sábado, 20 de novembro de 2021

O novo ensino médio é mais um sinal da ruína da educação

 

O novo ensino médio é mais um sinal da ruína da educação

 

Márcio Alessandro de Oliveira [1]

                                                    Guarapari, ES. 20 de junho de 2021.

Última revisão: 26 de junho de 2021.

 

            Desde que se consolidou como classe dominante, a burguesia controla a educação, que deixou de ser aristocrática (isto é: destinada aos nobres) para ser “democrática”. (A burguesia é a classe dos seres bípedes que detêm os meios privados de produção, tais como matéria-prima extraída da natureza, maquinário, dinheiro para pagar os salários e rios de dinheiro cheio de juros no mercado financeiro, e não a classe dos donos de birosca que têm direitos econômicos básicos, posto que ter bens de consumo é o mínimo; e obviamente os profissionais liberais também não são burgueses, até porque a direita, que recebe o apoio deles, causa a proletarização e até a subproletarização de uma classe média inculta, tacanha e anti-intelectual.) O neoliberalismo econômico, uma ideologia que prega a redução do Estado e dos direitos sociais e defende a privatização de tais direitos, impõe um novo ataque a qualquer professor com o mínimo de senso crítico. Trata-se de uma mudança que, conforme C. Baudelot e R. Establet, apenas acentuará o apartheid ou a segregação educacional em forma de escola dualista, que separa ricos e pobres e garante mão de obra barata para o mercado — mercado, e não mundo do trabalho.

            É esse mesmo mercado que financia os políticos de direita e extrema direita para que lutem pela redução ou extinção dos direitos trabalhistas, pelo ataque à previdência e pelo fim da estabilidade do servidor público concursado, de modo que se espera que cada aluno considere normal, “natural” ou aceitável trabalhar como motorista de Uber ou como youtuber, sem carteira assinada, sem o 13º, sem FGTS e sem férias remuneradas, condições que garantem o consumo e o aquecimento da economia de bens e serviços, e não a prosperidade do mercado financeiro, um tipo bem diferente de capitalismo. Os estudantes já estão se acostumando com o vocabulário que certamente será consagrado pelo novo ensino médio: já fazem parte do seu dia a dia as palavras investimento, seguidores, empreendedorismo e monetização, mas desconhecem o conceito de mais-valia, o que comprova que a doutrinação que existe é a do mercado.

            Se os alunos soubessem o que os espera, não estariam demonstrando interesse pelo novo ensino médio: estariam blasfemando de revolta em praça pública, onde agora passam menos tempo em virtude do ensino de tempo integral, que impede que os adolescentes ocupem o espaço público, o espaço das ruas. Também blasfemariam de revolta como resposta a qualquer professor que defendesse o novo ensino médio diante da turma, e, se fizessem isso, dois seriam os motivos: 1. os professores e os diretores (ou gestores) de escola que defendem o novo ensino médio sabem que atingirá apenas a escola pública, na qual não matriculam os próprios filhos, embora nela trabalhem, o que demonstra que querem para os outros o que não querem para si nem para sua família, cujos membros obviamente tentarão conseguir boas colocações no Enem e nos outros exames vestibulares mediante execução de bons planos de curso ou estudos elaborados em boas escolas particulares (nas quais, por mais contraditório que pareça, trabalham professores sem diploma e conformados com o baixo salário); 2. o próprio magistério deixou de ser uma categoria aristocrática e prestigiada para ser uma classe sindicalista, formada, em sua maioria, não por modelos de como agem e pensam verdadeiros intelectuais, mas sim por peões e peoas do ensino cuja formação acadêmica deixa a desejar. Com efeito: este fracassa na Engenharia e faz uma “complementação” para vender “aulas” de Matemática; aquele fracassa no Jornalismo e compra uma “complementação” parcelada em mensalidades para vender “aulas” de Português; um terceiro fracassa no ofício da advocacia, exercido por profissionais liberais (que, por definição, são autônomos), e decide vender aulinhas. Enquanto isso, os que cursaram as licenciaturas das disciplinas específicas têm de concorrer com gente que nunca cursou uma faculdade voltada para a formação de professores. Se é essa a realidade, por que não permitem que bacharéis deem aulas nos ensinos fundamental e médio sem a licenciatura e sem complementação? Como podem os conhecimentos pedagógicas valer mais do que os conhecimentos científicos de uma disciplina específica? A propósito: fala-se em “complementação”... complementação de quê? Se fracassaram em suas áreas profissionais de origem, não há nada para complementar ou aperfeiçoar: o mercado está escoando (ou evacuando, como um intestino) o que ele rejeita e está despejando na sala de aula a mão de obra excedente, a mesma que forma o exército de desempregados, tão do gosto dos neoliberais. Por mais detestável que seja admitir, o Sr. Milton Ribeiro, Ministro da Educação, não deixa de estar certo ao sugerir que vai para a sala de aula quem não conseguiu fazer outra coisa da vida.     

            Ora, se é ruim a formação de muitos professores, por que haveriam de se preocupar com a dos próprios alunos? Se apenas médicos podem formar futuros médicos, faz sentido que peões formem mais peões. Qualquer indivíduo de classe média que tenha fracassado no Direito ou no Jornalismo, com qualquer diploma de qualquer um dos dois bacharelados, pode fazer uma “complementação” pedagógica de meia tigela em alguma “universidade” de fundo de quintal e lecionar na educação básica e pública. Eu, por outro lado, não posso usar o diploma da licenciatura em Letras nem os documentos que comprovam que sou mestre em Estudos Literários para exercer o jornalismo. E o que dizer de pessoas que nunca, jamais, jamais mesmo, cursaram a faculdade de Ciências Sociais e mesmo assim dão “aulas” de Sociologia? Um bacharel em Ciências Sociais que queira a cátedra de professor de Sociologia do Ensino Médio não poderá fazer isso sem uma complementação, mas uma pessoa formada em Pedagogia cursa uma “complementação” e compete de “igual” para igual com alguém licenciado em Ciências Sociais na hora de disputar uma cadeira, que, obviamente, por uma questão de lógica, deveria ser ocupada por um bacharel em Ciências Sociais na falta de um licenciado. O Artigo 62 da Lei Darcy Ribeiro, porém, impede que o bacharel desprovido da tal complementação tenha direito ao cargo, mesmo que ele seja culto, habilidoso e conhecedor das ciências em que é versado sem que a pedagoga também seja.

