Duque
de Caxias, RJ, 10 de agosto de 2015.
(Alterações
feitas em Serra, ES, 11/4/2019. Últimas alterações feitas em Guarapari, ES,
13/6/2020.)
CONSIDERAÇÕES SOBRE HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL
Márcio Alessandro de Oliveira[1]
O mundo editorial se divide em antes e
depois do primeiro romance da britânica J. K. Rowling (31/7/1965), Harry Potter and the Philosopher’s Stone,
recusado por doze editoras antes de ser aceito pela Bloombury, que o lançou em
1997. Há quem diga que o sucesso da história, prelúdio de uma série de sete
livros, é explicado com o marketing,
como se o discurso literário da autora se resumisse a modismo e a dinheiro, mas
essa tese não se sustenta. O que Rowling produziu foi muito mais do que um
conto de fadas comercial, e isso se vê no conteúdo, repleto de temas e
alegorias escolhidos por uma autora cuja origem é a classe trabalhadora, na
estrutura folhetinesca de romance policial e no estilo, que, graças à
prodigiosa habilidade de Lia Wyler, atenta ao contexto e à intenção da autora,
foram bem preservados na tradução brasileira, Harry Potter e a Pedra Filosofal, da editora Rocco, tradução em que
o leitor brasileiro encontra o mesmo efeito de sentido do original britânico.
A história começa a ser narrada com o
casal Dursley e seu filho, uma família de classe média que, tendo orgulho de
seu status, é arrogante, mesquinha e
preconceituosa. A figura paterna, o
obeso Sr. Dursley, na manhã da terça-feira de 1º/11/1981, indo para o trabalho,
nota comportamentos atípicos, como um gato lendo uma placa e pessoas vestindo
trajes que as pessoas “normais” não usam; e, vendo telejornal no fim do dia ao
lado da esposa, Petúnia, uma mulher pescoçuda que espia os vizinhos, ele toma
ciência de fenômenos estranhos, como voos de corujas e estrelas cadentes dignas
do quinto dia de novembro (em que é celebrada a Noite de Guy Fawkes). Por
detestar a anormalidade, Válter Dursley (Vernon Dursley, no original) não gosta
de vincular os ocorridos estranhos à irmã de Petúnia, Lílian, casada com Tiago
Potter (James Potter, no original), muito menos de pensar que tudo aquilo possa
afetá-lo.
Os estranhos acontecimentos daquela
manhã, no entanto, têm uma explicação que afeta bastante a vida de Válter e
Petúnia Dursley: Na noite de 31/10/1981 (Dia das Bruxas), no vilarejo de
Godric’s Hollow, Lílian e Tiago Potter foram assassinados por Lorde Voldemort,
um bruxo das trevas que tentara derrubar o Ministério da Magia da Grã-Bretanha
com seus leais seguidores na Primeira Guerra Bruxa, que já durava onze anos. O
que encerrou essa guerra foi o filho de Lílian e Tiago, Harry, de apenas um
ano, a quem a mãe tentou proteger interpondo-se entre ele e o assassino. Após
matar Lílian, Voldemort apontou a varinha para o bebê (que se tornara o
principal alvo do homicida por motivos revelados apenas num dos romances
posteriores da série) e lançou-lhe um feitiço mortal; este, porém, não causou a
morte de Harry, que sobreviveu e na testa ficou apenas com um corte em forma de
raio, sua futura cicatriz. Mas o mais intrigante é que o feitiço voltou-se
contra o feiticeiro, feiticeiro que (por uma razão também revelada apenas em
uma das continuações) não morreu, porém ficou sem corpo e extremamente
enfraquecido; por isso, ele, que matara tantos dos mais poderosos e habilidosos
bruxos do país, fugiu depois de ser derrotado por um bebê. Assim caiu Lorde
Voldemort, e sua queda foi o motivo dos comportamentos atípicos e comemorações
com estrelas cadentes notados até pelos trouxas (muggles, no original), humanos sem nenhuma gota de sangue mágico
que ignoram a existência da comunidade mágica, comunidade respeitadora do
Estatuto Internacional de Sigilo em Magia...
