segunda-feira, 6 de abril de 2020

Carta aberta ao departamento de Educação e ao de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba: Nota de advertência e repúdio às possíveis concepções subjacentes à jornada “A sala de aula no contexto das transformações culturais e tecnológicas: práticas pedagógicas inovadoras”




“Nas falas das professoras sobre as mudanças na função social da escola pública nesta década persistiram as imagens já retratadas: insatisfação quanto às condições de trabalho docente (como baixos salários, aumento da jornada de trabalho, etc.) e relacionadas com a organização do processo de trabalho na escola (como relações de poder e controle, fragmentação e formas de resistência das professoras). Atribuíram a culpa à própria escola e a seus professores, o que equivale a culpar as vítimas.”

(Vera Corrêa, 2000, p. 119-20.)

            Senhores professores que presidiram à supracitada jornada ou que nela tenham palestrado:

            As considerações aqui tecidas tratam de um evento que não testemunhei. No entanto, estou me baseando em notícia publicada no site da própria UEPB, que é oficial e, portanto, obviamente conta com o aval de Vossas Senhorias.
            Chama atenção o título da jornada: em nenhuma parte se nota uma referência explícita ao neoliberalismo econômico. Como a escolha de palavras nunca é neutra, fica implícito que quem palestrou na jornada está, consciente ou inconscientemente, filiando-se à ideologia da universidade e da escola (lugar de ócio para os gregos da Antiguidade) operacionais e, assim, está sendo útil ao discurso neoliberal e burguês. O que Vossas Senhorias chamam de transformações eu chamo de série de deturpações impostas de cima para baixo no contexto do neoliberalismo econômico, que impõe a mercoescola (cf. CORRÊA, 2000, p. 118). Senhores professores, o que estou afirmando afirmo de cátedra. Com efeito: não pode ser sério qualquer evento que não entenda a ameaça que o neoliberalismo representa para a educação escolar e para a própria vida.
            Há dois tipos de implícito: o pressuposto e o subentendido. O pressuposto é facilmente comprovável. Exemplo: Fulano é mais alto do que eu (esse é o posto); mesmo que eu não diga, o não-posto, que é o pressuposto, está embutido no posto: Fulano é mais alto, mas eu também sou alto. O subentendido, por sua vez, não pode ser provado, mas as suspeitas são reforçadas pela Análise do Discurso (AD). Aqui estou lidando com explícitos e implícitos: do dito eu vou ao não dito. Este condiciona o sentido daquele. Vejamos os trechos da notícia (são meus os negritos):

Em tempos de revolução tecnológica e profundas transformações culturais, os muros que ainda insistem em separar a educação presencial da educação a [sic] distância precisam ser derrubados de vez. O advento da tecnologia e o uso indispensável dessas novas ferramentas no processo do aprendizado e da construção do saber exigem o fim dessa dicotomia e que os professores ressignifiquem suas práticas. As formas de transmissão dos novos conhecimentos e o impacto dos recursos da modernidade na sala de aula foram debatidos em mais uma edição da Jornada Pedagógica Docente da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