            Essa distorção encontra raízes históricas profundas. “Na introdução de EAB [Educação e Atualidade Brasileira, livro de Paulo Freire]”, informa Sérgio César da Fonseca numa resenha, “Paulo Freire dialoga com as teses de Anísio Teixeira a respeito do ‘bacharelismo’ da escola brasileira”. Teixeira, um dos pioneiros do escolanovismo brasileiro, era de direita e nunca foi professor, mas quis imitar servilmente John Dewey, o ianque fundador do escolanovismo; Paulo Freire, por sua vez, era de esquerda, mas reforçou o otimismo pedagógico e o entusiasmo pela educação, componentes da sociologia do consenso, ideologia dos liberais de direita que até hoje estende as garras e faz que a escola pública siga a cartilha do Banco Mundial. Tomara que Paulo Freire não tenha condenado a presença de bacharéis nos quadros do magistério da educação básica, porque isso seria cuspir para o alto, uma vez que ele mesmo nem formado em Pedagogia era; também não era licenciado numa disciplina específica: era bacharel em Direito. Embora nem sequer fosse licenciado nem bacharel em Letras, dava aulas de Português no Colégio Oswaldo Cruz, onde foi professor daquelas que se tornariam suas esposas. Infere-se que os dois intelectuais eram contra o que chamavam de bacharelismo da educação. O resultado desse despautério está no seguinte fato: “Afirma-se que o professor não precisa saber tanto da matéria em si como das diferentes maneiras lúdicas de apresentar as tarefas. Em outras palavras, o futuro professor deve estudar mais pedagogia e menos as disciplinas científicas” (ENKVIST, 2019, p. 34). Em nome de uma formação “científica”, excluem-se os bacharéis da educação básica, como se o seu saber-fazer fosse insuficiente para ensinar, ao mesmo tempo que se desvalorizam as próprias licenciaturas. Ora, o bacharel, por definição, é formado por uma universidade, e portanto segue ele o princípio de que sua ciência não pode ser separada da pesquisa nem do ensino: o ensino, a pesquisa e a extensão são traços da universidade. Todavia, qualquer aventureiro, como um tecnólogo, cursa uma “complementação” em seis meses e corre o “risco” de se promover nos quadros dos magistérios públicos, em que diretores e seus superiores recebem verdadeiras fortunas, mesmo que um professor bem formado e culto ganhe menos e seja perseguido por quem sabe menos do que ele. É essa uma das consequências do antibacharelismo, que, aliás, não contém substância nenhuma: Se um bacharel em Letras pode dar aulas num curso de licenciatura em Letras na medida em que, aos olhos da lei, nem todos os lentes (professores universitários) precisam de mestrado ou doutorado, então pode formar futuros professores da educação básica, e no entanto não pode lecionar na própria educação básica. É como se um médico tivesse de formar futuros médicos sem exercer a medicina. Por que os departamentos das universidades públicas aceitam uma incoerência tão grosseira? São prejudicados os bons alunos dos ensinos fundamental e médio, que ficam desanimados por se sentirem desvalorizados: notam que são ruins os professores. Só os governos e os estabelecimentos particulares de ensino superior são beneficiados pelas “complementações”, porquanto estes lucrem com as matrículas e garantam mão de obra barata para aqueles. É muito clara a divisão social do trabalho: se é massificado o ensino, o magistério, que deveria ser um esteio do pensamento crítico, é reduzido a um custeio muito baixo.

            Não era o bacharelismo a causa da formação de maus professores (conhecidos como sinecuras). Hoje, porém, é o pedagogismo que faz isso. Trata-se da supervalorização de conhecimentos supostamente científicos da Pedagogia, que, em nome de uma formação “científica”, “fundamentou” aberrações normativas e legislativas, tais como a Resolução CNE/CEB nº 02/97, a Resolução nº 2, de 1º de julho de 2015, o Decreto nº 8.752, de 9 de maio de 2016, e a Resolução CNE/CP nº 1, de 9 de agosto de 2017. Na prática, qualquer mentecapto metido a aventureiro pode conseguir um combo promocional (para usar a expressão de um anúncio de “complementação” pedagógica) e comprar um diploma mediante pagamento de mensalidades. Isso tudo é aviltante, ultrajante, obsceno: é uma falta de respeito para com os bacharelados e para com as licenciaturas; todavia tudo isso conta com o apoio do Conselho Nacional de Educação (o CNE) — controlado que é pelas grandes corporações privadas de escolas particulares — e com a anuência de políticos. A política, aliás, mesmo que tenha relação inevitável com o ensino público, segue critérios mercadológicos, uma vez que a classe dirigente está nas mãos da classe dominante. Não é por acaso que o novo ensino médio começou a ser implementado pela Medida Provisória 746, de 2016, para depois ser promulgada a Lei 13.415, a infame lei do novo ensino médio, de 2017. Quando vão aplicar critérios técnico-científicos? Pelo visto, isso só vai acontecer num futuro muito, muito distante, um futuro em que não exista a Fundação Lemann.

            No caso específico do Espírito Santo, sabe-se que “professores” usaram diplomas falsos: Vejamos:

 

A corregedoria da Secretaria Estadual de Educação (Sedu) concluiu que Wemerson Silva Nogueira, de 27 anos, que foi eleito educador do ano em 2016 e nomeado embaixador da educação no Brasil pelo MEC em 2017, usou diplomas falsos para conseguir um cargo na rede pública estadual de ensino. A investigação da secretaria aponta que ele nem mesmo se matriculou na instituição que alega ter estudado.

 

            A passagem acima foi extraída de notícia disponível no sítio do G1, publicada em 24 de agosto de 2018. Mas há mais:

 

Quatro professores foram presos na manhã desta quarta-feira (25), na região Norte do Estado, acusados de participar de um esquema de uso de diplomas universitários falsos para conseguir mais pontos em concursos públicos. As prisões fazem parte da primeira fase da Operação Mestre Oculto, do Ministério Público do Espírito Santo (MPES). Duas pessoas foram detidas em Rio Bananal e outras duas em Linhares.

 

                O excerto acima foi tirado de notícia publicada pelo sítio de A Gazeta, em 25 de julho de 2018. O que as “complementações”, infames que são, e os dois casos noticiados evidenciam é a falta de respeito para com os licenciados e os bacharéis, que muito se empenharam em suas formações inicial e continuada, nas quais exerceram a honestidade intelectual e a honestidade pura e simples.

            É estarrecedor o caso particular do Espírito Santo, reconhecidamente atrasado e provinciano. Não é por acaso que prevalecem os contratos temporários. Professores em regime de Designação Temporária (D. T.) são submissos às diretrizes neoliberais da educação. Não são intelectuais orgânicos (para usar a expressão de Gramsci), ou seja: não são formadores de opinião: são peões e peoas do ensino. Com efeito: em sua dissertação de mestrado, Margaret Jann (2016, p. 6), que examinou as relações de trabalho temporário na rede municipal de Cariacica, ES, revela isto:

 

A pesquisa evidenciou que os professores contratados passam por experiências de competição entre os pares para acessar uma vaga de trabalho; há uma fragilidade na acolhida destes professores nas unidades educativas e tensões vão se estabelecendo ao final do contrato, o que traz um sentimento de impotência diante das lógicas de contratação temporária que vão se naturalizando no trabalho docente.

 

            A pesquisadora Margaret Jann tem todos os panos para as mangas: faltam concursos públicos para o provimento de cargos efetivos dos magistérios públicos, de modo que o contrato de D. T., que deveria ser a exceção, virou regra (cf. JANN, 2016, p. 92). Não foi por acaso que

 

O Plano Municipal de Educação de Cariacica — Lei nº 5.465, de 22 de setembro de 2015 — traçou em sua Meta 18 estratégias para estruturar a rede pública de educação básica de modo a buscar, no decorrer de 2 (dois) anos de vigência do PNE, [que] 90%, no mínimo, dos respectivos profissionais do magistério sejam ocupantes de cargos de provimento efetivo (JANN, 2016, p. 85-6).