Entretanto, esse estatuto não
impossibilita que parentes trouxas conheçam a verdade de seus familiares bruxos
mais próximos, como no caso da Sra. Dursley, que na manhã de 2/11/1981, no
batente do número quatro da Rua dos Alfeneiros, Little Whinging, Surrey,
encontra o sobrinho e uma carta em que se revelam os terríveis acontecimentos sobre
a irmã e o marido desta. De má vontade, Petúnia acolhe o garoto, que certamente
seria tão “anormal” quanto os pais dele, a quem ela desprezava categoricamente.
Tendo como quarto o interior de um armário embaixo da escada, ele será
maltratado e oprimido pelo crime de ser bruxo sem saber a sua real natureza,
biologicamente determinada, embora vá produzir magia inconscientemente. Só
conhece a verdade em 31/7/1991, dia de seu 11º aniversário, quando escuta a
revelação conversando com Rúbeo Hagrid, o meio-gigante que trabalha na Escola
de Magia e Bruxaria de Hogwarts, a escola em que se formaram os pais de Harry e
para a qual ele também irá depois de, esclarecido e acompanhado por Hagrid, de
quem se torna amigo, comprar todo o material escolar no Beco Diagonal, onde
descobre ser rico (seus pais lhe deixaram muito ouro guardado no banco de
Gringotes), famoso e conhecido como O
Menino Que Sobreviveu. É no Beco Diagonal que Harry descobre que Hogwarts é
dividida em quatro casas, que valorizam diferentes características. De uma
delas saiu a maioria dos bruxos das trevas britânicos.
Do Gringotes, banco de segurança máxima
administrado por duendes, Hagrid retira um preciosíssimo objeto por ordem de
Alvo Dumbledore, diretor da escola e único bruxo suficientemente poderoso para
enfrentar e intimidar o desaparecido e semimorto Voldemort mesmo quando o bruxo
das trevas era poderoso.
O Beco Diagonal é uma espécie de bairro
comercial em que o herói tem o primeiro choque de realidade mágica (com exceção
do primeiro encontro com o próprio Hagrid). Descobre não só que pode comprar
livros, varinha e animais, como a sua coruja, que ele usará para se
corresponder com os amigos, mas que também há preconceito na sociedade em que é
inserido. De fato, as duas sociedades, a bruxa e a trouxa, podem ser violentas,
autoritárias e preconceituosas. Para ver isso basta analisar a conversa entre
Harry e Draco Malfoy, que se conhecem no supracitado Beco. Na opinião do jovem
Draco, bruxos nascidos de pais trouxas não deveriam ser aceitos em Hogwarts,
mesmo que tenham sangue mágico (o que, de acordo com uma declaração da autora
que está fora dos livros, só é possível graças a um ascendente ou antepassado
que tenha sido bruxo). A família Malfoy, conforme se vê nos outros romances da
série, valoriza a pureza do sangue dos bruxos, um dos ideais por que lutaram os
seguidores de Voldemort. Pode-se dizer que a família Malfoy está para o mundo
bruxo assim como a família Dursley está para o mundo trouxa.
Contra a vontade dos tios, em 1º de
setembro Harry vai para a escola tomando o Expresso de Hogwarts, uma locomotiva
que se toma depois que se atravessa a barreira da Plataforma 9 ½ (9 ¾, no
original), “situada” entre as plataformas 9 e 10 de King’s Cross, a estação de
Londres, em que Rowling tivera a ideia de escrever a história de Harry.
