segunda-feira, 1 de junho de 2020

Carta aberta ao professor Aristóteles Berino


            Prezado professor Aristóteles:

            Como está? Espero que bem.
            Li sua crítica aos ditos de Jessé Souza, que, se não me falha a memória, foi feita em 2017. Substância, porém, não contém nenhuma, pois que ele está corretíssimo, ao passo que o senhor está errado.
            Um currículo voltado para as classes populares, defendido pelo senhor, já existe: é o que forma mão de obra barata não para o mundo do trabalho, mas para o mercado, a parte mais mesquinha de tal mundo. Ninguém fez tal currículo com elas, mas para elas. Em verdade, seria tolice construir um currículo com elas, porque ele está dentro de um campo de conhecimento técnico-científico; portanto, leigos não devem dar palpite.
            Se o senhor acredita que fazer um currículo que contemple as classes espoliadas é o caminho para resolver as mazelas da escola pública, saiba que está enganado. Vejamos:
            O senhor tem filhos? Se sim, matriculou-os em escola pública ou particular? Quero que responda a essa pergunta: ela diz respeito à diferença entre o currículo das classes populares e o de certas escolas particulares. Posso reformular minha pergunta: O senhor contribui para a acentuação da escola dualista? Sabe-se que uma escola forma mão de obra barata, enquanto a outra (a particular) prepara o aluno para funções do mercado, cargos ou empregos públicos. Estes, é claro, são necessários ao trabalho das classes dirigentes.
            É muita ingenuidade tentar transferir para o currículo a função de melhorar a educação, quando ela é condicionada pelos efeitos do neoliberalismo econômico, pelas avaliações externas, pela herança do tecnicismo e pela presença de comunidades eivadas de senso comum e crenças de fundamentalistas religiosos e anti-iluministas. (Até onde sei, ou até onde penso saber, a união da escola à comunidade é bem do gosto dos calvinistas e, portanto, do estilo de vida estadunidense, o american way of life.) Curiosamente, a pedagogia moderna, Paulo Freire (autor de uma dissertação[1] que apresentou a uma banca para assumir uma cátedra numa universidade pública) e teóricos e “especialistas” que fazem as vezes de intelectual orgânico (mais conhecido como formador de opinião) consideram extremamente aceitável e desejável as circunstâncias em que professores da escola pública assumem a linha de frente diante de quaisquer alunos. Estes podem carregar armas ou não, e se o professor se queixar disso, a pedagogia moderna, com seu poder religioso de ciência, culpará o professor e dirá que ele escolheu a profissão, que deve agir com amor, que está sendo contra a inclusão, etc. O amontoado de bobagens que sai das consciências ingênuas ganha o status de ditos científicos, embora não passem de disparates ditos por quem nunca lecionou no chão da sala de aula da educação básica da escola pública brasileira hipermoderna. Um currículo para as classes populares, integração com a comunidade, apoio da sagrada família, ingerências de pais e mães (estas últimas Paulo Freire defende na supracitada dissertação), tudo isso é do gosto do Banco Mundial, que acha que a escola pública deve combater a pobreza. Trata-se de um uso do otimismo pedagógico, conceito de Jorge Nagle. No entanto, é falso tal otimismo, porque a escola, sozinha, não vai melhorar a sociedade. Ela é um aparelho ideológico de Estado. Uma vez que o Estado está nas mãos do mercado neoliberal, ela é um aparelho ideológico de mercado.