 

            Outro acinte ao magistério da educação básica é a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (doravante L. D. B.), a Lei 9.394, de 1996. É desesperador notar que a atual L. D. B. equivale àquela que foi idealizada por Darcy Ribeiro (cultuado e santificado por pessoas desinformadas ou intelectualmente desonestas), e não ao texto que propusera o deputado Otávio Elísio (PMDB/MG). Não vingou o projeto de lei 1.258, de 1988, para o qual o relator escolhido fora o deputado Jorge Hage (PDT/BA), que “ouviu as entidades da sociedade civil e outros parlamentares e apresentou, em agosto de 1989, o primeiro substitutivo do Projeto Otávio Elísio, que contou com o apoio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública” (MARTINS, 2008, p. 93). Infelizmente,

 

a vitória de Collor priorizou as propostas educacionais do empresariado industrial. No início de 1990, Jorge Hage apresentou o segundo substitutivo, mas os defensores dos interesses privados criaram uma série de mecanismos para que esse substitutivo não caminhasse na Câmara dos Deputados. Collor reuniu aliados para barrar o projeto do deputado Jorge Hage; assim, foram criados vários empecilhos que impediram a votação do projeto na Câmara dos Deputados. Em 1992, Darcy Ribeiro apresentou outro projeto de LDBEN, que também foi assinado por Maurício Correa (PDT/RJ) e Marco Maciel (PFL/PE). Logo em seguida, o projeto do deputado Jorge Hage foi retirado do Congresso, o projeto de Darcy Ribeiro foi votado e transformou-se na nova LDBEN, Lei 9.394, promulgada em 20 de dezembro de 1996. (MARTINS, 2008, p. 93)

 

            Até hoje a L. D. B. é conhecida como Lei Darcy Ribeiro. Reflete as contradições da educação pública brasileira e define a educação como dever do Estado e da família. Esta, é claro, é religiosa e tacanha, e por isso mesmo não respeita a liberdade de cátedra do professor, que, aos olhos dela, é um empregado, ao passo que o aluno é um cliente, que, como qualquer cliente, tem sempre razão. Para o azar dos professores progressistas, “as esperanças dos educadores de ter uma educação fundamentada, discutida e organizada sob os princípios da dimensão crítico-social foi abortada pela Lei Darcy, que não representa a vontade e o sonho dos educadores brasileiros” (THOMAZ; CARINO, 2008, p. 149).

            A falta de concursos para o provimento de cargos efetivos, a expansão de escolas particulares, a influência da Fundação Lemann, a compra de tecnologias (que faz que o dinheiro público vá para o setor privado), a obsessão pela “inclusão” de mais e mais alunos na escola pública, em que é praticamente proibido estudar com seriedade — tudo isso está ligado de tal forma, que é impossível não vincular o novo ensino médio à formação anti-intelectual e anticientífica dos professores da educação básica e pública. Isso tudo, é claro, segue o rastro contínuo do otimismo pedagógico, nunca combatido pelos sindicatos dos professores (que discutem causas minoritárias e procuram ganhar dinheiro em migalhas, como galinhas malfadadas que ciscam no chão à procura dos grãos de milho e depois vão para a panela, mas nunca discutem a educação de modo científico). É óbvio que o discurso “científico” da inclusão de matérias pedagógicas na formação inicial dos professores é um artifício pseudocientífico que atinge dois objetivos: o de pauperizar a formação docente e o de subproletarizar o magistério. Os bacharéis jamais aceitariam salários tão infames. Contudo, é possível reagir de modo organizado e institucional, sem o espontaneísmo dos ativismos (que são estúpidos), a esse estado de coisas. O primeiro passo é a desobediência civil: enquanto não forem revogados os dispositivos que permitem as formações de má qualidade, jamais o magistério poderá se queixar do novo ensino médio, então é preciso desacatar os textos normativos que permitem a existência da infâmia da complementação pedagógica tanto quanto é necessário desacatar a lei do novo ensino médio. O segundo passo é uma revolução que gere a destituição imediata dos integrantes do CNE, que deverá ser substituído por uma instituição que realmente valorize os magistérios públicos. O terceiro passo é exigir que os pesquisadores dos departamentos de Educação das universidades públicas deixem de lado o proselitismo religiosamente sectarista que fazem com o nome de Paulo Freire, a vaca sagrada da Pedagogia, porque nem formado ou licenciado para dar aulas era. (As universidades mundo afora que o louvam, como se o próprio sol irradiasse do cérebro do pernambucano, são aparelhos ideológicos de Estado, o que quer dizer que são aparelhos ideológicos de mercado. A sacralização do nome de Paulo Freire é tão danosa quanto a do nome de Darcy Ribeiro, que nem professor da educação básica era. A melhor maneira de respeitar e honrar a memória de Paulo Freire é criticar a obra dele, de modo que os estudiosos, com isenção de ânimo, comemorem os acertos do pernambucano e lhe corrijam os erros.) Assim, poderão se deter no que realmente importa: a crítica aos pressupostos teóricos da pedagogia moderna, que reforça, como um capitão do mato, as diretrizes do Banco Mundial. Como os departamentos, que estão comprometidos com artiguelhos acadêmicos de baixíssima qualidade e com a lógica neoliberal e operacional do Lattes, farão isso, coisa é que eu não sei. Por fim, é imprescindível que cada Estado-Nação do planeta esteja disposto declarar ilegais todas as ideologias do neoliberalismo. Em outras palavras: todos os governos devem colocar na ilegalidade o neoliberalismo, que deverá se tornar crime contra a humanidade, de modo que ficará no balaio do nazismo, do fascismo, do franquismo, do salazarismo e do stalinismo. Para o azar da sociedade brasileira, muitos alunos chegarão ao ensino médio e dele sairão sem que saibam os totalitarismos. Suas referências são os youtubers, e por isso mesmo existem alunos que sustentam que a Terra não é esférica. É estarrecedor e revoltante, mas é natural, por assim dizer: muitos dos seus professores votaram em Bolsonaro, e alguns diminuíram a importância da vacina contra o novo coronavírus. 

 

Referências:

 

ENKVIST, Inger. Educação: guia para perplexos. Tradução de Felipe Denardi. 1. ed. Campinas, SP: Kírion, 2019.

 

FONSECA, Sérgio César da. Educação e Atualidade Brasileira: Paulo Freire e a aproximação com as ideias de Anísio Teixeira [resenha].

 

FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: uma história de vida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

 

FLORENTINO, Adilson; MARTINS, Angela M. Souza; CARINO, Jonaedson; SÁ, Marcia Souto Maior Mourão; SILVA, Marco; THOMAZ, Sueli Barbosa; WILKE, Valéria. Fundamentos da Educação I. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.

 

Habilitação para lecionar sociologia no Ensino Médio. In: Sítio da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS). 17 mar. 2018. Disponível em: < https://abecs.com.br/lecionar-sociologia-no-em/>. Acesso em: 19 jun. 2021.

 

JANN, Margaret. O acesso e permanência dos professores contratados nas instituições educativas: uma análise de suas experiências, 130 f. Dissertação. (Mestrado em Educação) — Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação, ES, 2016.

 

MARTINS, Angela M. Souza; SILVEIRA, Claudio; ARAUJO, Helena; CARINO,

Jonaedson; THOMAZ, Sueli Barbosa. Fundamentos da Educação II (v.1). 2. ed. Rio de

Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.

 

Professor do ES eleito “Educador do Ano” no país usou diploma falso, diz secretaria. In: G1. 24 ago. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2018/08/24/secretaria-conclui-que-professor-usou-diploma-falso-para-atuar-na-rede-publica-de-ensino-do-es.ghtml>. Acesso em: 19 jun. 2021.

                                      

Quatro professores são presos em esquema de diplomas falsos no ES. In: A Gazeta. 25 jul. 2018. Disponível em: <https://www.agazeta.com.br/es/norte/quatro-professores-sao-presos-em-esquema-de-diplomas-falsos-no-es-0718>. Acesso em: 19 jun. 2021.



[1] Licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de duas redes públicas. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/0328708771235302>.

sábado, 15 de maio de 2021

Em defesa da estabilidade do servidor público

 

Em defesa da estabilidade do servidor público

 

(À memória de meu avô materno. Foi funcionário da empresa estatal de trens do estado do Rio.)

 

Márcio Alessandro de Oliveira [1]

 

(Guarapari, ES, 3 de fevereiro de 2021. Última revisão: Guarapari, ES, 27 de abril de 2021.)