A escola é um castelo, e nele Harry
recebe mais um choque de realidade mágica. É em Hogwarts que ele sela seu
contato com a fauna e a flora que dizem respeito aos bruxos e às bruxas,
animais bípedes racionais dotados de magia que podem ser tão capitalistas e
cruéis quanto os humanos não mágicos, embora esses aspectos sejam melhor
explorados nas continuações. É na escola que descobrirá os centauros e os
unicórnios da Floresta Proibida, e é nela também que aprenderá as primeiras
lições de Herbologia.
Os determinismos biológico e social que
forçam o herói a seguir seu destino não anulam completamente seu poder de
opção. Pede, por exemplo, que não seja incluído na Sonserina (Slytherin), casa a que pertenceu o
assassino dos pais; por isso vai para a Grifinória (Gryffindor), em que se valoriza a coragem. Além disso, pode
desenvolver seu talento nas diferentes disciplinas: Feitiços, Transfiguração,
Herbologia, Poções, Defesa Contra as Artes das Trevas e História da Magia (as
aulas desta última disciplina são ministradas por um fantasma). Por outro lado,
Harry foi meio que forçado a aceitar ir para Hogwarts (embora não seja
obrigatória a escolaridade; os pais têm a opção de não matricular os filhos,
que, aliás, podem ser enviados a escolas de outros países). Preferiu aceitar a
bruxidade a permanecer na condição degradante a que seus tios o submetiam. Sua
vida, porém, não é fácil: Tem de suportar a aversão não disfarçada do professor
Snape, que dá aulas de Poções, e de Draco Malfoy.
Além do Quadribol (Quiddtch) (o esporte que os bruxos
praticam montados em vassouras), dos trasgos e das aulas, outros assuntos
ocupam a mente do jovem bruxo, como o Espelho de Ojesed, que revela o mais
profundo desejo de quem nele se vê, e outros mistérios de Hogwarts, cujo
terceiro andar fica proibido e ocupado, em parte, por um cão de três cabeças
vindo da Grécia. Somando esse último fato à tentativa de roubo no Gringotes
feita no mesmo dia em que Hadrid e ele visitaram o banco (31/7/1991), o
protagonista começa a suspeitar que a Pedra Filosofal, fabricada por Dumbledore
e Nicolau Flamel, tenha sido transferida do banco para a escola, um lugar mais
seguro do que o próprio banco, considerado impenetrável. Mais: Harry acha que
Snape, tempos atrás dado às artes das trevas, está tentando obtê-la para que
seu antigo senhor recupere as forças...
A cada novo capítulo as suspeitas de
Harry são alimentadas tanto quanto as do leitor. Como um detetive, o herói
formula uma hipótese, faz dela uma conclusão e com base nela tenta avisar
Dumbledore do que está acontecendo, mas o diretor se ausentara. Temendo que
Voldemort recupere as forças com a Pedra Filosofal, Harry decide roubá-la
primeiro, e recebe a ajuda de seus melhores amigos, Rony e Hermione.
Harry confronta Voldemort, que partilha
o corpo de outro bruxo. O objetivo do vilão é obter a Pedra para se livrar da
condição fantasmagórica a que se condenara. Para isso, tentará usar o próprio
Harry, que, para a sua surpresa, descobrirá que sua mãe não precisava ter se
sacrificado por ele. O garoto, no entanto, não terá tempo para fazer
conjecturas: depois de ser forçado a encarar-se no Espelho de Ojesed, este lhe
revela o desejo de frustrar Voldemort. A Pedra, então, surge no seu bolso. Voldemort,
depois de falar da morte de Tiago e do supostamente desnecessário sacrifício de
Lílian, tenta tomar a gema, mas, quando Harry é tocado pelo bruxo cujo corpo
Voldemort partilha, o garoto causa um forte e doloroso dano. Percebendo o poder
que tinha, Harry toca seus dois antagonistas: um deles morre; o outro,
Voldemort, escapa e se esconde mais uma vez.
Na ala hospitalar, o garoto conversa com
Dumbledore. O diretor afirma que o menino derrotou Voldemort mais uma vez
porque sua mãe lhe conferira uma poderosa proteção. Também afirma que só quem
desejasse obter a Pedra sem querer usá-la em benefício próprio conseguiria
tirá-la do Espelho.
