sábado, 14 de abril de 2018

CONSIDERAÇÕES SOBRE HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL

J. K. Rowling. Harry Potter e a Pedra Filosofal, Rio de Janeiro, Rocco, 263 páginas, 2000. ISBN 85-325-1101-5. (Tradução de Lia Wyler.)

Duque de Caxias, RJ, 10 de agosto de 2015.
(Alterações feitas em Serra, ES, 11/4/2019. Últimas alterações feitas em Guarapari, ES, 13/6/2020.)

CONSIDERAÇÕES SOBRE HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL

Márcio Alessandro de Oliveira[1]

O mundo editorial se divide em antes e depois do primeiro romance da britânica J. K. Rowling (31/7/1965), Harry Potter and the Philosopher’s Stone, recusado por doze editoras antes de ser aceito pela Bloombury, que o lançou em 1997. Há quem diga que o sucesso da história, prelúdio de uma série de sete livros, é explicado com o marketing, como se o discurso literário da autora se resumisse a modismo e a dinheiro, mas essa tese não se sustenta. O que Rowling produziu foi muito mais do que um conto de fadas comercial, e isso se vê no conteúdo, repleto de temas e alegorias escolhidos por uma autora cuja origem é a classe trabalhadora, na estrutura folhetinesca de romance policial e no estilo, que, graças à prodigiosa habilidade de Lia Wyler, atenta ao contexto e à intenção da autora, foram bem preservados na tradução brasileira, Harry Potter e a Pedra Filosofal, da editora Rocco, tradução em que o leitor brasileiro encontra o mesmo efeito de sentido do original britânico.
A história começa a ser narrada com o casal Dursley e seu filho, uma família de classe média que, tendo orgulho de seu status, é arrogante, mesquinha e preconceituosa.  A figura paterna, o obeso Sr. Dursley, na manhã da terça-feira de 1º/11/1981, indo para o trabalho, nota comportamentos atípicos, como um gato lendo uma placa e pessoas vestindo trajes que as pessoas “normais” não usam; e, vendo telejornal no fim do dia ao lado da esposa, Petúnia, uma mulher pescoçuda que espia os vizinhos, ele toma ciência de fenômenos estranhos, como voos de corujas e estrelas cadentes dignas do quinto dia de novembro (em que é celebrada a Noite de Guy Fawkes). Por detestar a anormalidade, Válter Dursley (Vernon Dursley, no original) não gosta de vincular os ocorridos estranhos à irmã de Petúnia, Lílian, casada com Tiago Potter (James Potter, no original), muito menos de pensar que tudo aquilo possa afetá-lo.
Os estranhos acontecimentos daquela manhã, no entanto, têm uma explicação que afeta bastante a vida de Válter e Petúnia Dursley: Na noite de 31/10/1981 (Dia das Bruxas), no vilarejo de Godric’s Hollow, Lílian e Tiago Potter foram assassinados por Lorde Voldemort, um bruxo das trevas que tentara derrubar o Ministério da Magia da Grã-Bretanha com seus leais seguidores na Primeira Guerra Bruxa, que já durava onze anos. O que encerrou essa guerra foi o filho de Lílian e Tiago, Harry, de apenas um ano, a quem a mãe tentou proteger interpondo-se entre ele e o assassino. Após matar Lílian, Voldemort apontou a varinha para o bebê (que se tornara o principal alvo do homicida por motivos revelados apenas num dos romances posteriores da série) e lançou-lhe um feitiço mortal; este, porém, não causou a morte de Harry, que sobreviveu e na testa ficou apenas com um corte em forma de raio, sua futura cicatriz. Mas o mais intrigante é que o feitiço voltou-se contra o feiticeiro, feiticeiro que (por uma razão também revelada apenas em uma das continuações) não morreu, porém ficou sem corpo e extremamente enfraquecido; por isso, ele, que matara tantos dos mais poderosos e habilidosos bruxos do país, fugiu depois de ser derrotado por um bebê. Assim caiu Lorde Voldemort, e sua queda foi o motivo dos comportamentos atípicos e comemorações com estrelas cadentes notados até pelos trouxas (muggles, no original), humanos sem nenhuma gota de sangue mágico que ignoram a existência da comunidade mágica, comunidade respeitadora do Estatuto Internacional de Sigilo em Magia...