            Insisto em dizer que não há transformações, que elas são paulatinas e até inconscientes: o que existe é uma série de imposições premeditadas, deliberadas e autoritárias por parte do mercado de tecnologia. A metáfora dos muros, a seu turno, não se sustenta, pois a modalidade de Ensino à Distância (doravante EaD) sempre pressupõe a existência da modalidade presencial: uma não pode existir sem a outra, e ambas são previstas e defendidas pela LDB. Obviamente, ao contrário do que pregam as cantilenas do oba-oba pedagógico, a tecnologia e o EaD não vão salvar a educação das mazelas do mercado, que controla o Estado: eles não são soluções simples e mágicas, muito embora a celebração em torno deles dê a entender exatamente isso. Problemas complexos exigem soluções complexas, às quais só chegaremos com muita pesquisa, muita ciência e muita luta política, e não com discursos de autoridade dos departamentos de Pedagogia (ou de Psicologia). Vou me deter bastante na questão da tecnologia e do EaD:
            Em tempos de pandemia e quarentena, é preocupante a imposição da escola particular, que explora sem piedade o corpo docente em nome de lucros e resultados em exames nos quais nem os reitores das universidades públicas passam. Elas exercem muita influência nos conselhos de educação — e até hoje eu não sei como nem por que os representantes das companhias de ensino privado não foram escorraçados de tais conselhos, muito embora o escolanovismo, iniciado no Brasil por Anísio Teixeira, tenha diminuído a predominância das escolas particulares na educação básica, instituições que ficavam nas mãos da igreja católica. A elas pouco importa a qualidade do ensino — qualidade que pode se fazer presente em qualquer modalidade de ensino: o que querem é o dinheiro da mensalidade — por isso implementaram às pressas o EaD. A propósito: Vossas Senhorias têm filhos? Se sim, foram ou estão matriculados em escolas públicas de ensino fundamental e médio? Foram alfabetizados em escola pública? Que educação escolar desejam para seus filhos e outros descendentes? Uma educação mais clássica, conteudística? (que é a que forma professores universitários, médicos, advogados e dentistas). Ou querem uma educação moderna? (responsável pelo fato de muitos médicos hoje não entenderem nada de semiótica, que é a análise dos sintomas). Inger Enkvist, renomada pedagogista sueca, aponta a pobreza de conteúdo dos alunos formados pela lógica da pedagogia moderna, que é neoliberal. Hoje, a Suécia se arrepende de ter negado a letalidade da Covid 19: seguiu a lógica de Bolsonaro, apesar de a população ter uma educação escolar de “excelência” — uma educação que supostamente só um país desenvolvido e amparado pelas tecnologias digitais tem.
Outro fator de preocupação é a extensão da modalidade de ensino à distância. Uma criança de seis anos, já na fase silábica da alfabetização, vai precisar dos pais e das mães, que têm de vender a força de trabalho — ainda que muitas professoras, em sua falta de sororidade (solidariedade entre as mulheres), não percebam isso. Na educação escolar, não existe autodidaxia: a partir do momento em que alguém lê um livro para seguir as instruções e fazer um bolo de cenoura baseado numa receita inédita, esse alguém está se comunicando com outro alguém. A autodidaxia deve existir na natureza ou em situações que não exijam linguagem — e aqui caímos na questão adâmica, ou seja: na questão de Adão: quem foi o primeiro ser humano a falar? Mas, voltando ao ponto, devo dizer que o EaD não é para todos os estágios de desenvolvimento (de que fala Piaget), nem para todos os níveis de ensino, nem para todas as áreas do conhecimento (que, para a Biblioteconomia, são dez), nem para todas as disciplinas.
O que talvez mais causa espanto seja a postura das pedagogas. Com o perdão do aparente machismo e da aparente misoginia: elas sempre falam do que não sabem (até porque muitas nunca assumiram a regência de turmas na educação infantil nem no primeiro segmento do ensino fundamental, embora deem palpite no segundo segmento e no ensino médio). Algumas delas já deram entrevistas em jornais, aos quais revelaram entusiasmo: elogiaram a tecnologia, a modernidade das tecnologias digitais e a sua compatibilidade com as tais “metodologias ativas” (muito embora nunca tenham criado “metodologias” passivas). Essa crença estúpida na tecnologia, tão do gosto do mercado e das escolas particulares para as quais trabalham as alegres pedagogas, toma como modelo o aluno de classe média, que já é vulnerável às mentiras das redes sociais e a uma série de estímulos (distrações); em casa, ficará mais vulnerável às mentiras da imprensa tradicional (como a do caso da Escola Base). O que as pedagogas não percebem, mas as bibliotecárias devem conhecer bem, são os vários conteúdos atitudinais (que, pelo visto, não foram mencionados por pedagoga[1] nenhuma até agora): a disciplina, o senso de responsabilidade, a higiene, o respeito, tudo isso são conteúdos atitudinais. Dentro da cabine de uma biblioteca, por exemplo, um grupo pode se reunir e conversar à vontade; já em outras seções da biblioteca, os indivíduos devem se comportar que nem monges beneditinos; assim, podem seguir as seguintes etapas: interação com conteúdo, explicação, exemplificação, exercício de fixação (avaliação formativa) e revisão — isso, é claro, quando não estiverem na biblioteca pelo puro e simples prazer de ler, que, como diria Ziraldo, é mais importante do que estudar. Numa era de cliente-aluno, adolescentes mimados, crianças insuportáveis, pais grosseiros e politicamente analfabetos e tantos estímulos audiovisuais, a tecnologia mais atrapalha do que ajuda. Que adolescente vai ficar cinco horas assistindo às aulas ou lendo aulas escritas, quando há dezenas e dezenas de janelas para o mundo muito mais atraentes na Internet? Essa pergunta também vale para as crianças. E, se não estudam, a Pedagogia moderna, com o aval “científico” dos departamentos de Pedagogia, pede a mão do professor à palmatória: a culpa é dele por não ter mudado a “metodologia”.
(A palavra metodologias foi tão banalizada na educação, que agora está vazia de significado condizente com o que deveria significar, enunciar ou representar. Quando é usada por “especialistas”[2], o único sentido que a ela atribuo na desagradável interação verbal que se dá entre mim e os seres pedantes é que ela (a palavra) se tornou um pedantismo na boca e no teclado de quem tenta dar ares científicos ao que dizem sem substância nenhuma. O termo mais preciso para designar o que se faz em sala de aula e no EaD é procedimentos de ensino; e, do ponto de vista funcional (e não do estrutural ou composicional), a avaliação feita com o propósito de construir ou formar o conhecimento chama-se avaliação formativa. Um exemplo de avaliação formativa é o dever de casa. (Se é feito de questões discursivas, de exercícios de preenchimento de lacunas ou de questões objetivas, então estamos diante da estrutura composicional da avaliação escrita.) Como os “especialistas” em educação (cujo grau de letramento, aliás, tem deixado a desejar) não querem se deter nessas reflexões, escolhem o primeiro pedantismo da moda que lhes ocorre e usam-no para designar elementos complexos que formam um conjunto mais complexo ainda. É que não gostam de pensar, nem de estudar, nem de ler, nem de qualquer outra atividade que dê trabalho.)
Enquanto isso, as bibliotecas deixam de existir dentro da escola e fora dela. Pensam as pedagogas que a tecnologia do smartphone é mais barata e mais ecologicamente sustentável do que a tecnologia de Gutenberg, conquanto os tablets e os smartphones sejam muito mais caros (compare-se o preço deles com o salário mínimo) e contenham componentes químicos despejados aos montes na medida em que são descartados os pedagogicamente messiânicos aparelhos de silício. A bibliotecária, esta fica sem emprego ao mesmo tempo que se gera a paralisação do pensamento crítico, que depende de bibliotecas tanto quanto a pesquisa.
A respeito da destruição das bibliotecas públicas (das pouquíssimas que tínhamos), como a de Alexandria, cabem as considerações do professor Ronaldo Lima Lins (2017, p. 21): “separar e isolar bibliotecas de seus leitores representa o maior dos fascismos. É como se uma determinação de governo tivesse a pretensão de imobilizar o pensamento”. Acrescente-se o que ele diz sobre o que, para mim, só pode ser uma docilização das vítimas das tecnologias de informação imediata:

Nada de arrancar da mão do leitor, à força, os seus objetos de prazer [os livros]. Não. Para que polícia, canhões, salas de tortura, se existe a possibilidade de obter a adesão do alvo, do próprio sujeito das preocupações? Nesse caso, a tecnologia, mais do que a violência, de cilada pode se transformar em aliada [do poder das classes dominantes] (idem, ibidem, p. 15).

De acordo com a filósofa Marilena Chauí, esses aparelhos e a rede para a qual são janelas são instrumentos de vigilância e controle em escala planetária. Entende-se com isso que as novas tecnologias são mais vigilantes que o Grande Irmão, do romance 1984, de George Orwell. A diferença é que, no mundo real, cujas distâncias são reduzidas às de uma aldeia graças ao ciberespaço, não estão a serviço de um Estado totalitário, mas sim de um mercado totalitário. Basta ver os anúncios e as propagandas que as empresas nos mandam com base neste ou naquele perfil em que enquadram cada um de nós. É justamente por isso que não são libertárias as redes, sobre as quais seus usuários não têm controle pelo motivo óbvio de que não as produzem nem as detêm. Eles produzem sentidos, mas não produzem notícias: a interação com os textos do ciberespaço se dá na forma do consumo de informações dentro do imediatismo cotidiano.
Não é discutido o aspecto mercadológico; entretanto, é inegável que são muito caras as novas tecnologias, adquiridas mediante dezenas de parcelas, cujos juros enriquecem apenas um sistema financeiro que até hoje não paga impostos proporcionais ao lucro que obtém. O efeito, infelizmente, é a celebração intelectual em torno da falsa liberdade das tecnologias digitais e suas redes de comunicação, que escravizam seus usuários. “Liberdade”, diz o aviso profético que George Orwell inseriu no seu 1984 (tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn, 2014, páginas 14 e 27), “é escravidão”. Essa escravidão é anestesiada pela ilusão de status e ascensão social gerada pela compra da tecnologia.
Segundo o professor Kawamura, as novas ferramentas tecnológicas causam essa ilusão e assim acabam amansando os países subdesenvolvidos. Estes não as produzem: dentro do contexto da globalização, vivem da exportação da matéria-prima com a qual se fabricam celulares e os importam. É essa a condição que nos é imposta pela divisão internacional do trabalho, que nos torna dependentes da tecnologia imaginada e fabricada por países desenvolvidos. A educação, é claro, seria um dos caminhos para a superação desse imperialismo, mas o Banco Mundial, segundo textos de divulgação científica reunidos no livro Gestão democrática da educação, relega ao Brasil uma diretriz economicista voltada para a formação de mão de obra barata e “qualificada” na educação básica, na qual se deve investir o mínimo para obter o máximo. Para o Banco Mundial, educação é apenas custeio. Sem investimentos no ensino superior, não haverá bons professores nos ensinos infantil, fundamental e médio; da mesma forma, também não haverá pesquisa, sem a qual o Brasil não pode inventar tecnologia própria.
Somem-se a isso tudo a ausência de uma tradição de leitura de livros e a falta de boas bibliotecas públicas. A BNCC reconhece bem as tecnologias digitais[3], porém se dirige a quem a lê como se já houvesse uma base sólida de bibliotecas e bibliotecários em escolas públicas e uma massa quantitativamente expressiva de pessoas que leem textos literários, cada vez mais invisibilizados pela mídia de massa e seu fruto mais perigoso: a desliteraturização (perda do prestígio da literatura). Não é à toa que o Google nos oferece resultados obscenos, tais como: “Professores não leem” (Gazeta do Povo, 2013) e “Por que professor não gosta de ler?” (Revista Educação, 2011). No dizer do estudioso Martins (citado por Bethania Mariani, professora da Universidade Federal Fluminense, no seu curso de Linguística e leitura), chegamos ao fim do século XX assolados pela eletrônica sem a consolidação de uma tradição de leitores de textos.
Marisa Lajolo, por sua vez, registra no livro Do mundo da leitura para a leitura do mundo que, certa vez, um indivíduo foi questionado por causa do seu hábito de ler. O interlocutor não entendia a razão de ser daquela atividade, por ele associada exclusivamente ao padre e ao farmacêutico (ou a um profissional próximo da área de atuação deste último). Como o leitor interpelado não era nem uma coisa nem a outra, não fazia sentido que lesse. Não censuro o interlocutor que estranhava uma pessoa que lia: ele, assim como tantos outros brasileiros, vive num país sem bibliotecas públicas e sem bibliotecários, profissionais nem um pouco encontradiços.