Recuperado, Harry volta à casa dos tios
sabendo que a Pedra Filosofal foi destruída para não cair em mãos erradas. Com
eles terá de conviver até ao início do segundo ano letivo.
A estrutura folhetinesca, que se dá com
a divisão em capítulos, e os registros feitos por um narrador observador
onisciente renderam mais de duzentas páginas, motivo por que o livro foi
recusado tantas vezes. Afinal, crianças não liam
tanto. Apesar disso, é um livro infantil: é destinado a crianças de nove a doze
anos. Naturalmente, isso não impossibilitou que caísse no gosto de adolescentes
e adultos, principalmente no de pais, que foram os primeiros divulgadores.
Partindo da premissa de que o livro se
destinava a crianças, Lia Wyler adotou a práxis mundial de tradução de livros
de literatura infantil. De acordo com a teoria extraída da práxis, devem ser traduzidos
os nomes de batismo. Com a aprovação da própria autora, recriou neologismos,
como Slytherin e Quidditch. É claro que, pelo seu histórico, Lia verteria o prenome
de todo personagem mesmo se não se tratasse de livro infantil, pois, embora
muitos ignorantes sustentem o mito de que nome próprio não se traduz nunca,
academicamente pertence a uma corrente de tradução que faz o que se vê na
Bíblia: a tradução de nomes próprios. Em virtude dos prazos curtos e da
interferência de outros, uma falha aqui e outra li podem ser identificadas nas
versões brasileiras da série, mas nada que comprometa a obra. Lia Wyler, merecidamente,
ganhou o Prêmio Monteiro Lobato Tradução-Criança, assim como Rowling recebera
um prêmio do Scottish Arts Council, o
British Book Awards Children’s Book of
the Year e o Smarties Prize.
Pedra
Filosofal e suas continuações não agradaram a todos. Basicamente,
dividem-se os seus detratores em dois grupos: o dos que o acusam de bruxaria, e
o dos que o acusam de não passar de fancaria literária. Portanto, há os que o
criticam tão só por causa do conteúdo, e há os que o criticam por causa do
conteúdo e da forma; mas tanto por uma coisa como pela outra se salva o
romance.
Para entender o absurdo da suposta
bruxaria, é preciso considerar as palavras de Lia Wyler, que, em entrevista [2]concedida
em 28/11/2003 ao site Omelete,
afirmou:
Dizer
que a série de Harry Potter tem
qualquer relação com a bruxaria é das tolices mais rematadas que já se disse
desde o seu lançamento. A acusação tem partido de seitas televisivas em países
de língua inglesa e seus seguidores no Brasil e não se sustenta; tente você
fazer qualquer dos feitiços que Harry faz e verá que vai quebrar a cara. Além
disso, no Brasil sempre houve uma tradição de respeito a todas as religiões e
essa intolerância nascente é extremamente preocupante.
De fato, nenhum leitor de Harry Potter tem sangue mágico: não foi
biologicamente determinado para ser bruxo. E, por mais que queiram, os seres
humanos reais não podem encontrar um fabricante de varinhas, nem unicórnios,
nem dragões, nem uma fênix, animais dos quais se tira um pelo, fibra de coração
e pena (respectivamente), materiais usados nas varinhas dos bruxos britânicos.
