quinta-feira, 1 de março de 2018

UM NOVA LITANIA DOS POBRES

          (Às moradoras e aos moradores da Vila Getúlio Cabral e também às pessoas das outras partes de Santa Lúcia e do distrito de Imbariê.)


“Faço parte de um exército de mortos-vivos, de homens que já morreram, conquanto não tenham sido enterrados.”
(Diógenes Magalhães, 1986, p. 146.)[1]

“Se é que há esperança, escreveu Winston, a esperança está nos proletas.” 
(George Orwell, 2009, p. 88.)[2]

“Ó Pobres de ocultas chagas
Lá das longínquas plagas!

Parece que em vós há sonho
E o vosso bando é risonho.”
(Cruz e Sousa, 1975, p. 62.)[3]

            Ergue-se à minha frente uma serpente de metal no meio de uma floresta de bestas-feras vindas de fora, uma floresta de muros e muretas e chão coberto de poeira, de pó, o pó ao qual se retorna com a regularidade do sol.  Seu veneno, cuspido, torna-se um bando de flechas de fogo, que rasgam o ar.  O ar queima a pele, e o cheiro do sol ofusca.  Na rua, vê-se o trem, anunciado pelo guincho dos trilhos, trilhar o caminho qual minhoca sobre a terra.  Nele, impera a bala no crânio do vendedor que vê do vagão de porta aberta a vala em que foi jogada uma mulher, a qual, morta, desvelada e putrefata jaz. 
            Comanda a serpente um monstro que esmaga com grandes botinas, mais pesadas que um elmo gigante.  Não estão à vista, mas tem troféus banhados de sangue e da luz da mesma cor do sangue que gira em torno do poder de apagar os faróis das vozes dos que não têm voz, que, soturnos, foram silenciados por Saturno, guia de um deus mercador anunciado por diabólicos tucanos carnívoros do céu alaranjado com tons de roxo.  O deus mercador conta com pastores, insensíveis aos gritos dos chumaços de lã ensanguentada espalhados pelo chão, sob o qual, em camadas geológicas, não se branqueiam os crânios de cabeças decepadas debaixo do sol.
            Uma lente maldita projeta a própria voz e exibe a cena sem a voz dos iguais das vítimas.  É uma voz metálica e magnética, que tudo explica, desde que tudo seja apenas uma rala e rasa superfície do rasteiro voo rasante de uma mosca-varejeira à procura do lixo e da carne morta e podre de um porco, pobre vítima do bicho gente.
            Ah, mas não engulo a máscara da lente.  Há uma cura para esse veneno, o veneno nas veias que circula nas esquinas e nos centros de lavagem.  Uma cura vinda de dentro, e não de fora.  As almas dos que se foram são estrelas, com as quais converso.  Não são apenas fumaças em forma de crânio: são vapores etéreos que ascendem aos céus, à atmosfera.  Seu grito sufocado é mais intenso e resplandecente sob a lua de sangue em escorpião, e é mais vivo que as vozes dos mortos-vivos que me rodeiam.  Se sonham, que se ergam contra o vampiro que lhes suga o sangue, a alma, a vida. 

(Márcio Alessandro de Oliveira.  Imbariê, distrito em que se encontra o local de nascimento do patrono do Exército Brasileiro, 1º/3/2018.)





[1] MAGALHÃES, Diógenes. 19 — O menor mal de todos é a morte. In: ______. Acuso!. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1986.

[2] ORWEL, George.  1984.  Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn.  São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 

[3] SOUSA, João da Cruz e.  “Litania dos Pobres”.  In: Tasso da Silveira (org.).  Poesia (antologia).  5. ed.  Rio de Janeiro: Agir, 1975.