Quem se detiver para esquadrinhar as vitrines, os bancos e os shoppings dos bairros idílicos de Vitória verá que não há nem bibliotecas públicas, nem teatros, nem cinemas que não ofereçam apenas blockbusters. Se as classes médias já vivem em lugares tão miseráveis, os alunos das classes operárias têm sorte muito pior. Nessas condições não é possível formar leitores e leitoras que estabeleçam o diálogo entre o saber erudito (formado pelos conhecimentos filosófico e científico) e o saber popular. Curiosamente, é nas bibliotecas que se acham dicionários, gramáticas e manuais de redação e estilo, ferramentas indispensáveis à tarefa de escrever bem. Pode o aluno usar emojis (que, aliás, são excelentes e muito úteis às intenções de quem pretende construir certos sentidos nos recados escritos), entretanto, mesmo com as tecnologias do século XXI, corre o risco de não dominar uma das maiores tecnologias da humanidade: o sistema de notação sintática, também conhecido como pontuação. Estamos vendo posts e tweets, frutos da tecnologia do século XXI, com uma sintaxe medieval, pois carecem de sinais de pontuação como os textos medievais. Segundo a Arte de pontuar, livro de Alexandre Passos, é tributário dos franceses (em todo ou em parte) o avanço das regras de uso dos sinais de pontuação. Mas é o inglês a língua da Internet, é ele o idioma obrigatório na grade curricular.
É preciso examinar este ponto: a tecnologia oferece muitos estímulos (distrações), ao passo que o estudo exige concentração. Uma vez que o Brasil, um país que é assolado pela herança da escravidão, de que fala o sociólogo Jessé Souza, e que carece de bibliotecas públicas, não criou uma tradição de leitores de textos literários impressos, cabe a pergunta: como formar cidadãos críticos com uma tecnologia importada de países que a fabricam com a matéria-prima que lhes vendemos por um preço baixíssimo? Como fica a liberdade de cátedra do professor, que terá de interagir com alunos cujos pais são politicamente analfabetos? (sim, aqui está sendo feita uma referência aos que votaram em Bolsonaro). Como lidar com o enorme déficit de compreensão textual numa era de imediatismo de redes sociais? Em resumo: como lidar com o atraso que carregamos desde tempos anteriores ao século XIX? (de que nossas elites e nossa classe média ainda não se livraram e reforçam com a tecnologia de ponta do século XXI). Resposta: tais classes são coniventes com o atraso e com a ignorância maciça.
O EaD carece de investimentos: é preciso levar Internet a quem não a tem; da mesma forma, é necessário comprar bons equipamentos, que devem ser experimentados pelos professores antes de qualquer aula; portanto, é um erro fazer tudo às pressas. Mas de que adianta o horizonte, se os alunos pobres têm o beco? As funções absurdamente atribuídas à escola pública e toda a defesa do ensino de horário integral são oriundos do fato de a pólis (a cidade) não ser adequada para amparar os adolescentes e do fato de os pais não suportarem os próprios filhos em casa (eu me refiro apenas a uma parcela dos que podem ficar em casa com eles). Daí a falácia de que o EaD vai gerar “desigualdade social em termos educacionais”. Falácia pura em forma de pedantismo: a despeito da declaração de Salamanca e de leis impostas de cima para baixo, não é a exclusão escolar que gera desigualdade social: a desigualdade e a injustiça sociais é que geram exclusão escolar. A escola é lugar de conhecimento, e por isso não deveria ser centro de assistência social nem local de trabalho do psicólogo: o professor não é assistente social, nem psicólogo, muito menos coach. O que o EaD vai fazer agora é desmascarar a inclusão social às avessas dentro do jogo de cartas marcadas que é a escola dualista; esta, como sabemos, produz mão de obra barata: o EaD vai mostrar que a escola, sozinha, não pode melhorar a sociedade. Quem pensa que pode foi contaminado pelo entusiasmo pela educação, pelo otimismo pedagógico e pelo escolanovismo de Anísio Teixeira, ideias atrasadas e acríticas de quase um século. Finalmente vão perceber que a infraestrutura (pavimentação, transporte, saneamento, água, luz), que é externa ao trabalho de construção de conhecimento feito dentro da escola, condiciona o trabalho docente (que, assim como as leis, as artes e as outras ciências, está dentro da superestrutura). Sem pavimentação, sem água, sem saneamento, sem bibliotecas, sem teatros, sem cinemas, sem direitos políticos e sem direitos econômicos, o EaD não vai aumentar a desigualdade: vai apenas continuar reproduzindo-a, só que sem máscaras.
A respeito da infraestrutura e da superestrutura, precisamos levar em conta os seguintes ditos de Marilena Chauí, registrados no livro Em defesa da educação pública, gratuita e democrática e transcritos pelo Blog do Grupo Autêntica:

Num país onde a concentração da riqueza, as taxas de desemprego, de mortalidade infantil, de desnutrição, de doenças endêmicas, de flagelados por secas e enchentes, os índices de arrocho salarial e de violência rural e urbana atingem proporções inigualáveis, por que iniciar a “justiça social” pela universidade? A não ser numa perspectiva religiosa e piedosa, que evidentemente não é a da burocracia nem a da tecnocracia nacionais, haveria como justificar a alegação do MEC?

