência a dois. Isso pode gerar o estranhamento, que é o que
acontece quando o assunto do poema é apresentado como se estivesse sendo visto
pela primeira vez. No caso do slam,
houve uso de palavrões que, em alguns casos, me deixaram intrigado. Eram usados
como forma de depreciação da preocupação formal, ou seja: o poeta xinga por não
se importar com a rima ou com algum aspecto formal do texto. Mas em alguns
casos eu tive a impressão de que essa proposta não foi muito bem aplicada, já
que não era feita em nome da expressividade: parecia que faziam mais por fazer.
O uso do palavrão pode ser uma lei do gênero. A questão é saber como essa regra
pode ser aplicada, como pode o poeta tirar proveito dela em nome da
expressividade.
Acredito
que, como o que já foi dito no FAIM de 2017 pelo seu organizador, a poesia de
um jovem da periferia tem uma carga especial ou diferente. No entanto, a escuta
permite que eu formule a hipótese de que alguns poetas confirmaram
lugares-comuns difundidos pelo discurso midiático. Um eu poético se queixou do
Estado, que oprime os pobres. A angústia e a revolta permitem que predominem o
protesto e o desabafo, porém, do jeito que ficou, o texto não diz como nem por
que o Estado se tornou uma máquina opressora. Estamos numa época em que a coisa
pública — a res publica — passa a ser
alvo de descrédito, quando é o setor privado que corrompe o Estado. Por outro
lado, a poesia se serve de símbolos, de modo que o poeta critica o Estado, e no
entanto este é só uma forma aparente que pode encobrir outro sentido: Quando
Aristófanes queria criticar os sofistas, satirizava os filósofos por eles serem
mais conhecidos pelo público. Hoje, aos olhos do público, o grande antagonista
do público é o Estado, muito embora devesse ser o mercado.
Também foi mencionado o
playboy, que infelizmente pode ser
entendido não como o rico e sedutor filho do burguês, mas sim como um sujeito
que, por ter o básico, é identificado erroneamente com a classe dominante,
quando na verdade ele não passa de alguém cujos pais usam o cheque especial no
fim do mês. Parece que todas as classes pensam que a classe média, a que
supostamente pertence o playboy, está
mais próxima do burguês, mas na verdade o playboy
e a classe média são pobres que se deram bem: têm o básico. Esse erro acontece
porque a consciência capta a realidade de forma imediata (e não mediata), e por
isso identifica direitos básicos com privilégios. Outro motivo de
questionamento é o poema em que o eu poético deseja se vingar de Bolsonaro e
Temer. Literariamente, é um desejo válido e catártico; entretanto, a vingança
é, no dizer de Antônio Cândido, a quintessência do individualismo, e este é o
eixo da moral burguesa. (Não posso censurar a raiva do poeta, pois eu mesmo
colei na praça de Imbariê uma frase que diz: “Sob a lua de sangue em escorpião,
colocaremos Saturno no mapa astral dos golpistas”. Na condição de imagem
poética, a lua de sangue, que, aliás, surgiu no céu na noite seguinte à do slam, remete a desejos violentos; e
Saturno é o planeta da ruína e do silêncio.) Longe de mim confundir a raiva do
oprimido com a tirania do opressor. Não faço isso. O que faço é apontar um
aspecto muito caro aos defensores dos direitos humanos, direitos que dizem respeito
a todos e todas. (Infelizmente, é comum que se desloque o sentido de defesa dos direitos humanos para o
sentido de defesa de bandidos. Isso é
feito de modo imediato e determinista. Uso o advérbio infelizmente porque, numa era em que a apuração dos fatos não tem
valor nenhum e a vida do outro não é valorizada, já se aceitou acriticamente a
ideia de que bandido bom é bandido morto.) Obviamente isso tudo são apenas
impressões: um estudo mais aprofundado pode dizer se estou me enganando. Mas minhas
cogitações, devo dizer, têm motivação: existem panos para as mangas: se o
parnasianismo errou por ser a literatura-sorriso da sociedade (só falava do que
era belo ignorando problemas sociais), também pode ser um erro o extremo
oposto: a temática social abordada como se por si só ela fizesse poesia.
Toda
a dor das poesias encantadoras do slam
permite que eu me identifique com as vozes que se expressaram ontem. Decididamente
as subjetividades do evento e eu estamos do mesmo lado. Mas mesmo assim senti
falta de uma afirmação mais explícita da importância da vida. A literatura é
para a vida.
Em
nome da vida, ele pode e deve se tornar uma tradição da literatura local — mas
sem bairrismo literário. É que uma literatura local precisa de uma tradição, e
uma tradição só existe quando a ela se dá início. Literatura é forma de existir
e de resistir, e o slam é um modo de
dar vez e voz às vozes poéticas de pessoas que já resistem pelo simples fato de
viverem aqui. Que ele faça parte da vida comunitária de Imbariê e do restante de
Duque de Caxias. Eu adorei!
Márcio Alessandro de Oliveira,
licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela Universidade Federal
Fluminense, mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e professor efetivo da rede estadual de ensino do Espírito Santo.
Imbariê, 28 de julho de 2018. Últimas alterações feitas em Serra, ES, em 8 de
junho de 2019.