Inegavelmente, houve algum pano
para manga: a palavra trouxa deu
margem a que se acusasse a série, mas, dependendo do contexto, não é pejorativa
no imaginário da comunidade de que fazem parte Harry e seus amigos, que não se
sentem ofendidos por serem chamados de bruxos e não experimentam nenhum
sentimento de desprezo quando se referem à comunidade não mágica usando a
palavra trouxas. O termo está
cristalizado no inconsciente dos bruxos, e é empregado apenas para designar
quem não tem magia ou não crê na existência dela. Só dão carga pejorativa à
palavra os bruxos preconceituosos, como Draco Malfoy, que a ela dá
expressividade à sua maneira, o que comprova o que postula Bakhtin, para quem
as palavras estão soltas no léxico de tal modo, que cabe ao falante dar
expressividade a elas. Assim, mesmo que o significado de um palavrão seja
ofensivo, o sentido pode não ser: o termo, com a intenção, condicionada pelo
contexto (situação) de um discurso falado típico de um brasileiro, pode ser
forma amistosa de um amigo se dirigir a outro. A própria Hermione sabe que seus
pais são trouxas, todavia, ela não usa o signo (a palavra) para ofender ou menosprezar
os pais pelas costas quando a eles se refere; chega a verbalizar que é nascida trouxa (muggleborn). Alguns bruxos são alvo de preconceito por terem
ligação sanguínea ou afetiva com trouxas, mas nem por isso são chamados de
trouxas. Em Harry Potter e a Câmara
Secreta, segundo livro da série, descobre-se que bruxos nascidos em
famílias trouxas são chamados de sangues-ruins, termo usado apenas por bruxos
preconceituosos. Estes não se dão com os bruxos mais tolerantes, entre os quais
há aqueles que sentem fascínio pela sociedade não-mágica.
Lia Wyler, na referida entrevista,
esclarece:
A
controvérsia sobre a palavra muggle é
artificialíssima. A autora declarou em juízo, na Inglaterra, que a palavra e
seus n significados foi por ela usada no sentido de fool. Fiz uma análise de
todas as palavras que significavam fool em
português e me fixei em trouxa por
ser mais forte que tolo ou bobo e mais branda que otário, e, ainda, por lembrar a
sonoridade de bruxo. Trouxa é o indivíduo incapaz de devanear, de sonhar,
de fantasiar de cara limpa. (Os
grifos são desta resenha.)
Sendo tão fácil comparar a história
de Harry a de Cristo, que também foi perseguido por um tirano capaz de causar a
morte de crianças, é de estarrecer que o prefiram tachar como porta de entrada
para o mundo da bruxaria a entender a sua história. A mãe do herói se sacrifica
pelo filho, a quem caberá o dever moral de lutar em nome da comunidade, e não
apenas de sua felicidade ou bem-estar pessoal, o que lhe proporcionará o
derramamento do próprio sangue.
Há muitos temas “adultos”, como a
morte, que, por motivos biográficos, permeia a ficção de Rowling, cuja mãe faleceu
depois de sofrer os efeitos da esclerose múltipla. Quando não o acusam de
bruxaria, alegam que Harry mostra às crianças coisas horrendas, que podem
arrancar a preciosa flor de sua inocência, das quais a morte, segundo os que o
condenam, pode ser a pior: “A morte, não o sexo, é agora o tabu que violamos —
a ‘pornografia da morte’ causa-nos excitação” (José Luíz de Sousa Maranhão, O que é morte, pág. 10, citado por Maria
L. de A. Aranha e Maria H. P. Martins, em Filosofando:
Introdução à Filosofia, pág. 370.) “Escondemos a morte das crianças: esse não é
mais um tema de conversa entre pais e filhos, elas não mais participam de
velórios e funerais, evitamos que assistam a filmes ou ouçam histórias que
trazem a ideia de morte à tona” (Rosely Sayão, Bruxas, monstros e morte, no blog da autora[3]). Mais
um motivo para respeitar Harry e sua autora: ela abordou um tema tabu e abalou
a visão do senso comum, efeitos típicos da boa literatura.