            Opõe-se a filósofa, e com razão arrazoadíssima (se me permitem a redundância), ao projeto de privatização da universidade pública (a qual já pratica a lógica neoliberal, que é do setor privado, infelizmente). O que destaquei em negrito, porém, vale para todos os níveis e todas as modalidades de ensino, e não só para o ensino superior. A universidade pública que cobrasse mensalidades não reduziria a desigualdade e, por isso, não pode ser uma fórmula de justiça social. Isso também vale para o EaD[4], que enfrenta os obstáculos em negrito. Não faz sentido confiar tão só à tecnologia, ao EaD e às outras modalidades de ensino a superação da seguinte realidade (são meus os negritos), descrita por Marilena Chauí no supracitado livro:

Num país onde o déficit previdenciário e a corrupção não podem sequer ser calculados, onde as casinholas populares do BNH desmoronam antes de ocupadas e não podem ser pagas depois da ocupação, onde o transporte coletivo carrega gente como se fosse gado e passa por contínuos acidentes fatais, onde trabalhadores pagam pelo FGTS que não lhes é devolvido senão sob ação judicial, onde boias-frias (trabalhando de dez a doze horas diárias, não recebendo sequer salário mínimo, sem as menores garantias trabalhistas e submetidos à violência física patronal) não têm como sobreviver, onde com o desemprego espera-se por volta de 3 milhões de mortos por fome e desnutrição [...].

            Podemos acrescentar outras mazelas e outras crueldades, que também inviabilizam a educação escolar pública, gratuita, democrática e de qualidade, quer seja presencial, quer seja em EaD: “Em várias regiões do país”, declara Roberto Catelli (2013, p. 250-1),

existe a figura conhecida como “gato”. Ele vai à procura de homens e mulheres desempregados ou miseráveis que buscam meios de sustento, propondo-lhes salários, moradia e alimentação. Uma vez no local de trabalho — em geral, fazendas ou beneficiadoras de produtos agrícolas —, essas pessoas devem cumprir longa jornada de trabalho, muito superior às 44 horas semanais legalmente estabelecidas. Cada alimento que o trabalhador recebe é debitado dos seus rendimentos. Ao final do mês, em geral, sua dívida é maior que o salário combinado. A partir daí, o trabalhador é proibido de sair do estabelecimento de trabalho até que pague a dívida. Mas como pagar se todo mês o salário é menor que o devido? Eis o mecanismo de escravização: a dívida. O trabalhador fica preso por dever ao proprietário, e a violência é o recurso utilizado para mantê-lo no local.