 

            Desde que se consolidou, o neoliberalismo econômico — do qual o bolsonarismo é apenas um dos vários tentáculos — ameaça e diminui os direitos políticos, sociais e econômicos na medida em que reduz a economia à fração mesquinha que a compõe: o mercado. Como verdadeiros integrantes de uma seita religiosa, os partidários do neoliberalismo ignoram (ou fingem ignorar) que o Estado e o mercado são complementares, conforme um dos arrazoados do sociólogo Jessé Souza. Como, porém, têm o prestígio de alguns diplomas, é muito, muito fácil, para eles, a prática da desonestidade intelectual, principalmente quando se trata de atingir o regime jurídico do servidor estatutário, que, para o senso comum, é inimigo da população, marajá ou parasita. Não é à toa que nós, servidores (com a exceção óbvia dos que, por falta de referenciais básicos, apoiam os ataques bolsonaristas), estamos reagindo à proposta de “reforma” — que, em verdade, é um ataque obsceno — com pelo menos dois argumentos: 1. querem que o servidor perca a autonomia funcional, atrelada que é aos critérios técnico-científicos que presidem às suas funções, e passe a seguir diretrizes político-partidárias e fisiológicas; 2. os proponentes da “reforma” querem o fim da estabilidade para que o servidor deixe de ser funcionário do Estado, seja qual for o poder em que trabalhe (executivo, legislativo ou judiciário) ou a esfera em que atue (municipal, estadual ou federal), e passe a ser capacho ou cabo eleitoral desta ou daquela personalidade política, cada uma das quais só pensa em ser parte da classe dirigente (a classe dos políticos), que, por sua vez, é o capacho da classe dominante (a burguesia). Estão corretos os que advogam as teses aqui enumeradas tanto quanto os que reconhecem as diferenças entre os regimes (o estatutário, o celetista e o de Designação Temporária, doravante D. T.) e o quanto um servidor em cargo comissionado é vulnerável aos caprichos das relações de compadrio e poder e do pensamento de grupo (groupthink), tipo de comportamento colegiado cada vez mais comum nos setores público e privado ao ponto de interferir no exercício profissional do funcionário, e disso é prova o caso de Eichmann, nazista mencionado por Hannah Arendt. Na prática, o ataque à nossa estabilidade quer fazer com que todos nós tenhamos de trabalhar como se fôssemos cabos eleitorais ou capachos de políticos. São particularmente vulneráveis os magistérios públicos da educação básica e os lentes (professores universitários), sobretudo os de Ciências Humanas.

            É muito conhecido o argumento segundo o qual um dos avanços da Constituição de 1988 é a estabilidade do servidor público, não obstante Paulo Freire tivesse recebido a importância de CR$ 1.000.000 (um milhão de cruzeiros) a título de conciliação de todos os seus direitos oriundos da rescisão de contrato de trabalho no SESI de Pernambuco e consequente renúncia da estabilidade, conforme documento de 25 de agosto de 1966 (FREIRE, Ana Maria Araújo, 2013, p. 66, destaques meus). A estabilidade, conquistada com estudo, empenho e suor, além de ser mérito, está condicionada ao estágio probatório, durante o qual e depois do qual o servidor é submetido a avaliações de desempenho. É preciso reconhecer não só o período probatório, mas também os ritos que permitem, dentro da proporcionalidade e da razoabilidade, investigar servidores e, se necessário, puni-los ou até demiti-los. Vejamos o que diz um artigo do Correio Braziliense (3 de novembro de 2016):

 

A Constituição Federal prevê três situações para que o funcionário perca o cargo: após sentença judicial transitada em julgado, por processo administrativo ou, ainda, por insuficiência de desempenho, possibilidade que foi incluída pela emenda nº 19, de 1998. Isso pode ocorrer em decorrência de grande insatisfação social com a prestação de serviços públicos, afirma a advogada trabalhista Silvia Seabra de Carvalho, do escritório Advocacia Maciel.

 

 

De acordo com a notícia de que foi extraído o fragmento acima, a Constituição já prevê a demissão do servidor por mau desempenho. Nada pode ser feito contra o servidor sem uma sindicância (investigação), a menos, é claro, que haja provas cabais que permitam, sem sindicância, o início de um processo administrativo, rito que pode, sim, levar à exoneração, como foi o caso dos servidores mencionados em trecho de notícia que transcreverei a seguir (publicada no site Agência Brasil, em 20 de outubro de 2014):

 

Corrupção e improbidade administrativa são os principais motivos para a expulsão de servidores federais no Brasil. As informações são da CGU, Controladoria Geral da União, que contou quase 3.500 servidores demitidos por esse motivo. Em segundo lugar vem o abandono de cargo, pouca frequência no trabalho ou acumulação ilegal de cargos, com mais de mil casos.

Somando esses motivos com o de servidores que não cumprem as atividades ou que ocupem chefias em empresas privadas, o total de expulsões chega a cinco mil desde janeiro de 2003 até a primeira quinzena de outubro deste ano. Os dados se referem apenas a servidores públicos, regidos pela Lei 8.112. Não fazem parte dos números os casos dos trabalhadores de empresas públicas, como Correios e Caixa Econômica Federal. Estes são contratados sob o regime das leis trabalhistas.

As instituições que mais tiveram servidores expulsos foram os ministérios da Previdência Social, da Justiça e o da Educação. O Rio de Janeiro teve mais de 800 casos; o Distrito Federal, mais de 600; e São Paulo mais de 500 demissões de servidores públicos.

 

 

Em notícia de 12 de dezembro de 2019, o site Metrópoles presta as informações seguintes (as quais, pelo que entendi, referem-se tão só a servidores federais, regidos pela Lei nº 8.112, de 1990):

 

Neste ano, até novembro, os órgãos federais expulsaram 436 servidores públicos por irregularidades. O número se aproxima da média de 323 demissões anuais registradas desde 2003, quando o levantamento começou a ser feito pela Controladoria-Geral da União (CGU). Até hoje, foram 5.168 casos de desligamento.

O (M)Dados, núcleo de análise de grande volume de informações do Metrópoles, checou os números. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) foi o órgão que mais puniu. Foram 1.120 servidores expulsos. A Receita Federal está em segundo lugar, com 433; enquanto a Polícia Rodoviária Federal demitiu 430 nos últimos 17 anos.

 

Como podemos ver, os servidores estatutários estão sujeitos a regras: são cidadãos, e por isso têm direitos e deveres, como todos os outros cidadãos. É falsa, portanto, a afirmação de que todo servidor é intocável ou impenitente. Estou me referindo ao servidor estatutário, que exerce as funções inerentes ao cargo público; existe o servidor celetista, que não tem cargo, mas sim emprego público, como todo funcionário de empresa estatal. Vejamos trecho de notícia publicada em 22 de dezembro de 2008 no site do jornal Extra:

 

Em decisões publicadas nesta segunda-feira no Diário Oficial, o ministro da Controladoria-Geral da União, Jorge Hage, demitiu os servidores Flávio José Pin, da Caixa Econômica Federal (CEF), e Edilberto Nerry Petry, dos Correios, por improbidade administrativa, e o engenheiro civil Eldon Arrais de Lavor, do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs), por enriquecimento ilícito.

Flávio Pin era superintendente Nacional de Produtos de Repasse da Caixa e foi um dos 40 presos na “Operação Navalha”, acusado de favorecer ilegalmente a Construtora Gautama. A Comissão de Sindicância conduzida pela CGU comprovou que Pin recebeu propina de pelo menos R$ 25 mil, paga pela construtora.

A comprovação do fato decorre de gravação de conversas telefônicas entre os envolvidos, além de confirmação do depósito bancário de R$ 10 mil na conta de uma irmã do servidor. Outro depósito, de R$ 15 mil, foi feito na conta de uma filha de Flávio Pin.