Entretanto, esse estatuto não impossibilita que parentes trouxas conheçam a verdade de seus familiares bruxos mais próximos, como no caso da Sra. Dursley, que na manhã de 2/11/1981, no batente do número quatro da Rua dos Alfeneiros, Little Whinging, Surrey, encontra o sobrinho e uma carta em que se revelam os terríveis acontecimentos sobre a irmã e o marido desta. De má vontade, Petúnia acolhe o garoto, que certamente seria tão “anormal” quanto os pais dele, a quem ela desprezava categoricamente. Tendo como quarto o interior de um armário embaixo da escada, ele será maltratado e oprimido pelo crime de ser bruxo sem saber a sua real natureza, biologicamente determinada, embora vá produzir magia inconscientemente. Só conhece a verdade em 31/7/1991, dia de seu 11º aniversário, quando escuta a revelação conversando com Rúbeo Hagrid, o meio-gigante que trabalha na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, a escola em que se formaram os pais de Harry e para a qual ele também irá depois de, esclarecido e acompanhado por Hagrid, de quem se torna amigo, comprar todo o material escolar no Beco Diagonal, onde descobre ser rico (seus pais lhe deixaram muito ouro guardado no banco de Gringotes), famoso e conhecido como O Menino Que Sobreviveu. É no Beco Diagonal que Harry descobre que Hogwarts é dividida em quatro casas, que valorizam diferentes características. De uma delas saiu a maioria dos bruxos das trevas britânicos.
Do Gringotes, banco de segurança máxima administrado por duendes, Hagrid retira um preciosíssimo objeto por ordem de Alvo Dumbledore, diretor da escola e único bruxo suficientemente poderoso para enfrentar e intimidar o desaparecido e semimorto Voldemort mesmo quando o bruxo das trevas era poderoso.
O Beco Diagonal é uma espécie de bairro comercial em que o herói tem o primeiro choque de realidade mágica (com exceção do primeiro encontro com o próprio Hagrid). Descobre não só que pode comprar livros, varinha e animais, como a sua coruja, que ele usará para se corresponder com os amigos, mas que também há preconceito na sociedade em que é inserido. De fato, as duas sociedades, a bruxa e a trouxa, podem ser violentas, autoritárias e preconceituosas. Para ver isso basta analisar a conversa entre Harry e Draco Malfoy, que se conhecem no supracitado Beco. Na opinião do jovem Draco, bruxos nascidos de pais trouxas não deveriam ser aceitos em Hogwarts, mesmo que tenham sangue mágico (o que, de acordo com uma declaração da autora que está fora dos livros, só é possível graças a um ascendente ou antepassado que tenha sido bruxo). A família Malfoy, conforme se vê nos outros romances da série, valoriza a pureza do sangue dos bruxos, um dos ideais por que lutaram os seguidores de Voldemort. Pode-se dizer que a família Malfoy está para o mundo bruxo assim como a família Dursley está para o mundo trouxa.
Contra a vontade dos tios, em 1º de setembro Harry vai para a escola tomando o Expresso de Hogwarts, uma locomotiva que se toma depois que se atravessa a barreira da Plataforma 9 ½ (9 ¾, no original), “situada” entre as plataformas 9 e 10 de King’s Cross, a estação de Londres, em que Rowling tivera a ideia de escrever a história de Harry.
A escola é um castelo, e nele Harry recebe mais um choque de realidade mágica. É em Hogwarts que ele sela seu contato com a fauna e a flora que dizem respeito aos bruxos e às bruxas, animais bípedes racionais dotados de magia que podem ser tão capitalistas e cruéis quanto os humanos não mágicos, embora esses aspectos sejam melhor explorados nas continuações. É na escola que descobrirá os centauros e os unicórnios da Floresta Proibida, e é nela também que aprenderá as primeiras lições de Herbologia.
Os determinismos biológico e social que forçam o herói a seguir seu destino não anulam completamente seu poder de opção. Pede, por exemplo, que não seja incluído na Sonserina (Slytherin), casa a que pertenceu o assassino dos pais; por isso vai para a Grifinória (Gryffindor), em que se valoriza a coragem. Além disso, pode desenvolver seu talento nas diferentes disciplinas: Feitiços, Transfiguração, Herbologia, Poções, Defesa Contra as Artes das Trevas e História da Magia (as aulas desta última disciplina são ministradas por um fantasma). Por outro lado, Harry foi meio que forçado a aceitar ir para Hogwarts (embora não seja obrigatória a escolaridade; os pais têm a opção de não matricular os filhos, que, aliás, podem ser enviados a escolas de outros países). Preferiu aceitar a bruxidade a permanecer na condição degradante a que seus tios o submetiam. Sua vida, porém, não é fácil: Tem de suportar a aversão não disfarçada do professor Snape, que dá aulas de Poções, e de Draco Malfoy.
