segunda-feira, 26 de agosto de 2019

RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E POLÍTICA



    “... não há necessidade alguma de trazer a política para o âmbito da teoria literária: como acontece com o esporte sul-africano, elas estão juntas há muito tempo.”  (Terry Eagleton.)[1]

“O discurso é [...] um processo, relacionado com o extralinguístico, isto é, com as práticas não linguísticas que possibilitam a emergência de uma prática linguística.” (Muniz Sodré.) [2]

É real uma das funções da literatura: provocar o leitor de modo a causar um estranhamento (ou causar um estranhamento de modo a provocar quem lê o texto literário).  Trata-se de um conceito dos formalistas russos.  Ele, o estranhamento, é um efeito que se produz quando o leitor é tirado do lugar-comum ou da zona de conforto e encara o conteúdo do texto literário como se pela primeira vez estivesse entrando em contato com seu teor.
Até onde sei, o fenômeno que postulavam os formalistas exige uma condição: a literaturidade, que é o tratamento especial dispensado à língua, ou seja: o uso especial do idioma. 
O que me espanta é que, embora parte dos formalistas russos estivesse envolvida com o movimento bolchevista, é possível dizer que eles considerariam o stalinismo um “mero” pretexto para a alegoria de A revolução dos bichos (romance que é de 1945 e, portanto, posterior à Revolução Russa), como se o momento histórico fosse um fator secundário na produção de um romance ou de um poema.  Mas os fatos históricos não ficam em segundo plano: eles condicionam a literatura, cuja estrutura é moldada pela realidade do autor, e é justamente por isso que precisamos estudar elementos externos ao discurso literário. 
Para o alemão Walter Benjamin (1892-1940), ou para o restante da Escola de Frankfurt (que infelizmente não tem as ideias tão divulgadas quanto as da Escola de Chicago), o fascismo estetizava a política (como acontece na recente película que faz lavagem cerebral em quase todos), enquanto aos artistas de esquerda cabia a tarefa de politizar a estética.  E foi isso o que fizeram alguns autores brasileiros revolucionários (apesar de que nem todos eram de esquerda), como Gregório de Matos (1633-1696), conhecido como Boca do Inferno por suas críticas ferinas e reveladoras de uma visão aristocrática e antiburguesa, Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810?), a quem se atribui a autoria das Cartas Chilenas, e Jorge Amado (1912-2001), que escreveu Capitães da Areia (1937).
            Curiosamente, é possível que só esses autores tenham sido estigmatizados pela alcunha de autores panfletários.  No caso específico de Jorge Amado, cuja obra é dividida em fases das quais uma é panfletária (o que pressupõe um estágio de sua produção que não o seja), foi usada a alcunha de autor de literatura engajada ou literatura proletária.  No que diz respeito às Cartas, é interessante notar a definição que a elas confere o português Jaime Séguier (1860-1932), definição transcrita por Diógenes Magalhães no livro Língua, Linguagem, Linguística... (1995, p. 140). De acordo com Séguier, elas são um panfleto em verso solto, feito contra o governador de Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses (1786), por Alvarenga Peixoto (e não por Gonzaga, o que configura um possível caráter apócrifo, isto é: um caráter típico de textos cujo autor é desconhecido ou indeterminado). Observe-se que o substantivo panfleto acaba fazendo as vezes de adjetivo, posto que pode ser uma forma de depreciar o discurso literário. Além disso, as Cartas, mesmo sendo enquadradas no estilo de época neoclassicista, e não no barroco, ao qual se atribuíam a extravagância e o mau gosto no período neoclássico, não escapam do preconceito contra as alegorias políticas, o que indica a força do formalismo russo e sugere a existência de um teimoso princípio segundo o qual a estética deve ser desvinculada da política e da história, tarefa descabida impossível.