José de Souza Martins (1995, p. 1-2), por sua vez, afirma ser fácil “constatar que a modalidade de escravidão [...] por dívida, ou peonagem, é encontrada em diferentes atividades econômicas”.
Quem se detiver para ler o livro Em defesa da educação pública, gratuita e democrática, de Marilena Chauí, vai entender que problemas complexos da educação exigem soluções complexas. Quando a pandemia passar, precisaremos entender que o EaD é bom e indispensável à democratização do ensino, mas ele não pode ser uma solução mágica e simples, que esse tipo de solução é uma farsa. Estamos diante de uma batalha em que precisamos lutar contra o neoliberalismo econômico, que impõe um modelo de escola mercantil e autoritário para ambas as modalidades: para a presencial e para a modalidade de ensino à distância. Na verdade, trata-se de uma guerra em que os professores[5], como guerreiros beligerantes e intrépidos, devem lutar pela liberdade de cátedra e pelos concursos para o provimento de cargos efetivos dos magistérios públicos, que, por sua vez, são condizentes com a esfera dos direitos e da garantia do esteio da educação escolar pública (esteio, e não custeio), gratuita e de qualidade, e não com a lógica neoliberal conservadora do mercado, que impõe salários ainda mais infames do que o de gerações passadas de professores e causa a pauperização do trabalho docente e a ausência de investimentos, sem os quais não teremos cidades decentes nem aparelhos culturais.
            O EaD já existia muito antes do nascimento das tecnologias digitais, mas vai fracassar sem as condições materiais e históricas mínimas, que consistem em oferecer uma infraestrutura minimamente decente aos alunos, o que significa que as medidas do Estado do Bem-Estar Social, inerentes que são à Social Democracia, devem ser levadas a sério, por mais difícil que seja fazer isso num país em que igrejas evangélicas de fundo de quintal se multiplicam que nem ratos. Tais medidas não devem se limitar à escola: devem atingir as moradias, as ruas, as plantações e os salários.
            Voltando ao excerto da notícia, devo dizer que, pelo visto, não houve debate. Foram convidados professores da educação básica? Bibliotecárias também compareceram? Qual é a opinião do Conselho Regional de Biblioteconomia? Foi consultado? Houve direito ao contraditório? A notícia pinta um quadro de ideologia[6], e não de considerações técnicas. Tornemos a analisar o primeiro parágrafo da notícia, em que são usados os termos “uso indispensável dessas novas ferramentas no processo do aprendizado”, “construção do saber”, “que os professores ressignifiquem suas práticas” e “formas de transmissão dos novos conhecimentos”. Parece que estamos diante de uma contradição em termos ou de um princípio de contradição em termos. Essa tal consiste em usar termos de sentidos opostos. Exemplo: Eu vi o ilustre desconhecido. Ora, se é ilustre, não é desconhecido; se é desconhecido, não é ilustre. Outro exemplo: gestão democrática. A gestão é do gosto do mercado e da escola de Chicago, e não da Escola de Frankfurt. Se é democrática, não é gestão; se é gestão, não pode ser democrática. Trata-se da dissonância cognitiva (o duplipensamento, do romance 1984), que é a alimentação de duas crenças opostas no inconsciente. Com efeito: o conhecimento não pode ser transmitido: pode apenas ser construído na interação; por isso a tradicionalíssima e grega maiêutica é a melhor avaliação formativa, além, é claro, de ser dialógica muito antes de os construtivistas e Paulo Freire terem se “apoderado” do conceito. Contudo, não cabe ao departamento dessa universidade dizer que eu devo ressignificar minhas práticas, que não são propriamente pedagógicas, mas sim didáticas. Onde está a minha autonomia? Onde está a minha liberdade de cátedra para decidir o que é indispensável em sala? Segundo o estudioso Turra, os conteúdos específicos de cada disciplina já carregam os métodos de ensino: estes estão embutidos naquele. Qualquer um que diga o contrário disso estará filiando-se à ideologia neoliberal do protagonismo estudantil, que põe, em consonância com o escolanovismo, o aluno no centro de gravidade do trabalho docente ou no centro daquilo que Paulo Freire chama de dodiscência, quando o centro deve ser o conhecimento em si (lembremo-nos dos médicos que não sabem nada de semiótica e que na emergência podem atender a qualquer um de Vossas Senhorias um dia). Contudo, é Turra que diz que deve haver uma alternância: ora o aluno é o centro de gravidade do trabalho didático (como nas pesquisas e nas perguntas que formula), ora é o professor (como na exposição oral da matéria). Não aceito o que é dito de cima para baixo quando não há fundamentação empírica e crítica. Ainda não temos os distanciamentos histórico e reflexivo, sem os quais não podemos celebrar a tecnologia hipermoderna em sala de aula. Até agora, só tenho motivos para blasfemar de revolta.
            É curioso notar que a jornada foi realizada no Departamento de Psicologia. Temos aqui a influência de John Dewey, que deu início ao Escolanovismo, uma das tendências não críticas[7] da Pedagogia. Ele era mais psicólogo do que professor. A psicologização do ensino é um dos fatores do paternalismo[8] que tanto atrapalha a educação escolar, que se uniu ao prolongamento da infância e da adolescência de uma era em que quase não existem mais ritos de passagem. O que estamos vendo é a continuação de um espetáculo grotesco iniciado por John Dewey, psicólogo que criou o Escolanovismo em 1920, há cem anos, portanto — o que quer dizer que fede a mofo e cinzas de cadáver. Carl Rogers, é claro, é mais do mesmo: seguiu os passos do outro. Ora, a Psicologia se preocupa com o esteio mor da moral burguesa: o indivíduo[9]. Não é à toa que temos uma geração narcisista, egoísta, egocêntrica, depressiva e que se mostra vulnerável aos próprios desejos de consumo, como crianças que choram por não conseguirem doces.