            Além do Quadribol (Quiddtch) (o esporte que os bruxos praticam montados em vassouras), dos trasgos e das aulas, outros assuntos ocupam a mente do jovem bruxo, como o Espelho de Ojesed, que revela o mais profundo desejo de quem nele se vê, e outros mistérios de Hogwarts, cujo terceiro andar fica proibido e ocupado, em parte, por um cão de três cabeças vindo da Grécia. Somando esse último fato à tentativa de roubo no Gringotes feita no mesmo dia em que Hadrid e ele visitaram o banco (31/7/1991), o protagonista começa a suspeitar que a Pedra Filosofal, fabricada por Dumbledore e Nicolau Flamel, tenha sido transferida do banco para a escola, um lugar mais seguro do que o próprio banco, considerado impenetrável. Mais: Harry acha que Snape, tempos atrás dado às artes das trevas, está tentando obtê-la para que seu antigo senhor recupere as forças...
A cada novo capítulo as suspeitas de Harry são alimentadas tanto quanto as do leitor. Como um detetive, o herói formula uma hipótese, faz dela uma conclusão e com base nela tenta avisar Dumbledore do que está acontecendo, mas o diretor se ausentara. Temendo que Voldemort recupere as forças com a Pedra Filosofal, Harry decide roubá-la primeiro, e recebe a ajuda de seus melhores amigos, Rony e Hermione.
Harry confronta Voldemort, que partilha o corpo de outro bruxo. O objetivo do vilão é obter a Pedra para se livrar da condição fantasmagórica a que se condenara. Para isso, tentará usar o próprio Harry, que, para a sua surpresa, descobrirá que sua mãe não precisava ter se sacrificado por ele. O garoto, no entanto, não terá tempo para fazer conjecturas: depois de ser forçado a encarar-se no Espelho de Ojesed, este lhe revela o desejo de frustrar Voldemort. A Pedra, então, surge no seu bolso. Voldemort, depois de falar da morte de Tiago e do supostamente desnecessário sacrifício de Lílian, tenta tomar a gema, mas, quando Harry é tocado pelo bruxo cujo corpo Voldemort partilha, o garoto causa um forte e doloroso dano. Percebendo o poder que tinha, Harry toca seus dois antagonistas: um deles morre; o outro, Voldemort, escapa e se esconde mais uma vez.
Na ala hospitalar, o garoto conversa com Dumbledore. O diretor afirma que o menino derrotou Voldemort mais uma vez porque sua mãe lhe conferira uma poderosa proteção. Também afirma que só quem desejasse obter a Pedra sem querer usá-la em benefício próprio conseguiria tirá-la do Espelho.
Recuperado, Harry volta à casa dos tios sabendo que a Pedra Filosofal foi destruída para não cair em mãos erradas. Com eles terá de conviver até ao início do segundo ano letivo.
A estrutura folhetinesca, que se dá com a divisão em capítulos, e os registros feitos por um narrador observador onisciente renderam mais de duzentas páginas, motivo por que o livro foi recusado tantas vezes. Afinal, crianças não liam tanto. Apesar disso, é um livro infantil: é destinado a crianças de nove a doze anos. Naturalmente, isso não impossibilitou que caísse no gosto de adolescentes e adultos, principalmente no de pais, que foram os primeiros divulgadores.
Partindo da premissa de que o livro se destinava a crianças, Lia Wyler adotou a práxis mundial de tradução de livros de literatura infantil. De acordo com a teoria extraída da práxis, devem ser traduzidos os nomes de batismo. Com a aprovação da própria autora, recriou neologismos, como Slytherin e Quidditch. É claro que, pelo seu histórico, Lia verteria o prenome de todo personagem mesmo se não se tratasse de livro infantil, pois, embora muitos ignorantes sustentem o mito de que nome próprio não se traduz nunca, academicamente pertence a uma corrente de tradução que faz o que se vê na Bíblia: a tradução de nomes próprios. Em virtude dos prazos curtos e da interferência de outros, uma falha aqui e outra li podem ser identificadas nas versões brasileiras da série, mas nada que comprometa a obra. Lia Wyler, merecidamente, ganhou o Prêmio Monteiro Lobato Tradução-Criança, assim como Rowling recebera um prêmio do Scottish Arts Council, o British Book Awards Children’s Book of the Year e o Smarties Prize.
Pedra Filosofal e suas continuações não agradaram a todos. Basicamente, dividem-se os seus detratores em dois grupos: o dos que o acusam de bruxaria, e o dos que o acusam de não passar de fancaria literária. Portanto, há os que o criticam tão só por causa do conteúdo, e há os que o criticam por causa do conteúdo e da forma; mas tanto por uma coisa como pela outra se salva o romance.
            Para entender o absurdo da suposta bruxaria, é preciso considerar as palavras de Lia Wyler, que, em entrevista [2]concedida em 28/11/2003 ao site Omelete, afirmou:

Dizer que a série de Harry Potter tem qualquer relação com a bruxaria é das tolices mais rematadas que já se disse desde o seu lançamento. A acusação tem partido de seitas televisivas em países de língua inglesa e seus seguidores no Brasil e não se sustenta; tente você fazer qualquer dos feitiços que Harry faz e verá que vai quebrar a cara. Além disso, no Brasil sempre houve uma tradição de respeito a todas as religiões e essa intolerância nascente é extremamente preocupante.

De fato, nenhum leitor de Harry Potter tem sangue mágico: não foi biologicamente determinado para ser bruxo. E, por mais que queiram, os seres humanos reais não podem encontrar um fabricante de varinhas, nem unicórnios, nem dragões, nem uma fênix, animais dos quais se tira um pelo, fibra de coração e pena (respectivamente), materiais usados nas varinhas dos bruxos britânicos.
            Inegavelmente, houve algum pano para manga: a palavra trouxa deu margem a que se acusasse a série, mas, dependendo do contexto, não é pejorativa no imaginário da comunidade de que fazem parte Harry e seus amigos, que não se sentem ofendidos por serem chamados de bruxos e não experimentam nenhum sentimento de desprezo quando se referem à comunidade não mágica usando a palavra trouxas. O termo está cristalizado no inconsciente dos bruxos, e é empregado apenas para designar quem não tem magia ou não crê na existência dela. Só dão carga pejorativa à palavra os bruxos preconceituosos, como Draco Malfoy, que a ela dá expressividade à sua maneira, o que comprova o que postula Bakhtin, para quem as palavras estão soltas no léxico de tal modo, que cabe ao falante dar expressividade a elas. Assim, mesmo que o significado de um palavrão seja ofensivo, o sentido pode não ser: o termo, com a intenção, condicionada pelo contexto (situação) de um discurso falado típico de um brasileiro, pode ser forma amistosa de um amigo se dirigir a outro. A própria Hermione sabe que seus pais são trouxas, todavia, ela não usa o signo (a palavra) para ofender ou menosprezar os pais pelas costas quando a eles se refere; chega a verbalizar que é nascida trouxa (muggleborn). Alguns bruxos são alvo de preconceito por terem ligação sanguínea ou afetiva com trouxas, mas nem por isso são chamados de trouxas. Em Harry Potter e a Câmara Secreta, segundo livro da série, descobre-se que bruxos nascidos em famílias trouxas são chamados de sangues-ruins, termo usado apenas por bruxos preconceituosos. Estes não se dão com os bruxos mais tolerantes, entre os quais há aqueles que sentem fascínio pela sociedade não-mágica.
Lia Wyler, na referida entrevista, esclarece:

A controvérsia sobre a palavra muggle é artificialíssima. A autora declarou em juízo, na Inglaterra, que a palavra e seus n significados foi por ela usada no sentido de fool. Fiz uma análise de todas as palavras que significavam fool em português e me fixei em trouxa por ser mais forte que tolo ou bobo e mais branda que otário, e, ainda, por lembrar a sonoridade de bruxo. Trouxa é o indivíduo incapaz de devanear, de sonhar, de fantasiar de cara limpa.  (Os grifos são desta resenha.)

