Prezado
professor Aristóteles:
Como está? Espero que bem.
Li sua crítica aos ditos de Jessé
Souza, que, se não me falha a memória, foi feita em 2017. Substância, porém, não contém nenhuma, pois que ele está corretíssimo,
ao passo que o senhor está errado.
Um currículo voltado para as classes
populares, defendido pelo senhor, já existe: é o que forma mão de obra barata
não para o mundo do trabalho, mas para o mercado, a parte mais mesquinha de tal
mundo. Ninguém fez tal currículo com elas, mas para elas. Em verdade, seria tolice
construir um currículo com elas, porque ele está dentro de um campo de
conhecimento técnico-científico; portanto, leigos não devem dar palpite.
Se o senhor acredita que fazer um
currículo que contemple as classes espoliadas é o caminho para resolver as
mazelas da escola pública, saiba que está enganado. Vejamos:
O senhor tem filhos? Se sim,
matriculou-os em escola pública ou particular? Quero que responda a essa
pergunta: ela diz respeito à diferença entre o currículo das classes populares
e o de certas escolas particulares. Posso reformular minha pergunta: O senhor
contribui para a acentuação da escola dualista? Sabe-se que uma escola forma mão
de obra barata, enquanto a outra (a particular) prepara o aluno para funções do
mercado, cargos ou empregos públicos. Estes, é claro, são necessários ao trabalho
das classes dirigentes.
É muita ingenuidade tentar
transferir para o currículo a função de melhorar a educação, quando ela é
condicionada pelos efeitos do neoliberalismo econômico, pelas avaliações
externas, pela herança do tecnicismo e pela presença de comunidades eivadas de
senso comum e crenças de fundamentalistas religiosos e anti-iluministas. (Até
onde sei, ou até onde penso saber, a união da escola à comunidade é bem do
gosto dos calvinistas e, portanto, do estilo de vida estadunidense, o american way of life.) Curiosamente, a
pedagogia moderna, Paulo Freire (autor de uma dissertação[1]
que apresentou a uma banca para assumir uma cátedra numa universidade pública)
e teóricos e “especialistas” que fazem as vezes de intelectual orgânico (mais
conhecido como formador de opinião) consideram extremamente aceitável e
desejável as circunstâncias em que professores da escola pública assumem a
linha de frente diante de quaisquer alunos. Estes podem carregar armas ou não,
e se o professor se queixar disso, a pedagogia moderna, com seu poder religioso
de ciência, culpará o professor e dirá que ele escolheu a profissão, que deve
agir com amor, que está sendo contra a inclusão, etc. O amontoado de bobagens
que sai das consciências ingênuas ganha o status
de ditos científicos, embora não passem de disparates ditos por quem nunca
lecionou no chão da sala de aula da educação básica da escola pública
brasileira hipermoderna. Um currículo para as classes populares, integração com
a comunidade, apoio da sagrada família, ingerências de pais e mães (estas últimas Paulo Freire defende na supracitada dissertação), tudo isso é do gosto do Banco
Mundial, que acha que a escola pública deve combater a pobreza. Trata-se de um
uso do otimismo pedagógico, conceito de Jorge Nagle. No entanto, é falso tal
otimismo, porque a escola, sozinha, não vai melhorar a sociedade. Ela é um aparelho
ideológico de Estado. Uma vez que o Estado está nas mãos do mercado neoliberal,
ela é um aparelho ideológico de mercado.
Com efeito: ao contrário do que diz
Paulo Freire, a escola só poderá ser democrática e inclusiva quando os integrantes
da infraestrutura, de que fala Marx, melhorarem: Quando os alunos espoliados
deixarem de ser espoliados, poderão ter os conteúdos atitudinais (uso do
uniforme, respeito aos horários, conservação do patrimônio público da escola).
Para que não sejam mais espoliados, o Estado-Nação, dentro dos preceitos da
Social Democracia e do Estado do Bem-Estar Social, deverá fazer as intervenções
urgentes para que haja moradias dignas, distribuição de água, energia e gás,
bons prédios para cinemas e bons prédios para bibliotecas públicas. Deverá
haver controle de natalidade, e os centros de assistência social devem fazer a
parte deles e, assim, deixar a escola livre de funções que a ela não cabem.
