Toda crítica precisa ser
fundamentada. Isso quer dizer que não
pode ser baseada apenas em gostos pessoais nem apenas em impressões. Não pode, em tese, ser meramente
valorativa. Hoje, no entanto, talvez eu
faça uma exceção para quebrar meu código de conduta. É que em 2017, na Casa Brasil de Imbariê, foi
encenada a peça A Cloaca, um triste
espetáculo de cenário grosseiro, diálogos exagerados, coerência interna
duvidosa e símbolos que não passam de personificações moralistas da humanidade,
uma abstração eurocêntrica e judaicocristã que condiciona a intenção do autor,
cujas personagens se dirigem ao público: este é interpelado de modo incômodo por
aquelas.
A
produção de sentidos, é claro, é fruto da interação: o público interage com a
peça, em que, num fim de mundo, Pérfido, na abertura, simula a excreção. Nota-se que se trata de uma baixaria feita
apenas para apelar. Apelar, aliás, é
lugar-comum na sociedade do espetáculo, em que prevalece o oba-oba das artes
visuais e dos sentidos. A razão quase não
é praticada. Não por acaso a peça foi
apresentada em Imbariê num ano em que a Biblioteca Pública de Imbariê está
fechada devido ao danos causados no prédio por uma chuva, que destruiu boa
parte do acervo. Mas voltemos à indigna
peça: nela conversam as personagens Soberbo, Modesto, Pérfido e Tristânia (três
homens e uma mulher). Tristânia é uma
bela mulher que se envolve num triângulo amoroso. Sua roupa de baixo fica guardada numa caixa,
que pertence a um dos homens. Ela é
estuprada por Soberbo na presença de Pérfido.
O estupro é vingança contra Tristânia e seu namorado, já que ela
preferiu Pérfido a Soberbo. Até hoje não
sei como não senti náusea diante da cena de estupro. Tristânia fica de quatro e o ator que
representa Soberbo simula a penetração por alguns minutos. Detalhe: no folheto de anúncio da peça, não
havia classificação indicativa de idade.
A única mulher da peça é disputada como um objeto. Essa é a moral machista do texto. Uma crítica feminista pode analisar muito melhor
essa parte. Eu, que não entendo desse
tipo de crítica, posso apenas ficar com a advertência de Machado de Assis, que
não queria ver o Naturalismo no teatro.
Agora sei por quê.
Não
há alegoria, pois não há nada para decifrar: há apenas personificações óbvias e
grosseiras de uma humanidade com a qual eu decididamente não me identifico. O linguajar rebuscado, marca de certas
identidades, erra a mão em alguns pontos da encenação a que assisti: em alguns
momentos pode ter sido praticada a incompatibilidade de registros. Parece que ela é o que acontece quando se
misturam os registros formal e informal.
E não há verossimilhança que justifique isso: a proposta é a de mostrar
personagens pedantes: Soberbo não é o único a apresentar uma retórica
sofisticada.
A
coerência interna do texto é questionável: Afinal, a cloaca é o fim do
mundo? Se sim, há imanência ou
transcendência? Não há nada que indique
uma coisa ou a outra.
A
conclusão a que chego é a de que o autor queria montar cenas de conflitos,
justificadas por um contexto qualquer. Intrigas amorosas e sexo atraem público, que de
brinde recebe um verniz pseudofilosófico.
Espero
que nunca mais encenem A Cloaca em
Imbariê. Este povo não precisa de peças
pessimistas nem de personagens que perguntem qual é o sentido da vida ao
público. (Curiosamente, uma das respostas
contemplou a família e Deus, ou seja: o senso comum, ou seja ainda: o status
quo.) O povo precisa de uma ficção que
lhe dê esperança e nele desperte raciocínios, e não de um texto que apenas
reforce o quão nefasta é a humanidade.
(Márcio Alessandro de
Oliveira. Imbariê, 17 de maio de 2018.)
Bom saber que "A cloaca" lhe incomodou. Continue exercendo a crítica. É muito salutar para o teatro.
ResponderExcluir