            Por outro lado, Érico Verissimo, em Breve História da Literatura Brasileira (1996, p. 29), aponta o fato de terem existido escritores que prostituíram a literatura vendendo suas penas ao diabo em troca de favores. Assim, promoveram o fascismo, o racismo e muitos outros ismos.  No caso do Brasil, no grupo de literatos que se vendiam escrevendo unicamente para bajular pessoas do governo Verissimo inclui o autor do poema Prosopopeia (1601), de Bento Teixeira (1561-1618?). Trata-se de um escrito que, no dizer de Érico Verissimo, pautado por um juízo de valor, é imitação barata de Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões (1524-1580), e foi feito em homenagem a Jorge de Albuquerque Coelho, terceiro donatário da capitania de Pernambuco. (O que Verissimo pode não ter considerado é o fato de Bento Teixeira ter sido um cristão novo, ou seja: um judeu que, como tal, precisou se proteger da Inquisição.)
            Contudo, é preciso entender que, se é verdade que não se pode fazer uma leitura puramente política ou historicista de um texto literário, é igualmente verdade que não se pode fazer uma leitura puramente estética. Não se trata de saber qual tipo de leitura deve ser adotado, mas sim de perceber qual história e quais valores políticos são tidos como “pura” estética e quais são “panfletários” enquanto outros “não” o são, pois política toda literatura é tanto quanto qualquer teoria literária. Se literatura e história andam juntas, fato que não se nega, por que se diminui a literatura “panfletária”? Segundo o professor André Alonso, mesmo Aristófanes, em suas peças, satirizava os filósofos não por condenar-lhes as práticas, mas sim por necessitar fazer o público rir. Para produzir esse efeito, ele tornava ridículos os filósofos, que o seu público confundia com os sofistas por não saber as diferenças entre estes e aqueles. A sátira, contudo, estava na produção intencional de sentido, e era dirigida aos sofistas. Isso é ou não uma atitude política
Ainda se fala em panfleto e subsídios históricos na abordagem da literatura em sala de aula sem que se perceba que, com a possível exclusão de Bento Teixeira, podemos dizer que só os autores que destoam do poder ou do senso comum são vistos como “panfletários”, ao passo que as obras menos explícitas são “apenas estéticas”, como se a instituição conhecida como Literatura não estivesse calcada em relações de poder. Deve ter sido por causa de tais relações que A revolução dos bichos (1945), romance-fábula de George Orwell (1903-1950), foi aproveitado como propaganda anticomunista, propaganda baseada em interpretações deliberadamente reducionistas, propositalmente limitadas, embora nunca tenha existido comunismo, estágio avançado do socialismo que nunca ninguém alcançou. No romance de Orwell, é possível encarar o animalismo e os dois porcos, Napoleão e Bola de Neve, como sendo representações alegóricas do fracasso dos sistemas políticos e da traição, caso em que são alegorias do universal, mas é possível também atribuir às personagens e ao animalismo um sentido contextual e específico segundo o qual são alegorias de Stálin, Trotsky do desvio do socialismo, transformado em totalitarismo stalinista.
Entretanto, isso só é possível quando saímos do lugar-comum e encaramos o texto a partir do contexto, colocado em segundo plano ou distorcido por certas visões da História. Daí a importância do estranhamento, do olhar, da contemplação.
Diante do exposto, fica claro que, em tempos de crise política e censuras a exposições de obras de arte, a literatura “panfletária” precisa erguer a voz contra o Estado de exceção para realizar o efeito almejado pela Escola de Frankfurt: politizar a arte. Se o contexto condiciona o texto literário, este pode retroagir sobre a realidade de que se serve e o condiciona, temor constante entre as autoridades que ainda reproduzem a opressão imposta a Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga e Jorge Amado, tributários que são do seu tempo e dos fatos políticos.

Márcio Alessandro de Oliveira. Santa Lúcia, bairro de Imbariê, 3º Distrito de Duque de Caxias, 15/10/2017. 


[1] Teoria da literatura: uma introdução.  Trad. Waltensir Dutra.  São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 294.
[2] Teoria da Literatura de Massa.  Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 45.