Em sua infundada crítica a Jessé Souza,
o senhor menciona um currículo voltado para os pobres, mas Saviani diz que é
necessário fazer uma ponte entre os saberes prévios dos alunos e os
conhecimentos eruditos e científicos. Não encontrei na sua crítica, professor
Aristóteles, um modo de fazer tal ponte. E como poderia? A menos que eu esteja
muito enganado, o senhor nunca lecionou no chão da sala de aula do ensino
básico. Se é verdade isso, então está desprovido de empiria, e, portanto, está
tomando o local de fala que é meu e também de meus pares. E não aceito o
argumento de que o senhor forma quem vai trabalhar nos ensinos fundamental e
médio, porquanto qualquer bacharel possa lecionar num curso de licenciatura sem
nunca ter trabalhado primeiro como professor do ensino básico.
Mas, afinal, de que currículo estaria o
senhor falando naquela crítica a Jessé Souza? Estaria falando do currículo
oficial nos níveis macro (BNCC e PCNs), meso (diretrizes da coordenação e da
direção de qualquer escola) e micro (planos de ensino individuais)? Estaria
falando do currículo nulo? (formado por matérias que o professor nem sempre
domina ou não domina muito bem e estuda nas horas de planejamento). Ou estaria
falando do currículo oculto? Vou ensinar ao senhor como é este último na escola
pública, inserida que é no contexto da massificação, das verbas, dos rankings e
do neoliberalismo econômico:
Sabemos que, por definição, o currículo
oculto é o conjunto das práticas da escola, mas não são encaixadas no conceito
de currículo, não explicitamente. Um exemplo é o ensino religioso, que pode
muito bem resgatar o ensino de moral e cívica e o de OSPB. Mas o currículo
oculto mais marcante é aquele segundo o qual o aluno, por influência do escolanovismo,
é, em consonância com o individualismo (o eixo mor da moral burguesa), o centro
principal do trabalho docente. Nesse currículo oculto, ele é o protagonista,
uma vaca sagrada a ser defendida, e quanto mais vacas superlotarem as salas,
mais sucesso terá o sistema. No mesmíssimo currículo oculto, ele sempre tem
razão, não tem obrigações e deve ser atendido em suas necessidades. (É esse
currículo que está na Finlândia e na Suécia. A pandemia já provou que a Suécia
é burra, e Inger Enkvist tem denunciado os abusos e as abusões da pedagogia
moderna na Suécia.) Esse currículo oculto, que, obviamente, não é visto como
currículo, já que, do contrário, deixaria de cumprir sua silenciosa função
ideológica, é o que dá força para que alunos sigam o exemplo de Isadora Faber,
moça que não é gabaritada para falar de educação pública, e que no entanto já
deu palestras com a imagem de heroína e justiceira, muito embora tenha causado
a demissão de um professor de Matemática, o qual, graças ao neoliberalismo
econômico, não era servidor efetivo, mas sim temporário. Um currículo oculto
que empodera o aluno, que dá a ele o direito de reproduzir o poder e agir como
agem as crianças do romance 1984, de
George Orwell, que deduram os pais que discordam do grande irmão (o
crimepensamento), é o currículo oculto que está sendo posto em prática nas escolas
com a regularidade do sol. No caso do professor de Matemática e das mazelas da
escola de Isadora Faber, a culpa era dos próprios alunos, que não tinham os conteúdos
atitudinais. Quem danificava as portas? Quem se comportava mal durante a aula?
O pior é que a esmagadora maioria dos postulados da pedagogia, cujos
pressupostos “científicos” ela nunca questiona, sempre (sempre!) favorecem o
aluno. E todos podem falar de educação escolar com status de intelectual e propriedade, menos o professor, o homo faber, o peão do ensino
subproletarizado.
A propósito: existe um currículo oculto
segundo o qual o professor do ensino básico é só um peão, e por isso não pode
falar de educação como especialista. A maioria das pesquisas é feita por
acadêmicos desprovidos de empiria cujo único fim é enriquecer o Lattes. E sofre
crítica, quer seja explícita, quer seja velada, todo professor ou toda
professora da educação básica que queira falar com propriedade, porque muitos
professores universitários acham que só eles podem pensar, falar e escrever
sobre temas a respeito dos quais deveriam discorrer os professores e as
professoras do ensino básico.