            Sendo tão fácil comparar a história de Harry a de Cristo, que também foi perseguido por um tirano capaz de causar a morte de crianças, é de estarrecer que o prefiram tachar como porta de entrada para o mundo da bruxaria a entender a sua história. A mãe do herói se sacrifica pelo filho, a quem caberá o dever moral de lutar em nome da comunidade, e não apenas de sua felicidade ou bem-estar pessoal, o que lhe proporcionará o derramamento do próprio sangue.
            Há muitos temas “adultos”, como a morte, que, por motivos biográficos, permeia a ficção de Rowling, cuja mãe faleceu depois de sofrer os efeitos da esclerose múltipla. Quando não o acusam de bruxaria, alegam que Harry mostra às crianças coisas horrendas, que podem arrancar a preciosa flor de sua inocência, das quais a morte, segundo os que o condenam, pode ser a pior: “A morte, não o sexo, é agora o tabu que violamos — a ‘pornografia da morte’ causa-nos excitação” (José Luíz de Sousa Maranhão, O que é morte, pág. 10, citado por Maria L. de A. Aranha e Maria H. P. Martins, em Filosofando: Introdução à Filosofia, pág. 370.) “Escondemos a morte das crianças: esse não é mais um tema de conversa entre pais e filhos, elas não mais participam de velórios e funerais, evitamos que assistam a filmes ou ouçam histórias que trazem a ideia de morte à tona” (Rosely Sayão, Bruxas, monstros e morte, no blog da autora[3]). Mais um motivo para respeitar Harry e sua autora: ela abordou um tema tabu e abalou a visão do senso comum, efeitos típicos da boa literatura.
            Com relação também à forma (e não apenas ao conteúdo), Harry Potter é visto como subliteratura ou fancaria literária por fazer muito sucesso comercial, como se fosse um produto de segunda categoria cujo único mérito é engrandecer o capital. Nada mais falso. Quem isso diz não leu os livros, repletos de mistérios, intrigas, alusões aos preconceitos racial e social (trouxas e bruxos, Dursleys e Malfoys) e temas políticos do Ministério da Magia somados aos seres fantásticos, lugares incríveis e personagens verossimilhantes, que apreciam e depreciam letras de canções, livros didáticos, avisos, panfletos, notícias, reportagens, cartas sociais e diálogos entre inferiores e superiores hierárquicos. Com tanta riqueza de gêneros textuais e polifonia, as más línguas poderiam ser menos preguiçosas e ignorantes; assim, leriam e poderiam emitir conceitos a respeito da obra, vista por Harold Bloom [4] e Ruth Rocha[5] como mais um modismo midiático, e não como literatura. Curiosamente, os profissionais de Letras e a Ecdótica fazem o que se faz desde o Realismo, no tempo de Flaubert[6]: encarar a prosa de ficção como um produto (e a palavra aqui não é usada por acaso; uma pequena análise de discurso de linha francesa confirma o que subjaz a ela), e quando uma autora alcança o reconhecimento e muito dinheiro com seu trabalho, e não propriamente com a inspiração, o produto não é bem visto por todos os acadêmicos, nem pelos acadêmicos brasileiros, que se curvam às imposições do Banco Mundial. Como é isso?  Seriam C. S. Lewis, Lewis Carroll (pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson), Monteiro Lobato e Pedro Bandeira produtores de subliteratura infantil ou mesmo de fancaria literária infantil? (o que seria sinalizado com o sucesso comercial). Ou seriam modismos de suas respectivas épocas? E o que dizer dos contos infantis reunidos na Europa durante o Romantismo, vendidos até hoje? Se o sucesso comercial e o “modismo” são indícios ou provas de má literatura, infantil ou não, então José Saramago produziu a pior espécie de texto literário.
Há quem levante a hipótese de que redatores-fantasmas (ghost-writers) tenham produzido os livros de Harry Potter, como supostamente acontece com outros best sellers. Isso, porém, é mentira: A Crítica Textual pode confirmar que Rowling trabalhou de 1990 a 2007 para ser lida, como todo indivíduo escritor, e não para ganhar dinheiro. Chegou a reescrever o primeiro livro dez vezes antes da publicação, e já foi até exposto um rascunho. Além disso, o redator-fantasma é um profissional que trabalha com textos não literários, e não é reconhecido nunca pelo público leitor. Quando se trata de prosa de ficção em forma de conto ou romance, o autor assume o trabalho, mesmo que seja apenas um adaptador, como no caso de Alan Dean Foster, que fez uma adaptação literária em prosa com base no roteiro de Star Wars, em 1976. Não se redige um romance (redigir nem sempre é sinônimo de escrever): ele é escrito com arte, e com efeito: o redator-fantasma só produz texto não-literário. Essa é uma diferença que se baseia num conhecimento básico.
Não há dúvidas de que Rowling marcou para sempre a literatura e o mundo editorial. Marcou ainda mais o enorme público, que ela cativou. E aí reside a mais poderosa magia de Harry Potter: ele fez uma geração gostar de ler. No Brasil, país de milhões de analfabetos, isso é motivo para estrelas cadentes.

