quarta-feira, 16 de maio de 2018

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PEÇA "A CLOACA", DE PAULO JORGE DUMARESQ


          Toda crítica precisa ser fundamentada.  Isso quer dizer que não pode ser baseada apenas em gostos pessoais nem apenas em impressões.  Não pode, em tese, ser meramente valorativa.  Hoje, no entanto, talvez eu faça uma exceção para quebrar meu código de conduta.  É que em 2017, na Casa Brasil de Imbariê, foi encenada a peça A Cloaca, um triste espetáculo de cenário grosseiro, diálogos exagerados, coerência interna duvidosa e símbolos que não passam de personificações moralistas da humanidade, uma abstração eurocêntrica e judaicocristã que condiciona a intenção do autor, cujas personagens se dirigem ao público: este é interpelado de modo incômodo por aquelas.
            A produção de sentidos, é claro, é fruto da interação: o público interage com a peça, em que, num fim de mundo, Pérfido, na abertura, simula a excreção.  Nota-se que se trata de uma baixaria feita apenas para apelar.  Apelar, aliás, é lugar-comum na sociedade do espetáculo, em que prevalece o oba-oba das artes visuais e dos sentidos.  A razão quase não é praticada.  Não por acaso a peça foi apresentada em Imbariê num ano em que a Biblioteca Pública de Imbariê está fechada devido ao danos causados no prédio por uma chuva, que destruiu boa parte do acervo.  Mas voltemos à indigna peça: nela conversam as personagens Soberbo, Modesto, Pérfido e Tristânia (três homens e uma mulher).  Tristânia é uma bela mulher que se envolve num triângulo amoroso.  Sua roupa de baixo fica guardada numa caixa, que pertence a um dos homens.  Ela é estuprada por Soberbo na presença de Pérfido.  O estupro é vingança contra Tristânia e seu namorado, já que ela preferiu Pérfido a Soberbo.  Até hoje não sei como não senti náusea diante da cena de estupro.  Tristânia fica de quatro e o ator que representa Soberbo simula a penetração por alguns minutos.  Detalhe: no folheto de anúncio da peça, não havia classificação indicativa de idade.  A única mulher da peça é disputada como um objeto.  Essa é a moral machista do texto.  Uma crítica feminista pode analisar muito melhor essa parte.  Eu, que não entendo desse tipo de crítica, posso apenas ficar com a advertência de Machado de Assis, que não queria ver o Naturalismo no teatro.  Agora sei por quê.
            Não há alegoria, pois não há nada para decifrar: há apenas personificações óbvias e grosseiras de uma humanidade com a qual eu decididamente não me identifico.  O linguajar rebuscado, marca de certas identidades, erra a mão em alguns pontos da encenação a que assisti: em alguns momentos pode ter sido praticada a incompatibilidade de registros.  Parece que ela é o que acontece quando se misturam os registros formal e informal.  E não há verossimilhança que justifique isso: a proposta é a de mostrar personagens pedantes: Soberbo não é o único a apresentar uma retórica sofisticada.
            A coerência interna do texto é questionável: Afinal, a cloaca é o fim do mundo?  Se sim, há imanência ou transcendência?  Não há nada que indique uma coisa ou a outra.
            A conclusão a que chego é a de que o autor queria montar cenas de conflitos, justificadas por um contexto qualquer.  Intrigas amorosas e sexo atraem público, que de brinde recebe um verniz pseudofilosófico.
            Espero que nunca mais encenem A Cloaca em Imbariê.  Este povo não precisa de peças pessimistas nem de personagens que perguntem qual é o sentido da vida ao público.  (Curiosamente, uma das respostas contemplou a família e Deus, ou seja: o senso comum, ou seja ainda: o status quo.)  O povo precisa de uma ficção que lhe dê esperança e nele desperte raciocínios, e não de um texto que apenas reforce o quão nefasta é a humanidade.

(Márcio Alessandro de Oliveira.  Imbariê, 17 de maio de 2018.)

Um comentário:

  1. Bom saber que "A cloaca" lhe incomodou. Continue exercendo a crítica. É muito salutar para o teatro.

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