Um currículo oficial que contemplasse,
por exemplo, a união homoafetiva, seria muito bem-vindo, mas existe um currículo
oculto que censura aquele. É que pais e mães evangélicos podem muito bem ameaçar o
professor progressista. E não poderia ser diferente: sem moradias decentes, sem
distribuição de energia, sem gás e com moedas contadas para o arroz, a miséria
permite que se criem pais e mães aptos a colocar contra a parede o professor
progressista, que obviamente não tem colete à prova de balas. Se for temporário
ou professor de escola particular, será demitido. Que o diga Isadora Faber. (A
propósito, professor Aristóteles: em suas aulas, o senhor tem proposto caminhos
de luta cuja causa seja o aumento dos concursos públicos para o provimento de
cargos efetivos dos magistérios municipais, estaduais e federais? Tem proposto
modos de diminuir os danosos efeitos da mais-valia na vida dos professores? Que
tem feito o senhor pelas condições de trabalho do professor do ensino básico?
Tem lutado contra o neoliberalismo econômico? Ele é discutido em suas aulas?)
Como eu disse, é preciso melhor a infraestrutura, porque não há dialética nem
dialógica que deem conta de tanta miséria, e currículo oficial nenhum vai fazer
milagre. Todas as mudanças curriculares são feitas de cima para baixo; pelo
menos eu não me lembro de terem consultado os professores da educação básica.
Vejo com muita tristeza a sua e outras
críticas a Jessé Souza, um intelectual de esquerda, claramente progressista, um
intelectual que denunciou o papel ideológico das vacas sagradas da academia e
que trabalha com o que é possível e também factível: uma social democracia
igual à da Europa; por isso deveria ser elogiado de pé; em verdade, o Brasil
deveria sentir muito orgulho por ter um intelectual do peso dele. Deveria ele
ser elogiado por todas as correntes de esquerda; isso, porém, está muito longe
da realidade.
Jessé
Souza pode nunca ter dado aula no ensino básico, mas o que diz ele condiz
exatamente com a minha realidade. Não por acaso ele se baseia em Pierre
Bourdieu, um dos que estão no grupo dos teóricos crítico-reprodutivistas. Sou
muito grato a Jessé Souza, porque foi ele que me ensinou que a ciência tem o
papel de capitão do mato; a diferença está em que ela não age com violência
física: ela usa seu prestígio para convencer as vítimas de que devem aceitar o
que dita o mercado. A pedagogia moderna faz a mesma coisa: diz que o professor
deve acatar o que ela diz. Mas a verdadeira ciência é a que questiona os
próprios pressupostos teóricos e evolui. Nos últimos cem anos, continuamos
presos a um paradigma que desqualifica o professor e o culpabiliza. Refiro-me
ao escolanovismo, que de novo não tem nada e fede a mofo e cinzas de cadáver.
Por fim, deixo claro que não cabe ao
senhor dizer como deve ser o meu currículo: nos meus planos de curso mando eu.
Para o Sr. Luckesi, por exemplo,
o método pode
ser entendido dentro de uma concepção teórica ou de uma compreensão técnica. O
autor compreende Metodologia como a concepção segundo a qual a realidade é
abordada. Esta é uma concepção teórica do método. Porém, afirma que há uma
compreensão técnica do método que também atravessa o conteúdo, visto que "são
modos técnicos de agir que estão dentro do conteúdo que se ensina" (p. 138).
Exemplo: o modo de extrair raiz quadrada (Matemática) ou o modo de proceder
numa análise sintática (Língua Portuguesa). Tanto uma quanto a outra perpassam
os conteúdos tratados nas diferentes disciplinas curriculares (GRUMBACH e
SANTOS, 2012, p. 33).
Com
efeito: “Todo conhecimento é atravessado por uma metodologia e é possível
descobrir no próprio conteúdo exposto o método com o qual ele foi construído”
(LUCKESI, 1995, p. 138 apud GRUMBACH
e SANTOS, 2012, p. 34).
Se fosse mesmo verdade que toda pedagoga
está apta para avaliar quem é mais instruído do que ela, o tecnicismo,
tendência pedagógica reconhecida pela Lei 5.622, de 1971, no tempo do regime
implementado pelo golpe militar, não seria necessário elaborar para ela um
plano de aula com cabeçalho e objetivos. O ofício burocrático e irracional de
explicitar procedimentos de ensino que ela não domina já é em si uma prova de
que as pedagogas não dominam o conhecimento, porém querem dar carteirada mesmo
assim. Com isso apenas revelam a ignorância maciça. E sabem o que é mais
curioso? O modelo de plano de aula tecnicista é inspirado pela Psicologia
behaviorista, de Skinner. Pergunto: ele era bacharel ou licenciado?