      

      

      




[1] Licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor efetivo de uma rede pública de ensino.

[2] Entrevista disponível em: http://omelete.uol.com.br/games/entrevista/omelete-entrevista-lia-wyler-a-tradutora-de-harry-potter/#.UiR4D9I3uHc.

[6] Consultar: https://www.youtube.com/watch?v=NC3_e-Acvpk. 

sexta-feira, 13 de abril de 2018

NOTA DE REPÚDIO À INJUSTA E OBSCENA PRISÃO DE LULA




“... o sofrimento de um homem é o sofrimento de todos. A injustiça independe da distância. Quando não é contido a tempo, o mal se espalha para atingir todos os homens, tanto os que o combateram como os que o ignoraram.”

(FOSTER, Alan Dean; LUCAS, George. Guerra nas Estrelas. Trad. Ronaldo Sérgio Biasi. Rio de Janeiro: Record, 1978, p. 72.)

            As abaixo assinadas e os abaixo assinados, que são artistas e intelectuais orgânicos de Imbariê, distrito caxiense em que fica o lugar de nascimento daquele que dá nome ao município de Duque de Caxias, nesta nota pública, também assinada pelo representante da Antiacademia Imbariense de Letras, por serem caxias, cumprem um dever moral e ético: manifestam seu repúdio ao golpe de Estado em curso e à prisão política de Lula, a qual é um golpe dentro do golpe.  Em verdade, também assinam esta nota trabalhadores e trabalhadoras dos mais diversos ramos e estudantes de Imbariê. 
            Com base nos conhecimentos proporcionados pela Literatura, percebemos que a imprensa fez de Lula um Goldstein, mencionado no romance 1984, de George Orwell.   A diferença é que os Dois Minutos de Ódio serão vinte anos de retrocessos.  A manipulação midiática comprova o que Roman Jakobson, linguista, já postulava: o uso da função conativa da linguagem, graças ao qual a classe média reacionária brasileira, tal como os italianos que usaram camisas negras no fascismo, foi às ruas com a camisa da CBF, uma instituição inegavelmente corrupta.  Isso supostamente foi feito em nome do combate à corrupção.
            É motivo de tristeza a onda fascista que tomou conta do Brasil.  Também é de entristecer o ódio incondicional presente até mesmo em camadas populares.  Igualmente lamentáveis são os deslocamentos de sentido feitos pelas massas manipuladas pela imprensa quando o assunto é a prisão de Lula.  Enquanto os que reconhecem os acertos do ex-presidente identificam o sentido do sintagma prisão de Lula com o sentido de ataque de um mercado financeiro que suborna os que colocam um sino de leproso em Lula e no Partido dos Trabalhadores, todas as pessoas que seguem acriticamente a imprensa deslizam o sentido de prisão de Lula para a ideia ingênua de começo do fim da corrupção e de prisões de corruptos, como se seus algozes fossem santos e imaculados ou como se a Globo fosse uma Virgem Maria.  (Infelizmente, já há quem tenha chegado ao extremo de pensar que cabe a Lula provar a própria inocência, quando na verdade é à acusação que cabe a tarefa de provar que ele é culpado, já que o ônus da prova recai sobre a acusação, e não sobre o acusado.)  Da mesma forma, as massas alimentadas pelas diárias e cavalares doses de veneno antipetista deslocam o sentido de defesa de Lula para o de defesa de bandido. Este último mote, por sua vez, está vinculado a outras duas ideias: a de que quem defende bandido é bandido também e a de que bandido bom é bandido morto (vale lembrar a tentativa de homicídio contra um ônibus de uma caravana de Lula).
            Sabe-se que a escolha de palavras nunca é neutra, e diariamente a palavra condenação foi usada pela imprensa no lugar de resultado de julgamento.