Com efeito: ao contrário do que diz Paulo Freire, a escola só poderá ser democrática e inclusiva quando os integrantes da infraestrutura, de que fala Marx, melhorarem: Quando os alunos espoliados deixarem de ser espoliados, poderão ter os conteúdos atitudinais (uso do uniforme, respeito aos horários, conservação do patrimônio público da escola). Para que não sejam mais espoliados, o Estado-Nação, dentro dos preceitos da Social Democracia e do Estado do Bem-Estar Social, deverá fazer as intervenções urgentes para que haja moradias dignas, distribuição de água, energia e gás, bons prédios para cinemas e bons prédios para bibliotecas públicas. Deverá haver controle de natalidade, e os centros de assistência social devem fazer a parte deles e, assim, deixar a escola livre de funções que a ela não cabem.
Em sua infundada crítica a Jessé Souza, o senhor menciona um currículo voltado para os pobres, mas Saviani diz que é necessário fazer uma ponte entre os saberes prévios dos alunos e os conhecimentos eruditos e científicos. Não encontrei na sua crítica, professor Aristóteles, um modo de fazer tal ponte. E como poderia? A menos que eu esteja muito enganado, o senhor nunca lecionou no chão da sala de aula do ensino básico. Se é verdade isso, então está desprovido de empiria, e, portanto, está tomando o local de fala que é meu e também de meus pares. E não aceito o argumento de que o senhor forma quem vai trabalhar nos ensinos fundamental e médio, porquanto qualquer bacharel possa lecionar num curso de licenciatura sem nunca ter trabalhado primeiro como professor do ensino básico.
Mas, afinal, de que currículo estaria o senhor falando naquela crítica a Jessé Souza? Estaria falando do currículo oficial nos níveis macro (BNCC e PCNs), meso (diretrizes da coordenação e da direção de qualquer escola) e micro (planos de ensino individuais)? Estaria falando do currículo nulo? (formado por matérias que o professor nem sempre domina ou não domina muito bem e estuda nas horas de planejamento). Ou estaria falando do currículo oculto? Vou ensinar ao senhor como é este último na escola pública, inserida que é no contexto da massificação, das verbas, dos rankings e do neoliberalismo econômico:
Sabemos que, por definição, o currículo oculto é o conjunto das práticas da escola, mas não são encaixadas no conceito de currículo, não explicitamente. Um exemplo é o ensino religioso, que pode muito bem resgatar o ensino de moral e cívica e o de OSPB. Mas o currículo oculto mais marcante é aquele segundo o qual o aluno, por influência do escolanovismo, é, em consonância com o individualismo (o eixo mor da moral burguesa), o centro principal do trabalho docente. Nesse currículo oculto, ele é o protagonista, uma vaca sagrada a ser defendida, e quanto mais vacas superlotarem as salas, mais sucesso terá o sistema. No mesmíssimo currículo oculto, ele sempre tem razão, não tem obrigações e deve ser atendido em suas necessidades. (É esse currículo que está na Finlândia e na Suécia. A pandemia já provou que a Suécia é burra, e Inger Enkvist tem denunciado os abusos e as abusões da pedagogia moderna na Suécia.) Esse currículo oculto, que, obviamente, não é visto como currículo, já que, do contrário, deixaria de cumprir sua silenciosa função ideológica, é o que dá força para que alunos sigam o exemplo de Isadora Faber, moça que não é gabaritada para falar de educação pública, e que no entanto já deu palestras com a imagem de heroína e justiceira, muito embora tenha causado a demissão de um professor de Matemática, o qual, graças ao neoliberalismo econômico, não era servidor efetivo, mas sim temporário. Um currículo oculto que empodera o aluno, que dá a ele o direito de reproduzir o poder e agir como agem as crianças do romance 1984, de George Orwell, que deduram os pais que discordam do grande irmão (o crimepensamento), é o currículo oculto que está sendo posto em prática nas escolas com a regularidade do sol. No caso do professor de Matemática e das mazelas da escola de Isadora Faber, a culpa era dos próprios alunos, que não tinham os conteúdos atitudinais. Quem danificava as portas? Quem se comportava mal durante a aula? O pior é que a esmagadora maioria dos postulados da pedagogia, cujos pressupostos “científicos” ela nunca questiona, sempre (sempre!) favorecem o aluno. E todos podem falar de educação escolar com status de intelectual e propriedade, menos o professor, o homo faber, o peão do ensino subproletarizado.