 

Ocorre que, uma vez que o Estado não é uma organização privada (tão do gosto da Escola de Chicago), mas sim uma instituição pública (conforme o que postula a Escola de Frankfurt), o servidor não pode ficar sujeito às arbitrariedades típicas do setor privado, em que a livre iniciativa permite a demissão do funcionário — quando, é claro, há funcionário e empregador, e não o empresário de si mesmo, que dirige Uber ou trabalha fazendo entregas pelo Ifood, sem férias remuneradas, sem 13º, sem direito à licença, sem contribuição para a aposentadoria. Que eu saiba, pelo menos um dos dois tipos de sindicância (ou de investigação) deve seguir dois princípios, presentes também em qualquer processo administrativo: o direito à ampla defesa e o direito ao contraditório. Deve ser alvo de todo o nosso repúdio qualquer tentativa de enfraquecimento de tais direitos, que são básicos e salutares em qualquer democracia respeitável, como a da França e a do Japão, países onde se leva muito a sério o trabalho do funcionário público. A propósito: é urgente esclarecer, ainda que eu já tenha feito a distinção, que há diferenças entre o emprego público e o cargo público. Este é fundamentado num conjunto de deveres e direitos que formam o regime do servidor estatutário, ao passo que aquele se guia pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), razão pela qual o servidor celetista conta com FGTS, muito embora, na prática, também esteja amparado por normas que lhe garantem a impessoalidade e a objetividade, o que lhe proporciona uma estabilidade prática de fato (e não propriamente de direito) à maneira própria do regime celetista. (Diz-se que, antes do regime político implementado pelo golpe militar de 1964, todo trabalhador, independentemente de estar vinculado ao poder público ou à iniciativa privada, tinha o direito à estabilidade depois de dez anos de contrato.) Já o servidor estatutário, como sabemos, conta não com o FGTS, mas sim com a estabilidade, preconizada pelo Artigo 41 da Constituição, que, depois de uma alteração em forma de emenda, passou a dizer: “São estáveis, após três anos de efetivo exercício, os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público”. Não surpreende que o governo (a governança) proponha um ataque ao servidor público: quem o representa e os que o apoiam nunca, jamais, em tempo nenhum, tiveram de estudar em nome da própria sobrevivência e nunca consideraram o serviço público, que compõe o mundo do trabalho — o mundo, e não só o mercado —, como a única oportunidade de trabalho e subsistência.

Obviamente é insustentável o argumento de que o servidor deixa o Estado inchado: a falácia neoliberal, como toda falácia, é engendrada pela desonestidade intelectual. A mentira foi gerada, todavia, tem perna curta, como toda mentira: os cabos eleitorais, os ocupantes de cargos comissionados — que, na ânsia pela recompensa depois do apoio ao candidato vitorioso da eleição, acham que podem dispor dos cargos como quem dispõe de uma roupa pendurada num cabide —, os servidores com contratos de D. T. e as empresas privadas terceirizadas contratadas pelo poder público sempre (sempre!) receberam dinheiro público — o dinheiro da res publica — de tal modo, que sempre tornaram mais longas as folhas de pagamento. Com efeito: “o Executivo gasta demais com serviços de empresas terceirizadas. Laudo do Instituto Nacional de Criminalística (INC), da Polícia Federal, ao qual o jornal O Estado de S. Paulo teve acesso, mostra que, em alguns casos, um funcionário terceirizado chega a custar duas vezes mais que um servidor público” (trecho de notícia do site G1, de 7 de janeiro de 2007). O servidor estatutário é bem menos oneroso para qualquer ente. Entretanto, não está preso a cangas: não é obrigado a levantar bandeira para este ou para aquele político em períodos em que as ruas ficam sujas por causa das campanhas eleitorais, que desperdiçam papel na medida em que cada santinho é deixado nas ruas e nos bueiros, pois que o servidor está livre do voto de cabresto — por isso é menos oneroso do ponto de vista das despesas, porém é menos lucrativo para os que têm sede desmedida de poder, o objeto de desejo de que tomam posse como o vampiro que bebe o sangue da vítima. O vampiro sempre dará preferência a um contrato de D. T. ou a um terceirizado.

Uma prova cabal de vampirismo é o que fizeram no estado do Rio, em 2016: os servidores estaduais foram levados à penúria: foram espoliados: negaram-lhes o salário em dia, um direito básico. Alguns morreram. Quem será responsabilizado pelas mortes? Em Duque de Caxias e Teresópolis, municípios fluminenses, reinam os abusos e as abusões inerentes às relações de compadrio e poder das politiquices provincianas daquelas duas aldeias, e disso é prova cabal o fato de haver pouquíssimos concursos públicos para o provimento de cargos efetivos no executivo e no legislativo de cada um dos dois municípios, onde cabos eleitorais e funcionários de empresas terceirizadas ocupam o lugar de pessoas que precisam das oportunidades que só um concurso público pode proporcionar. Em tais municípios, os servidores vinculados à administração municipal também foram espoliados no sentido de que deixaram de receber o salário em dia.

Está mais do que claro que não se sustentam as racionalizações ou alegações que tentam dar fumos de legitimidade ao ataque ao servidor público, que não (não, NÃO!) é um custeio: é, antes de tudo, um ESTEIO do Estado. Este nem sequer arca com os exames médicos, que são obrigatórios para a posse, que, aliás, já é uma forma de garantir a efetivação dos que, dentro do que os cristãos chamam de bom combate, são os melhores para os cargos públicos. Após a homologação (aprovação administrativa ou judicial) do resultado do concurso público, ainda são submetidos às etapas do provimento do cargo efetivo, que são três: a nomeação, a posse (que exige documentação e a aprovação da já mencionada perícia médica) e a entrada em exercício. A partir desta última etapa, é o servidor submetido às avaliações a que já me referi. Ora, se nada disso está bom para os proponentes da “reforma” (os quais, pelo visto, nunca tiveram de estudar para um concurso público), por que as forças militares e o poder judiciário não estão dentro do escopo do que propõem? Boa parte da classe média pequeno-burguesa, proprietária que é de escritórios, consultórios ou pequenos estabelecimentos comerciais, vive reclamando do serviço público, porém tal classe adora que os mesmos servidores tenham poder de compra ou de consumo, exercido nos pontos de comércio de que é proprietária a mesmíssima classe média. Ela, aliás, reclama do serviço público, e no entanto alimenta uma aspiração: a de ver pelo menos um dos filhos num bom cargo público ou num bom emprego público, malgrado o fato de não ser difícil escutar um genuíno integrante da classe média conservadora do Brasil dizer que deveria tudo ser privatizado, um gesto que denuncia seu sonho de imitar servilmente os E. U. A.. Trata-se, é claro, da dissonância cognitiva, também conhecida como duplipensamento, que se manifesta no romance 1984, de George Orwell, que criou uma ficção tão distópica quanto o Brasil de 2021: sente raiva do funcionário público, mas deseja sua carreira. Pensa tal classe média que todos os servidores são privilegiados porque desconhece ou faz vista grossa para o fato de que muitos tiram dinheiro do próprio bolso para que haja ferramentas de trabalho. Sendo abissalmente inculta, ignara, ignóbil e tacanha, não vê que são vítimas da falta de reajuste e da perda do poder de compra, frutos nefastos das atitudes dos políticos dos partidos de direita que os donos de birosca e os proprietários de mercadinhos de esquina apoiam com cartazes e galhardetes em época de campanha eleitoral. Verdade seja dita: a classe média conservadora adoraria ver os filhos nas forças armadas ou no poder judiciário. Não é por acaso que os matriculam em cursinhos preparatórios.