            Somando o que aqui se expõe ao fato de que ninguém precisa ser petista nem de esquerda para entender que a prisão de Lula é uma injustiça de cunho político, as pessoas abaixo assinadas entendem que não se trata de defender propriamente o ex-presidente nem os erros do PT (que tem sido sistemática e implacavelmente perseguido por seus acertos, e não por seus erros): trata-se, antes de tudo, de defender a democracia e os direitos políticos, econômicos e sociais, ameaçados que são pelo neoliberalismo econômico, uma ideologia que privatiza os direitos básicos da população e da mesma classe média reacionária que odeia Lula e Dilma, pessoas cujas diretrizes políticas e econômicas beneficiaram esse mesmo estrato social com o Sisu e o Prouni.  Se tiram a presidenta do cargo mesmo depois de não ter sido comprovado crime de responsabilidade fiscal em forma de pedaladas fiscais — legalizadas logo depois do golpe —, e condenam um ex-presidente sem provas cabais, então podem fazer com qualquer outro cidadão qualquer tipo de arbitrariedade política ou qualquer injustiça típica de um Estado de exceção.  Contudo, os/as intelectuais e os/as artistas que assinam esta nota têm voz — e não vão se calar diante das arbitrariedades: vão lutar, à sua maneira, pela chama que projetará a luz da esperança num país injustiçado e oprimido pelas tacanhas elites econômicas.  Cada artista deste país pode e deve se unir à classe trabalhadora para, juntos, serem a fagulha que acenderá a chama que dará fim ao governo golpista, pois, se é que há esperança, ela está no proletariado.  Em última análise, repudiar publicamente a prisão de Lula e o impeachment é exorcizar um fantasma que tem se solidificado ou que tem sido incorporado por um setor conservador da sociedade brasileira: o fantasma da ditadura militar, implementada com o golpe de Estado de 1964.
            Sabe-se que a prisão de Lula é um ataque obsceno não apenas a uma pessoa, mas também a diretrizes políticas que começaram a lidar, mesmo que de modo tímido e incipiente, com os verdadeiros problemas do Brasil, a saber:

            1. a herança da escravidão, invisibilizada de todas as formas pelos que se opõem às cotas nas universidades;
            2. a corrupção do capitalismo financeiro, que no rastro do neoliberalismo tira todo o dinheiro do povo e do Estado, enquanto o neoliberalismo pratica o que sabe fazer de melhor (isto é: de pior): privatizar todos os direitos (saúde, educação, segurança e lazer) e o maior número de empresas estatais ao mesmo tempo que todos pensam que Sérgio Cabral, um reles capataz do poder e bode expiatório, é sinal de que o Estado não presta, embora o verdadeiro vilão seja o setor privado.

            Dilma e Lula não compactuaram plenamente com o mercado financeiro.  Ela teve de lidar com a queda do preço das commodities e com a livre retirada de dinheiro por parte do mercado financeiro, que lucra com taxas de juros sem produzir mercadorias nem serviços.  Lula, por sua vez, elevou o Brasil à posição de sexta maior economia do mundo com revoluções que fortaleceram o Estado do Bem-Estar Social, fato imperdoável aos olhos do mercado financeiro internacional.
            Se no Brasil a população fosse minimamente esclarecida, as ideias que hoje são de esquerda já seriam lugares-comuns até mesmo entre direitistas, como na França e em outros países da Europa, o mandato de Dilma teria sido respeitado e criticado na forma da oposição política, e não na forma do impeachment golpista, e Lula jamais seria tão perseguido.  A ele, contudo, está reservado um lugar de ouro nas páginas dos livros de História, um lugar tão resplandecente quanto o que se reservou a Mandela e Gandhi.

Márcio Alessandro de Oliveira

Imbariê, 3º Distrito de Duque de Caxias.  13 e 14 de abril de 2018.