Com relação também à forma (e não
apenas ao conteúdo), Harry Potter é
visto como subliteratura ou fancaria literária por fazer muito sucesso
comercial, como se fosse um produto de segunda categoria cujo único mérito é
engrandecer o capital. Nada mais falso. Quem isso diz não leu os livros,
repletos de mistérios, intrigas, alusões aos preconceitos racial e social
(trouxas e bruxos, Dursleys e Malfoys) e temas políticos do Ministério da Magia
somados aos seres fantásticos, lugares incríveis e personagens
verossimilhantes, que apreciam e depreciam letras de canções, livros didáticos,
avisos, panfletos, notícias, reportagens, cartas sociais e diálogos entre
inferiores e superiores hierárquicos. Com tanta riqueza de gêneros textuais e
polifonia, as más línguas poderiam ser menos preguiçosas e ignorantes; assim,
leriam e poderiam emitir conceitos a respeito da obra, vista por Harold Bloom [4] e
Ruth Rocha[5] como
mais um modismo midiático, e não como literatura. Curiosamente, os
profissionais de Letras e a Ecdótica fazem o que se faz desde o Realismo, no
tempo de Flaubert[6]:
encarar a prosa de ficção como um produto (e a palavra aqui não é usada por
acaso; uma pequena análise de discurso de linha francesa confirma o que subjaz
a ela), e quando uma autora alcança o reconhecimento e muito dinheiro com seu
trabalho, e não propriamente com a inspiração, o produto não é bem visto por
todos os acadêmicos, nem pelos acadêmicos brasileiros, que se curvam às
imposições do Banco Mundial. Como é isso?
Seriam C. S. Lewis, Lewis Carroll (pseudônimo de Charles Lutwidge
Dodgson), Monteiro Lobato e Pedro Bandeira produtores de subliteratura infantil
ou mesmo de fancaria literária infantil? (o que seria sinalizado com o sucesso
comercial). Ou seriam modismos de suas respectivas épocas? E o que dizer dos
contos infantis reunidos na Europa durante o Romantismo, vendidos até hoje? Se
o sucesso comercial e o “modismo” são indícios ou provas de má literatura,
infantil ou não, então José Saramago produziu a pior espécie de texto
literário.
Há quem levante a hipótese de que
redatores-fantasmas (ghost-writers)
tenham produzido os livros de Harry
Potter, como supostamente acontece com outros best sellers. Isso, porém, é mentira: A Crítica Textual pode
confirmar que Rowling trabalhou de 1990 a 2007 para ser lida, como todo
indivíduo escritor, e não para ganhar dinheiro. Chegou a reescrever o primeiro
livro dez vezes antes da publicação, e já foi até exposto um rascunho. Além
disso, o redator-fantasma é um profissional que trabalha com textos não
literários, e não é reconhecido nunca pelo público leitor. Quando se trata de
prosa de ficção em forma de conto ou romance, o autor assume o trabalho, mesmo
que seja apenas um adaptador, como no caso de Alan Dean Foster, que fez uma
adaptação literária em prosa com base no roteiro de Star Wars, em 1976. Não se redige um romance (redigir nem sempre é
sinônimo de escrever): ele é escrito com arte, e com efeito: o redator-fantasma
só produz texto não-literário. Essa é uma diferença que se baseia num
conhecimento básico.
Não há dúvidas de que Rowling marcou
para sempre a literatura e o mundo editorial. Marcou ainda mais o enorme
público, que ela cativou. E aí reside a mais poderosa magia de Harry Potter:
ele fez uma geração gostar de ler. No Brasil, país de milhões de analfabetos,
isso é motivo para estrelas cadentes.
[1] Licenciado em Letras (Português
e Literaturas) pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Estudos
Literários pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor efetivo de
uma rede pública de ensino.
[2] Entrevista disponível em:
http://omelete.uol.com.br/games/entrevista/omelete-entrevista-lia-wyler-a-tradutora-de-harry-potter/#.UiR4D9I3uHc.
[5] Consultar: http://on.ig.com.br/palavra/2015-04-27/ruth-rocha-comemora-50-anos-de-carreira-harry-potter-nao-e-literatura.html.
[6] Consultar:
https://www.youtube.com/watch?v=NC3_e-Acvpk.