A propósito: existe um currículo oculto segundo o qual o professor do ensino básico é só um peão, e por isso não pode falar de educação como especialista. A maioria das pesquisas é feita por acadêmicos desprovidos de empiria cujo único fim é enriquecer o Lattes. E sofre crítica, quer seja explícita, quer seja velada, todo professor ou toda professora da educação básica que queira falar com propriedade, porque muitos professores universitários acham que só eles podem pensar, falar e escrever sobre temas a respeito dos quais deveriam discorrer os professores e as professoras do ensino básico.
Um currículo oficial que contemplasse, por exemplo, a união homoafetiva, seria muito bem-vindo, mas existe um currículo oculto que censura aquele. É que pais e mães evangélicos podem muito bem ameaçar o professor progressista. E não poderia ser diferente: sem moradias decentes, sem distribuição de energia, sem gás e com moedas contadas para o arroz, a miséria permite que se criem pais e mães aptos a colocar contra a parede o professor progressista, que obviamente não tem colete à prova de balas. Se for temporário ou professor de escola particular, será demitido. Que o diga Isadora Faber. (A propósito, professor Aristóteles: em suas aulas, o senhor tem proposto caminhos de luta cuja causa seja o aumento dos concursos públicos para o provimento de cargos efetivos dos magistérios municipais, estaduais e federais? Tem proposto modos de diminuir os danosos efeitos da mais-valia na vida dos professores? Que tem feito o senhor pelas condições de trabalho do professor do ensino básico? Tem lutado contra o neoliberalismo econômico? Ele é discutido em suas aulas?) Como eu disse, é preciso melhor a infraestrutura, porque não há dialética nem dialógica que deem conta de tanta miséria, e currículo oficial nenhum vai fazer milagre. Todas as mudanças curriculares são feitas de cima para baixo; pelo menos eu não me lembro de terem consultado os professores da educação básica.
Vejo com muita tristeza a sua e outras críticas a Jessé Souza, um intelectual de esquerda, claramente progressista, um intelectual que denunciou o papel ideológico das vacas sagradas da academia e que trabalha com o que é possível e também factível: uma social democracia igual à da Europa; por isso deveria ser elogiado de pé; em verdade, o Brasil deveria sentir muito orgulho por ter um intelectual do peso dele. Deveria ele ser elogiado por todas as correntes de esquerda; isso, porém, está muito longe da realidade. 
 Jessé Souza pode nunca ter dado aula no ensino básico, mas o que diz ele condiz exatamente com a minha realidade. Não por acaso ele se baseia em Pierre Bourdieu, um dos que estão no grupo dos teóricos crítico-reprodutivistas. Sou muito grato a Jessé Souza, porque foi ele que me ensinou que a ciência tem o papel de capitão do mato; a diferença está em que ela não age com violência física: ela usa seu prestígio para convencer as vítimas de que devem aceitar o que dita o mercado. A pedagogia moderna faz a mesma coisa: diz que o professor deve acatar o que ela diz. Mas a verdadeira ciência é a que questiona os próprios pressupostos teóricos e evolui. Nos últimos cem anos, continuamos presos a um paradigma que desqualifica o professor e o culpabiliza. Refiro-me ao escolanovismo, que de novo não tem nada e fede a mofo e cinzas de cadáver.
Por fim, deixo claro que não cabe ao senhor dizer como deve ser o meu currículo: nos meus planos de curso mando eu. Para o Sr. Luckesi, por exemplo,