Os formadores de opinião da direita (que Gramsci chamaria de intelectuais orgânicos) insistem em defender o ataque aos servidores de todos os regimes e, assim, praticam a desonestidade intelectual, conquanto tenham sido formados por lentes (professores universitários) que ocupam cargos públicos. Afinal, como afirma o admirável sociólogo Jessé Souza no livro A tolice da inteligência brasileira (2018, p. 18), “não existe ordem social moderna sem uma legitimação pretensamente científica desta mesma ordem”. Na página 12 do mesmo livro, diz o autor o seguinte: “produzir ‘convencimento’ é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e [outros] religiosos do passado”. No livro Tratado geral de semiótica (tradução de Antônio de Pádua Danesi e Gilson Cesar Cardoso de Souza), Umberto Eco afirma: “se algo não pode ser usado para mentir, então não pode ser usado para dizer nada” (2007, p. 4). Especialistas têm colocado boa parte da população contra o servidor público mediante prestígio, atributo garantido por aquele pedaço de papel que todos chamam de diploma. Isso, no entanto, não apaga o mérito do excelente serviço dos bombeiros, nem a destreza dos militares que vigiam as fronteiras, nem o risco que correm policiais tão honestos e íntegros quanto o saudoso Caio César (que fazia a voz do herói Harry Potter), nem a dedicação dos médicos e das enfermeiras que enfrentam a pandemia em pleno neoliberalismo mercadológico. As mentiras dos formadores de opinião da direita não anulam o fato de que um banco público é o melhor banco em que já abri conta sem deixar de ser o que até hoje me proporcionou o melhor atendimento; as mentiras não anulam o fato de que, quando tive infecção urinária, servidores públicos cuidaram muito bem de mim e me levaram à cura; também não anulam o excelente atendimento que sempre tive na UPA do município onde moro; da mesma forma, não apagam o fato de que posso contar com as vacinas obrigatórias nos postos de saúde. E o que dizer dos serviços prestados pelas empresas privadas? A menos que eu esteja muito enganado, no Brasil, as empresas de telecomunicação são campeãs quando o assunto é a insatisfação do consumidor. No estado do Rio, “passageiros da SuperVia relatam problemas que vêm se repetindo em curtos intervalos de tempo que acabam atrasando a população nos deslocamentos pela cidade” (trecho de notícia publicada em 28 de janeiro de 2021 no site Band News).

O projeto de “reforma” ficou guardado na gaveta: Jair Bolsonaro, que não precisa estudar para passar em concurso público, a menos que eu esteja enganado foi pressionado por Rodrigo Maia e Paulo Guedes para que apresentasse de vez o projeto de “reforma” administrativa. O Sr. Guedes, como todos sabem, é um fiel servo do neoliberalismo econômico, sua religião. Até onde sei, ficaram de fora os militares e os servidores do judiciário, o que prova que não é boa a proposta de “reforma”. Um dos principais pontos é a demissão do servidor que desempenhe mal as funções. Ora, a Constituição já prevê isso. Sabe-se que são perseguidas as pessoas que seguem a ciência e as diretrizes da já comprovadamente bem-sucedida Social Democracia, que garante o Estado do Bem-Estar Social. A única forma de impedir que tais pessoas possam se manifestar contra as sandices do governo federal, que mostra cada vez mais e mais semelhanças com os totalitarismos de direita, é dar fim à estabilidade, a qual, infelizmente, nem sempre consegue conter os abusos contra os servidores progressistas, nem nas universidades públicas, nem noutros locais onde se exercem as funções do serviço público. A extinção de cargos, a proibição de progressão e a inviabilidade de promoção por tempo de serviço e tantas outras afrontas do projeto de “reforma”, mesmo que não atinjam os que já são servidores, vão enfraquecer todas as categorias profissionais que estão no serviço público estatutário. Além disso, o Projeto de Emenda Constitucional da “reforma” abrirá um precedente: outros entes, como estados e municípios, poderão fazer suas “reformas”, embora a intenção de quem propõe o Projeto de Emenda Constitucional 32 seja a de alterar o regime jurídico do funcionalismo público de todos os entes, em todas as esferas. Sejamos honestos: a história de regulamentação da possibilidade de demitir servidores por “mau” desempenho é só uma fachada para as reais intenções de um governo neoliberal. A “garantia” de uma demissão baseada não em decisão individual e subjetiva, mas sim em decisão “objetiva” de grupo (ou colegiada), não é garantia de justiça: o pensamento de grupo, que já mencionei e exemplifiquei com o caso de Eichmann, já é uma realidade tanto quanto a dissonância cognitiva. Se num departamento todos os chefes forem colegiados em cargos comissionados de chefia, e o único estatutário for um subordinado deles, como poderá se defender? Não aceito o argumento de que a “reforma” vai garantir que não sejam usados critérios político-partidários para estudar a hipótese de demissão ou exoneração de servidor por “mau” desempenho: quem quer praticar a maldade nunca, jamais, jamais mesmo, revelará a verdadeira intenção. Além disso, já são aplicados critérios político-partidários: o assédio moral dentro da Administração Pública, mesmo sem a “reforma”, também já é real, e obviamente ficará muito mais forte se entrar em vigor o tal Projeto de Emenda Constitucional da “reforma”, que, pelo visto, custará aos cofres públicos (se é que já não está custando) muito, muito, muito mais do que qualquer folha de pagamento.

Com efeito: Lawrence Kohlberg, discípulo de Piaget, dividia os níveis de moralidade em três. Cada nível é subdividido em dois estágios. Estamos num dos mais primitivos, que é aquele em que agimos unicamente de acordo com perdas e ganhos, ou seja: de acordo com punições e recompensas. Na educação, a recompensa hoje são as verbas, os rankings, os índices, os bônus, etc. Tudo isso é mais valorizado do que as pessoas. Em resumo: o dinheiro, condicionado apenas às notas, vale mais do que a vida humana. É por isso que querem que os professores e os alunos voltem para a sala de aula sem vacina. Isso vale para empresas também. A figura do gestor, é claro, está sempre bem protegida por portas e vidros de carros particulares. Some-se tudo isso ao fato de que estamos no que Walter Benjamin chamava de Estado de exceção permanente, porquanto nunca tenha existido um Estado rotineiro. A atual diretriz é a de um Estado totalitário muito mais perigoso que o da ditadura militar na medida em que agora existem fumos de democracia legitimados pelas urnas que impedem que se reconheça, de modo unânime, a tirania. Se não é possível reconhecer o Estado de exceção, não é possível reagir. Em tal Estado de exceção, existe uma infame contradição em termos: a expressão GESTÃO DEMOCRÁTICA. Nela, um integrante da expressão contradiz o outro: se é democrática, não é gestão; se é gestão, não é democrática. Outros exemplos de contradição em termos: SUBIR PARA BAIXO, DESCER PARA CIMA, ILUSTRE DESCONHECIDO. Segundo Marilena Chauí, no neoliberalismo econômico, o gestor pode ser identificado com o gângster, que não é democrático. Em última análise, querem impor ao servidor público, mais do que já impõem, os critérios ideológicos, e não científicos, da gestão, cujo signo é aquele sob o qual operam as organizações privadas, que só querem lucro.

