(Às moradoras e aos moradores da Vila Getúlio Cabral e também às pessoas das outras partes de Santa Lúcia e do distrito de Imbariê.)
“Faço parte de um exército de mortos-vivos, de homens que já morreram, conquanto não tenham sido enterrados.”
(Diógenes Magalhães, 1986, p.
146.)[1]
“Se
é que há esperança,
escreveu Winston, a esperança está nos
proletas.”
(George Orwell, 2009, p. 88.)[2]
“Ó
Pobres de ocultas chagas
Lá
das longínquas plagas!
Parece
que em vós há sonho
E
o vosso bando é risonho.”
(Cruz e Sousa, 1975, p. 62.)[3]
Ergue-se
à minha frente uma serpente de metal no meio de uma floresta de bestas-feras vindas
de fora, uma floresta de muros e muretas e chão coberto de poeira, de pó, o pó
ao qual se retorna com a regularidade do sol.
Seu veneno, cuspido, torna-se um bando de flechas de fogo, que rasgam o
ar. O ar queima a pele, e o cheiro do
sol ofusca. Na rua, vê-se o trem, anunciado
pelo guincho dos trilhos, trilhar o caminho qual minhoca sobre a terra. Nele, impera a bala no crânio do vendedor que
vê do vagão de porta aberta a vala em que foi jogada uma mulher, a qual, morta,
desvelada e putrefata jaz.
Comanda
a serpente um monstro que esmaga com grandes botinas, mais pesadas que um elmo
gigante. Não estão à vista, mas tem
troféus banhados de sangue e da luz da mesma cor do sangue que gira em torno do
poder de apagar os faróis das vozes dos que não têm voz, que, soturnos, foram silenciados
por Saturno, guia de um deus mercador anunciado por diabólicos tucanos
carnívoros do céu alaranjado com tons de roxo.
O deus mercador conta com pastores, insensíveis aos gritos dos chumaços
de lã ensanguentada espalhados pelo chão, sob o qual, em camadas geológicas,
não se branqueiam os crânios de cabeças decepadas debaixo do sol.
Uma
lente maldita projeta a própria voz e exibe a cena sem a voz dos iguais das
vítimas. É uma voz metálica e magnética,
que tudo explica, desde que tudo seja apenas uma rala e rasa superfície do rasteiro
voo rasante de uma mosca-varejeira à procura do lixo e da carne morta e podre
de um porco, pobre vítima do bicho gente.
Ah,
mas não engulo a máscara da lente. Há
uma cura para esse veneno, o veneno nas veias que circula nas esquinas e nos
centros de lavagem. Uma cura vinda de
dentro, e não de fora. As almas dos que
se foram são estrelas, com as quais converso.
Não são apenas fumaças em forma de crânio: são vapores etéreos que
ascendem aos céus, à atmosfera. Seu
grito sufocado é mais intenso e resplandecente sob a lua de sangue em escorpião,
e é mais vivo que as vozes dos mortos-vivos que me rodeiam. Se sonham, que se ergam contra o vampiro que lhes
suga o sangue, a alma, a vida.
(Márcio Alessandro de Oliveira. Imbariê, distrito em que se encontra o local
de nascimento do patrono do Exército Brasileiro, 1º/3/2018.)
[1] MAGALHÃES, Diógenes. 19 — O
menor mal de todos é a morte. In: ______. Acuso!.
2. ed. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1986.
[2] ORWEL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[3] SOUSA, João da Cruz e. “Litania dos Pobres”. In: Tasso da Silveira (org.). Poesia
(antologia). 5. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1975.