o método pode ser entendido dentro de uma concepção teórica ou de uma compreensão técnica. O autor compreende Metodologia como a concepção segundo a qual a realidade é abordada. Esta é uma concepção teórica do método. Porém, afirma que há uma compreensão técnica do método que também atravessa o conteúdo, visto que "são modos técnicos de agir que estão dentro do conteúdo que se ensina" (p. 138). Exemplo: o modo de extrair raiz quadrada (Matemática) ou o modo de proceder numa análise sintática (Língua Portuguesa). Tanto uma quanto a outra perpassam os conteúdos tratados nas diferentes disciplinas curriculares (GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 33).

Com efeito: “Todo conhecimento é atravessado por uma metodologia e é possível descobrir no próprio conteúdo exposto o método com o qual ele foi construído” (LUCKESI, 1995, p. 138 apud GRUMBACH e SANTOS, 2012, p. 34).

Se fosse mesmo verdade que toda pedagoga está apta para avaliar quem é mais instruído do que ela, o tecnicismo, tendência pedagógica reconhecida pela Lei 5.622, de 1971, no tempo do regime implementado pelo golpe militar, não seria necessário elaborar para ela um plano de aula com cabeçalho e objetivos. O ofício burocrático e irracional de explicitar procedimentos de ensino que ela não domina já é em si uma prova de que as pedagogas não dominam o conhecimento, porém querem dar carteirada mesmo assim. Com isso apenas revelam a ignorância maciça. E sabem o que é mais curioso? O modelo de plano de aula tecnicista é inspirado pela Psicologia behaviorista, de Skinner. Pergunto: ele era bacharel ou licenciado?
Se é verdade que todo conteúdo é condicionado, permeado e atravessado por uma metodologia, então toda metodologia também é atravessada por um conteúdo de uma disciplina específica, o que quer dizer que a pedagoga, que está abaixo de Luckesi, só pode dominar os procedimentos de ensino do professor quando ela é formada ou versada na disciplina que ele leciona, hipótese em que ela teria duas graduações. Isso quer dizer que é um despautério o que aconteceu na rede estadual de ensino do Paraná: Segundo notícia veiculada em 6 de outubro de 2019 pelo site Plural, pedagogas estariam vigiando professores em sala de aula. Em tempos de Escola sem Partido (projeto infame que só não é pior do que o currículo oculto), pedagogas evangélicas e disseminação dos dizeres de Olavo de Carvalho, isso só pode soar como forma de desrespeitar a liberdade de cátedra do professor, garantida por lei, a letra morta.
Uma coisa é certa: domino os conteúdos, logo, domino os procedimentos de ensino e pesquisa.
Garanto que minha didática é mais tradicional e conteudística, dois atributos incondicionalmente odiados pela pedagogia moderna, que de científica não tem nada e de mercadológica tem tudo. Quero um ensino mais clássico e livresco, e não a porcaria hipermoderna, mercadológica e neoliberal que só é possível quando um setor específico da superestrutura (para citar Marx) permite. Tal setor são os departamentos de educação das universidades públicas, que tanto se queixam da expansão das universidades particulares, mas continuam formando mestres e doutores para tais organizações privadas de ensino superior.
Sinceramente,

Márcio Alessandro de Oliveira, formado num curso EaD de licenciatura em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de uma rede pública. Guarapari, ES, 1º de junho de 2020.

Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/0328708771235302

Referências:

FLORENTINO, Adilson; MARTINS, Angela M. Souza; CARINO, Jonaedson; SÁ, Marcia Souto Maior Mourão; SILVA, Marco; THOMAZ, Sueli Barbosa; WILKE, Valéria. Fundamentos da Educação I. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.

FONSECA, Sérgio César da. Educação e atualidade brasileira: Paulo Freire e a aproximação com as ideias de Anísio Teixeira.

MARTINS, Angela M. Souza; SILVEIRA, Claudio; ARAUJO, Helena; CARINO, Jonaedson; THOMAZ, Sueli Barbosa. Fundamentos da Educação II (v.1). 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.

“Professores acusam governo de usar pedagogos para vigiá-los em sala de aula”. 6. Out. 2019. In: Site Plural. Disponível em: <https://www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/professores-acusam-governo-de-usar-pedagogos-para-vigia-los-em-sala-de-aula/>. Acesso em: 6. Abr. 2020.

SANTOS, Ana Lúcia Cardoso; GRUMBACH, Gilda Maria. Didática para Licenciatura: Subsídios para a Prática de Ensino (v. 1 e v. 2). 2. ed e 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2012.
  


[1] Na supracitada dissertação, intitulada Educação e atualidade brasileira, de 1959, Paulo Freire afirma o seguinte (é meu o destaque): “Cada vez mais nos convencíamos ontem e nos convencemos hoje, de que o homem brasileiro tem de ganhar a consciência de sua responsabilidade social e política, existindo essa responsabilidade. Vivendo essa responsabilidade. Participando. Atuando. Ganhando cada vez mais ingerência nos destinos da escola de seu filho. Nos destinos de seu sindicato. De sua empresa, através de agremiações, de clubes, de conselhos. Ganhar ingerência na vida de seu bairro. Na vida de sua comunidade rural, pela participação atuante em associações, em clubes, em sociedades beneficentes. Assim, não há dúvida, iria o homem brasileiro aprendendo democracia rapidamente” (FREIRE, 1959, p. 13 apud FONSECA, s. d., p. 4). Não poderia ele estar mais enganado. Um exercício de diacronia e sincronia aliado à Análise de Discurso de linha francesa pode facilmente comprovar que ele, que era bacharel em Direito, e não em Pedagogia, errou feio. O homem a quem ele se refere é enganado pelos intelectuais orgânicos (que são de direita), ou seja: é convencido pelos formadores de opinião da imprensa e da igreja. Identifica-se com as classes dominantes e gosta de exercer o pequeno poder que lhe dão.