O mercado financeiro, que detesta a manutenção de direitos sociais, já deu várias provas de que só pensa em dinheiro; contudo, contra ele a classe média conservadora não se atreve a vociferar, mesmo que dela tire poder de compra. Essa mesmíssima classe média, que reclama dos impostos, mas nunca do capitalismo financeiro, é contra tais direitos. É uma pena: por estar muito mais próxima, em termos de renda, dos mendigos do que dos milionários, cujo universo é o sonho da classe média, não votaria em políticos de direita. Infelizmente, acha que é imune à mais-valia, apesar de sofrer constantemente com o pouco rendimento da poupança e com a inflação. Se todos os governos federais do mundo tivessem a cabeça tacanha de tal classe social, voltaríamos a um tempo em que “os impostos representavam menos de 10% da renda nacional em todos os países no século XIX até a Primeira Guerra Mundial” (PIKETTY, 2014, p. 462, tradução de Monica Baumgarten de Bolle). “Isso significa”, afirma Thomas Piketty (idem, ibidem), “que o Estado se envolvia muito pouco na vida econômica e social”. E conclui, no mesmo parágrafo:

 

Com 7-8% da renda nacional, era possível cumprir as grandes funções soberanas (polícia, justiça, exército, relações exteriores, administração geral etc.), mas não muito mais do que isso. Uma vez financiados a manutenção da ordem, o respeito ao direito à propriedade e as despesas militares (que representavam muitas vezes quase a metade do total), não sobrava muita coisa nos cofres públicos. Nessa época, o Estado custeava algumas estradas e infraestruturas mínimas, bem como certo número de escolas, universidades e hospitais, mas os serviços públicos de educação e de saúde acessíveis à grande massa quase sempre eram bastante básicos (PIKETTY, 2014, p. 462, destaques meus).

 

Diante dos dados fornecidos pelo economista Thomas Piketty, fica claro que a reforma só é do gosto dos que são a favor de um Estado mínimo para a população e máximo para o capitalismo financeiro. A “reforma”, é claro, não atinge o poder judiciário nem as forças militares, responsáveis pelas funções soberanas. A vigilância policial, como se sabe, é uma das poucas coisas que os neoliberais e a classe média conservadora aprovam no Estado. Parece que, aos poucos, somos empurrados de um penhasco em nome de um regresso às diretrizes que inviabilizam um Estado social que faça a necessária e indispensável intervenção no mercado.

Insisto em dizer que os magistérios públicos que são responsáveis pelo currículo propedêutico da educação básica e os professores universitários, principalmente os de Ciências Humanas, são particularmente vulneráveis à “reforma”, mesmo que se diga que não será retroativa por só poder valer para quem ainda vai ingressar no serviço público. É preciso entender que o trabalho de tais magistérios sempre teve valor intrínseco, porque, ao contrário do serviço doméstico e das profissões liberais, não segue a lógica utilitarista, que é a lógica econômica. Ora, a economia (da qual o mercado é só uma fração, uma fração mesquinha) é a produção de bens e serviços; portanto, é o suporte da própria vida. Esta, é claro, é mais importante do que qualquer diploma. O utilitarismo não é obrigatoriamente ruim, pois é ele que tem que ver com as relações que garantem, tanto no meio urbano quanto no rural, o suporte da vida. No entanto, ao ser levado ao paroxismo, o utilitarismo obriga o professor a seguir uma lógica operacional que o leva à alienação. Esqueceu-se, por exemplo, de que escola é lugar de ócio, o tempo livre sem o qual ninguém pode estudar nem produzir reflexões de que a sociedade precisa; assim, dificulta-se ou inviabiliza-se o trabalho intelectual. Não é por acaso que Marilena Chauí já apontou o fato de que a universidade se tornou uma universidade operacional, pautada nos valores de mercado, que são ideológicos, e não científicos. A escola pública de educação básica, hoje, é a mercoescola, conforme os estudos de Vera Corrêa (2000, p. 118). De fato, há quem sustente que a escola particular é melhor por ser financiada por seus clientes. Se fosse mesmo verdade, o McDonalds, cujo modelo de negócio tem sido imposto às franquias de escolas particulares e à escola pública, seria referência mundial e incontestável em boa nutrição e boa saúde.

Quem leu o livro Globalização e neoliberalismo: O que isso tem a ver com você, professor?, de Vera Corrêa (Rio de Janeiro: Quartet, 2000) sabe o sofrimento do magistério público. Não é por acaso que, de acordo com notícia do site Nova Escola, 66% dos professores ficam doentes e se afastam para tratamento da própria saúde. Diz a autora (que coletou dados em entrevistas):

 

Nas falas das professoras sobre as mudanças na função social da escola pública nesta década persistiram as imagens já retratadas: insatisfação quanto às condições de trabalho docente (como baixos salários, aumento da jornada de trabalho, etc.) e relacionadas com a organização do processo de trabalho na escola (como relações de poder e controle, fragmentação e formas de resistência das professoras) (CORRÊA, 2000, p. 119-20).

 

            Que professora nunca tirou dinheiro do próprio bolso para elaborar e distribuir provas? Que professor nunca levou trabalho em excesso para casa? Mesmo assim querem lhe tirar a pouca estabilidade que lhe resta! Mas há mais, muito, muito mais:

 

Os professores perderam uma série de direitos que haviam conquistado ao longo de anos de luta do magistério, até mesmo o da estabilidade [...].

            As professoras nos disseram que, como a “vida piorou”, uma das saídas encontradas foi reorganizar seus gastos, restringindo-se ao estritamente necessário para sobrevivência, o que significa “cortar” o lazer, viagens, cursos, jornais, revistas e livros pedagógicos, etc. Outras passaram a complementar sua renda vendendo bijuterias, revistas, roupas, salgadinhos (CORRÊA, 2000, p. 142-3, destaques meus).

 

            Vera Corrêa acrescenta (2000, p. 143, destaques meus): “Vivem com medo, numa tensão permanente do marido ter emprego ou não. Acham que todos interferem no seu trabalho restringindo a autonomia do professor”.

            A pior de todas as realidades é a do professor que trabalha como D. T.. Em sua dissertação de mestrado, Margaret Jann (2016, p. 6), que examinou as relações de trabalho temporário na rede municipal de Cariacica, ES, revela isto:

 

A pesquisa evidenciou que os professores contratados passam por experiências de competição entre os pares para acessar uma vaga de trabalho; há uma fragilidade na acolhida destes professores nas unidades educativas e tensões vão se estabelecendo ao final do contrato, o que traz um sentimento de impotência diante das lógicas de contratação temporária que vão se naturalizando no trabalho docente.

                A pesquisadora Margaret Jann tem todos os panos para as mangas: faltam concursos públicos para o provimento de cargos efetivos dos magistérios públicos, de modo que o contrato de D. T., que deveria ser a exceção, virou regra (cf. JANN, 2016, p. 92). Não foi por acaso que

 

O Plano Municipal de Educação de Cariacica — Lei nº 5.465, de 22 de setembro de 2015 — traçou em sua Meta 18 estratégias para estruturar a rede pública de educação básica de modo a buscar, no decorrer de 2 (dois) anos de vigência do PNE, [que] 90%, no mínimo, dos respectivos profissionais do magistério sejam ocupantes de cargos de provimento efetivo (JANN, 2016, p. 85-6).

 

 

Como podemos ver, o professor da educação básica é particularmente vulnerável às ameaças ao serviço público. Uma prova disso (como se de mais uma precisássemos) é o que aconteceu com uma professora da rede municipal de Macaé (RJ), que quase teve de responder a um processo administrativo sem que sequer cogitassem de uma sindicância! O motivo: exibira o filme Besouro, que aborda temas ligados a religiões de matriz africana. Bastou uma única denúncia. Na visão de um grupo de sectaristas evangélicos, cujo “parecer” seria colegiado, tal professora certamente teria demonstrado um “mau” desempenho.