Se é verdade que todo conteúdo é
condicionado, permeado e atravessado por uma metodologia, então toda
metodologia também é atravessada por um conteúdo de uma disciplina específica,
o que quer dizer que a pedagoga, que está abaixo de Luckesi, só pode dominar os
procedimentos de ensino do professor quando ela é formada ou versada na
disciplina que ele leciona, hipótese em que ela teria duas graduações. Isso
quer dizer que é um despautério o que aconteceu na rede estadual de ensino do
Paraná: Segundo notícia veiculada em 6 de outubro de 2019 pelo site Plural, pedagogas estariam vigiando
professores em sala de aula. Em tempos de Escola sem Partido (projeto infame
que só não é pior do que o currículo oculto), pedagogas evangélicas e
disseminação dos dizeres de Olavo de Carvalho, isso só pode soar como forma de
desrespeitar a liberdade de cátedra do professor, garantida por lei, a letra
morta.
Uma coisa é certa: domino os conteúdos,
logo, domino os procedimentos de ensino e pesquisa.
Garanto que minha didática é mais tradicional
e conteudística, dois atributos incondicionalmente odiados pela pedagogia moderna,
que de científica não tem nada e de mercadológica tem tudo. Quero um ensino
mais clássico e livresco, e não a porcaria hipermoderna, mercadológica e
neoliberal que só é possível quando um setor específico da superestrutura (para
citar Marx) permite. Tal setor são os departamentos de educação das
universidades públicas, que tanto se queixam da expansão das universidades
particulares, mas continuam formando mestres e doutores para tais organizações
privadas de ensino superior.
Sinceramente,
Márcio Alessandro de Oliveira, formado
num curso EaD de licenciatura em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre
em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de uma rede pública.
Guarapari, ES, 1º de junho de 2020.
Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/0328708771235302
Referências:
FLORENTINO,
Adilson; MARTINS, Angela M. Souza; CARINO, Jonaedson; SÁ, Marcia Souto Maior
Mourão; SILVA, Marco; THOMAZ, Sueli Barbosa; WILKE, Valéria. Fundamentos da Educação I. Rio de
Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.
FONSECA,
Sérgio César da. Educação e atualidade brasileira: Paulo Freire e a aproximação com as ideias de Anísio Teixeira.
MARTINS,
Angela M. Souza; SILVEIRA, Claudio; ARAUJO, Helena; CARINO, Jonaedson; THOMAZ,
Sueli Barbosa. Fundamentos da Educação II
(v.1). 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.
“Professores
acusam governo de usar pedagogos para vigiá-los em sala de aula”. 6. Out. 2019.
In: Site Plural. Disponível em:
<https://www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/professores-acusam-governo-de-usar-pedagogos-para-vigia-los-em-sala-de-aula/>.
Acesso em: 6. Abr. 2020.
SANTOS,
Ana Lúcia Cardoso; GRUMBACH, Gilda Maria. Didática
para Licenciatura: Subsídios para a Prática de Ensino (v. 1 e v. 2). 2. ed
e 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2012.
[1] Na supracitada dissertação, intitulada
Educação e atualidade brasileira, de
1959, Paulo Freire afirma o seguinte (é meu o destaque): “Cada vez mais nos convencíamos
ontem e nos convencemos hoje, de que o homem brasileiro tem de ganhar a
consciência de sua responsabilidade social e política, existindo essa responsabilidade.
Vivendo essa responsabilidade. Participando. Atuando. Ganhando cada vez mais ingerência nos destinos da escola de seu
filho. Nos destinos de seu sindicato. De sua empresa, através de
agremiações, de clubes, de conselhos. Ganhar ingerência na vida de seu bairro.
Na vida de sua comunidade rural, pela participação atuante em associações, em
clubes, em sociedades beneficentes. Assim, não há dúvida, iria o homem
brasileiro aprendendo democracia rapidamente” (FREIRE, 1959, p. 13 apud FONSECA, s. d., p. 4). Não poderia
ele estar mais enganado. Um exercício de diacronia e sincronia aliado à Análise
de Discurso de linha francesa pode facilmente comprovar que ele, que era
bacharel em Direito, e não em Pedagogia, errou feio. O homem a quem ele se
refere é enganado pelos intelectuais orgânicos (que são de direita), ou seja: é
convencido pelos formadores de opinião da imprensa e da igreja. Identifica-se
com as classes dominantes e gosta de exercer o pequeno poder que lhe dão.