Outra evidência de fragilidade do magistério público está no que aconteceu na rede estadual de ensino do Paraná: Segundo notícia veiculada em 6 de outubro de 2019 pelo site Plural, pedagogas estariam vigiando professores em sala de aula. Em tempos de Escola Sem Partido, pedagogas evangélicas e disseminação dos dizeres de Olavo de Carvalho, isso só pode soar como forma de desrespeitar a liberdade de cátedra do professor, garantida por lei. Se, no entanto, ele insiste em se manifestar contra o nazifascismo que se consolidou no Brasil, é tachado de “doutrinador”. (Os que o chamam de “doutrinador” não entenderam que é intransferível a consciência política: assim como o conhecimento, não pode ser doada a ninguém.)

Esses e outros casos denotam que é ruim o projeto Escola Sem Partido, mas é mil vezes pior o conjunto de crenças e hábitos cristalizados no dia a dia de muitas e muitas escolas. Tal conjunto é o currículo oculto, que já é legitimado pela pedagogia moderna: basta olhar o site Gestão Escolar, cujo nome já deixa claro a que veio tal pedagogia. No site, existe um artigo bem sugestivo (de 15 de junho de 2020): “O papel da gestão escolar na Educação empreendedora”.

Com uma pedagogia que fala de protagonismo estudantil, o aluno se torna um ser narcisista, egoísta e egocêntrico, em qualquer nível de ensino. Valoriza-se mais o que ele tem a dizer do que o que sabem os professores; valoriza-se mais a socialização e se exalta o oba-oba da licenciosidade, quando deveria ser valorizada a interação com os ditos dos livros, dos artigos e dos professores. Não é por acaso que o aluno se tornou cliente do professor, e o cliente, como já disse o autor do artigo que mencionarei adiante, tem sempre razão. O aluno não quer estudar: quer consumir o produto do professor, um reles serviçal, um mero peão do ensino. Na didática tradicional, ao contrário, prevalece, graças à maiêutica, a voz de quem pode criar as possibilidades de construção de conhecimentos que os alunos jamais imaginariam — daí a importância da estabilidade, inerente à cátedra.

Tal estabilidade, porém, está sendo cada vez mais ameaçada até mesmo no meio acadêmico, em que doutores disputam contratos temporários, que decididamente não lhes dão estabilidade nenhuma. Malgrado o fato de os campi ainda darem mais autonomia ao professor, isso tem mudado. Num artigo muito arrazoado, cujo título é Parece revolução, mas é só neoliberalismo, publicado em janeiro deste ano (2021), relata o autor casos de impolidez e perseguição dirigidas a professores universitários. Tais atitudes partem de alunos de esquerda, e são muito mais perigosas na medida em que são revestidas com todos os fumos de progressismo. Tal comportamento é uma cultura, ou seja: é um modo de vida, um modo baseado no individualismo, que “foi e continua de certo modo querendo ser o eixo da moral burguesa” (CÂNDIDO, 1954, p. 4). Que podemos dizer disso? O mesmo que podemos dizer da seguinte manchete, disponível no site Exame desde 24 de março de 2019: “Por insegurança, professores universitários pedem ajuda para deixar Brasil”. Outra afronta que nos deixa estarrecidos é a ideia de fazer um canal de denúncias contra o professor que “atente” contra a moral, a religião e a “ética” da família, ideia proposta por Damares — que não é gabaritada para falar de educação escolar.

Por tudo quanto ficou dito, podemos nos consolar com o fato de que não se confunde a governança com o Estado em si: se isso acontecesse, estaríamos cometendo um erro idêntico ao dos medievais, que confundiam a figura do rei com o próprio Estado-Nação. Contudo, estamos diante das mais assustadoras e potencialmente aniquilantes ameaças ao servidor e aos serviços públicos. Já perdemos bastante. A estabilidade do regime estatutário ainda é o nosso último bastião, principalmente no que concerne aos magistérios. Mesmo que a “reforma” não seja retroativa, todos nós sairemos perdendo. Carecemos de uma resistência planejada, institucionalizada e científica aos retrocessos do governo, uma resistência que supere o espontaneísmo das redes sociais (e talvez possa contar com o apoio da indústria de cursinhos preparatórios, que perderá muito se for bem-sucedido o ataque à estabilidade). Quantas vezes por dia usamos as expressões Social Democracia, Estado do Bem-Estar Social, coalizão e neoliberalismo econômico? Quantas vezes por dia, em conversas banais, enunciamos e exemplificamos tais termos? Seja como for, eu, que consegui o pouco que tenho unicamente com meu esforço, motivo pelo qual minha trajetória é baseada tão só no mérito e na solidariedade de amigos verdadeiros, por nunca depender nem de partidos, nem das relações de compadrio e poder, tão do gosto do fisiologismo político, sugiro sejam demitidos todos os políticos e só assumam os seus cargos pessoas aprovadas em concursos públicos. Só para elas deverá valer a regulamentação da previsão constitucional de demissão por mau desempenho (mau para o povo, e não para a elite financeira, que o que é bom para ela é mau para ele). Com ou sem tal reforma política, que pouparia muito dinheiro dos cofres públicos, poderemos ter certeza de que os deputados, os senadores e o eleitor que apoiam o fim da estabilidade do servidor são indivíduos ressentidos: os políticos o são por não poderem fazer com o servidor o que lhes dá na veneta; o eleitor, por não ter competência para passar num concurso público; por isso querem vingança.

 

Referências:

 

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. 8ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1999-2008.

 

BRASIL. Artigo 41 da Constituição da República Federativa do Brasil. Garante a estabilidade do servidor estatutário. In: Site do Senado. Disponível em: <https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_03.07.2019/art_41_.asp#:~:text=Altera%C3%A7%C3%A3o-,Art.,em%20virtude%20de%20concurso%20p%C3%BAblico.&text=1-,%C2%A7%201%C2%BA%20O%20servidor%20p%C3%BAblico%20est%C3%A1vel%20s%C3%B3%20perder%C3%A1%20o%20cargo,lhe%20seja%20assegurada%20ampla%20defesa.>. Acesso em: 1º fev. 2021.

 

CGU: Servidores de Caixa, Correios e Dnocs são demitidos por improbidade e enriquecimento ilícito. In: Site do jornal Extra. 22 dez. 2008. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/brasil/cgu-servidores-de-caixa-correios-dnocs-sao-demitidos-por-improbidade-enriquecimento-ilicito-629823.html>. Acesso em 2 fev. 2021.

 

Canal para denunciar professor é anunciado. In: Site da Istoé. 19 nov. 2019. Disponível em: <https://istoe.com.br/canal-para-denunciar-professor-e-anunciado/>. Acesso em: 3 fev. 2021.

 

CÂNDIDO, Antonio. Monte Cristo ou da vingança. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde e da Educação; Departamento de Imprensa Nacional, 1952.

 

CORRÊA, Vera. Globalização e neoliberalismo: O que isso tem a ver com você, professor?. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.

 

Contra a universidade operacional. In: YouTube. 20 mar. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TNQg95QIvsQ&ab_channel=EnspFiocruz>. Acesso em: 3 fev. 2021.

 

Demissão de servidores. In: Agência Brasil. 20 out. 2014. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2014-10/corrupcao-e-uma-das-principais-causas-de-demissao-de>. Acesso em: 2 fev. 2021.

 

ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. Tradução de Antônio de Pádua Danesi e Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2007.

 

FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: uma história de vida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

 

Funcionários públicos podem ser demitidos mesmo sem “justa causa”. In: Correio Braziliense. 3 nov. 2016. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2016/11/03/internas_economia,555744/funcionarios-publicos-podem-ser-demitidos-mesmo-sem-justa-causa.shtml>. Acesso em: 1º fev. 2021.

 

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[1] Licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de duas redes públicas.