Em outras palavras: o que estamos vendo é a consolidação de imposições do Banco Mundial no contexto do neoliberalismo econômico, que nada pode fazer sem o amparo da ciência, já que, conforme o sociólogo Jessé Souza, o poder de hoje precisa do prestígio acadêmico tanto quanto o poder político medieval dependia do medo e da coerção gerados pela Igreja Católica. Os termos metodologias, estratégias, práticas pedagógicas inovadoras e tantos outros termos arrebitados, “científicos” ou “técnicos” não são inocentes nem neutros: são usados a serviço de uma ideologia neoliberal, burguesa e pequeno-burguesa direcionada para o empreendedorismo, que depende de protagonismo, livre iniciativa, pró-atividade e tantos outros absurdos que estão sendo impostos à educação básica e em nada se assemelham com a prática docente que vi na minha formação inicial, já que o professor universitário, felizmente, ainda tem liberdade. De modo intrigante, os mestrados profissionais nem sempre fazem ciência, porque confirmam o oba-oba pedagógico e as “metodologias ativas”. A verdadeira ciência é a que questiona os próprios pressupostos teóricos e segue um método confiável a fim de chegar à verdade — e, uma vez que o método é o caminho pelo qual se chega a ela, os pressupostos teóricos são o guia. Pode-se dizer que não se constrói o alicerce da ciência em terrenos de areia ou superfícies falsas, como, por exemplo, o princípio de que o sol gira ao redor da Terra (paradigma ultrapassado com provas ou evidências). Defender “metodologias ativas”, como se fossem universais — e como se todo professor devesse se adaptar a cada um das suas centenas de alunos —, é defender a perda da cátedra e do prestígio, sem os quais não podem os lentes e os professores da educação básica criar as possibilidades de construção de novas visões sociais de mundo. Com efeito: ninguém exige que o padre, o diretor de cinema, o pastor evangélico e os capitães de navios sejam o que cobram do professor, a quem transferem responsabilidades que são das famílias, dos psicólogos, dos psicanalistas e dos assistentes sociais. Tal transferência é herança do otimismo pedagógico e do entusiasmo pela educação, duas maldições atreladas ao cadavérico e pútrido Escolanovismo e inevitavelmente ligadas a essa porcaria de “metodologia” ativa. Ao invés de quebrar as duas maldições, os mestrados profissionais reforçam-na com palavras mágicas, ou seja: com um vocabulário “técnico” e “científico” que apenas mascara a ignorância e a alienação.
Horas de estudos e dinheiro são investidos na criação de saberes (leia-se: de falsos saberes) que legitimam o que a pedagogia moderna já faz: culpar ou culpabilizar o professor pelo fracasso escolar, atribuído a sua formação “obsoleta” e “jurássica”. O tempo e o dinheiro gasto com o tiro no próprio pé que professores estão dando poderiam ser usados em pesquisas sobre a subproletarização do magistério, sobre os péssimos vínculos em forma de contratos temporários, sobre o baixíssimo número de concursos públicos para o provimento de cargos efetivos dos magistérios públicos, sobre o reduzidíssimo número de vagas nos poucos editais publicados, sobre a pauperização do trabalho docente, sobre a maligna influência que os donos de escolas particulares exercem no Conselho Nacional de Educação, sobre os cursinhos preparatórios de fundo de quintal, sobre a falta de investimentos nas pesquisas das ciências humanas, sobre a importância de Comênio, Herbart e Pestalozzi para o ensino e sobre uma série de mazelas geradas pela direita e pelo neoliberalismo econômico.
As universidades, ao contrário do que queria FHC, o servo fiel do mercado e do neoliberalismo que tentou transferir para os institutos a formação inicial dos professores da educação básica, ainda são as principais responsáveis pela formação dos professores e das professoras e pela pesquisa, que precisam se politizar cada vez mais e com urgência urgentíssima. Têm de fazer isso: do contrário, continuaremos a ser esmagados, as graduações e as pós serão atingidas pelo estúpido oba-oba pedagógico (se é que já não foram), o professor universitário será um coach e as tecnologias de informação imediata — que são instrumentos de vigilância, controle e manipulação de comportamento em escala planetária num verdadeiro exercício de predomínio da função conativa da linguagem (de que fala Jakobson) — vão soterrar de vez quaisquer esperanças de realizar o meu sonho: uma educação escolar formal, amparada pelo ethos catedrático do professor, mais tradicional, mais conteudística e — acima de tudo — humanística.
Destaco que, ao contrário do que diz a notícia, ninguém está retrocedendo para a idade da pedra nem para o giz. Escolas há que nem giz têm! Estão pondo a carroça na frente dos bois. Entramos na modernidade industrial desde os anos 1920-30 (graças, é claro, ao dinheiro público, e não à iniciativa privada, que adora usar o dinheiro arrecadado pelo Estado), mas estamos longe da modernidade educacional — e nenhuma tecnologia digital vai alterar esse quadro sozinha. O texto também parte do implícito de que a modalidade presencial usa o método tradicional, enquanto o EaD não usa, e que o hibridismo consiste em misturar ambos os métodos, quando na verdade quer dizer que devem ser misturadas duas modalidades. Ora, os projetos, iniciados por Freinet num momento histórico bem diferente do nosso, se criam muito à vontade na educação básica presencial, e decididamente Freinet não é tradicional. Confundem alhos com bugalhos. Pelo menos é o que percebo ao ler os trechos abaixo:

A professora Roziane Marinho também se deteve na mesma temática e ressaltou que as novas tecnologias demandam um novo comportamento, um novo perfil e uma nova forma de agir do professor. Ela enfatizou que a revolução tecnológica é visível e não tem como retroceder nem tentar voltar para a “idade da pedra” ou da época do giz e do quadro. “Essa relação entre os letramentos e as mídias digitais e os multiletramentos se entrelaçam no agir didático do professor no cotidiano da sala de aula”, frisou. A professora Vagna Rocha, coordenadora de Ensino Superior da UEPB, reforçou que a Jornada marca o fechamento do semestre com a proposta de pensar um ensino superior cheio de desafios, principalmente frente àas tecnologias. Para ela, cada vez mais a inovação de novas práticas se faz necessária para educar.

            Todos os dizeres registrados no site me levam à seguinte pergunta: Vossas Senhorias estão se referindo ao trabalho do professor universitário (o lente), ao trabalho do professor da educação básica ou ao trabalho de ambos? Caso estejam se referindo a todos os níveis de ensino, foi feita a devida contextualização? Que experiência Vossas Senhorias têm ou tiveram na educação básica? Fiz uma busca simples na Plataforma Lattes. O que encontrei não revela experiência no chão da sala de aula da educação básica por parte de Vossas Senhorias. Mesmo que possam alegar que tudo quanto disseram no evento se limite ao ensino superior, resta o contra-argumento de que a lógica do oba-oba pedagógico é a mesmíssima que a “ciência” tenta impor aos outros níveis e às outras modalidades de ensino; além disso, o que se faz no ensino superior pode abrir um precedente para os ensinos infantil, fundamental e médio.
            Sinto-me ultrajado pela ideia de que estou na idade da pedra por não usar tecnologia de ponta, muito embora, a julgar pelas fotos do site, eu seja muito, muito mais novo do que os que, mesmo que por “acidente”, tenham dito que estou. Ora, desde os jesuítas, que usavam o teatro[10] na catequese dos índios (alguns dos muitos sacrificados do Brasil), prevalece a exposição oral da matéria, marca da didática tradicional. E não importa que o Marquês de Pombal os tenha expulsado: permanece a influência deles, e o que sei fazer é isso, e está de acordo com os conteúdos das minhas disciplinas. Uma delas, a Literatura, na contramão do que diz Roland Barthes no texto Aula, deixou de ser disciplina autônoma no currículo, e até agora ninguém se mexeu para reverter esse despautério. Mas fico com a didática tradicional: prefiro essa tal ao oba-oba tecnológico: é com a tradicional didática que trabalho bem, e ela não é incompatível com o EaD (o dever de casa é praticamente um EaD). Como diria Gil Vicente, prefiro asno que me carregue a cavalo que me derrube. A didática tradicional, aliás, nunca foi transmissiva, porque não se pode transferir conhecimento. O que os tradicionais fazem é criar as possibilidades de construção de conhecimento na interação verbal, durante a qual o ouvinte não é passivo por assumir a atitude responsiva-ativa. E não sou eu quem diz isso: é Bakhtin, linguista graças ao qual se estudam os gêneros textuais[11] e as esferas discursivas.
             Por tudo quanto ficou dito, fica claro que, enquanto não for preparada a infraestrutura, a celebração em torno da tecnologia não vai ajudar a docência ou, na linguagem freiriana[12], não vai ajudar a “dodiscência”, e o Estado — uma instituição, e não uma organização empresarial — não vai preparar as novas gerações para o mundo adulto nem criará as possibilidades de construção de um senso menos individualista e mais voltado para o que é coletivo. Isso, é claro, não vamos construir só com dois elementos que se confundem bastante e que pus no mesmo balaio por fortes motivos: tecnologia e “metodologias ativas”.
            Por fim, aviso que não aceito carteirada nem que desqualifiquem meu texto por não ser enviado a um periódico acadêmico: Fernando Pessoa, Machado de Assis e Bakhtin não mantinham currículo na Plataforma Lattes.
            Sinceramente,

Márcio Alessandro de Oliveira, formado num curso EaD de licenciatura em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de uma rede pública. 6 de abril de 2020 (18º dia da quarentena da distopia gótica não literária).


Apêndice:

Os três tipos de conteúdo

conteúdos atitudinais: são os valores que o aluno constrói e carrega, tais como: respeito para com todos os que estão ao seu redor, respeito à autoridade e à instituição escolares e respeito ao patrimônio;

conteúdos procedimentais: são um conjunto de habilidades, como folhear o índice de um livro ou consultar um dicionário (e não apenas o Google);

conteúdos conceituais: são os conteúdos específicos das diferentes disciplinas.

Os tipos de conteúdo podem se unir: Numa aula de Português, por exemplo, eu posso dizer que não há apenas uma forma de dizer determinada frase, que varia de acordo com vários fatores, dos quais um é o nível de formalidade. A partir disso, eu poderia deixar claro que não há apenas um modelo linguístico correto ou superior aos outros. Dessa forma, eu desenvolveria não apenas um conteúdo específico da disciplina, mas também um valor, isto é: um conteúdo atitudinal. Este, por sua vez, poderia gerar outro: os alunos deixariam de zombar de um colega que tivesse sotaque (conquanto os estudos da fala e os estudos da Sociolinguística não possam nem devam ser reduzidos ao sotaque nem ao vocabulário regionais).
O grande desafio hoje é desenvolver conteúdos atitudinais. Sem eles, os alunos não vão folhear livros, não vão valorizá-los e consequentemente não vão desenvolver os outros dois tipos de conteúdo. Detalhe: os conteúdos atitudinais dizem respeito à ideologia, que não é vista como tal e que está ligada ao currículo oculto.

Os tipos de currículo

Currículo oculto: É formado pelas práticas reais da escola, condicionadas pelo senso comum, pelo poder e, é claro, pela infraestrutura, que é obrigatória e indiscutivelmente econômica. São sutis, e por isso seu caráter curricular costuma ser invisibilizado. Existe o debate entre o currículo propedêutico e o técnico. Este último forma mão de obra barata até hoje com a herança do tecnicismo, enquanto o outro deve estar ligado à infame indústria do vestibular. As injunções econômicas, pelo visto, até hoje não permitiram que a Psicologia tomasse uma medida realmente útil à realização dos sonhos dos alunos, ainda que seja ela o esteio das pedagogas e das psicopedagogas que gostam de dar carteirada: na escola pública, até hoje não individualizou o currículo para cada aluno de acordo com as aptidões dele. Realmente, a ciência nem sempre pode fazer o que deveria.

Os três tipos de avaliação

avaliação diagnóstica: É uma avaliação de sondagem. Não saber, assim como o próprio saber, não é uma doença (com exceção da dislexia e de outras idiossincrasias). Tenta averiguar o que o aluno sabe, o que não sabe, o que é capaz de fazer em prova e se já tem pré-requisitos para as matérias do novo ano escolar, o que se coaduna bem com dois conceitos: o de zona de desenvolvimento proximal, que é formada pelo que o aluno não sabe, mas já é capaz de aprender por já ter os pré-requisitos; e o conceito de zona de desenvolvimento real, formada pelo que o aluno realmente já sabe ou já é capaz de fazer. Tais zonas são taxinomias de Lev Semyonovich Vygotsky, uma das tantas e tantas inteligências que a Rússia, minha segunda pátria-mãe, forneceu ao mundo. Um exemplo: quando uma criança sabe somar, diminuir e multiplicar bem, tais habilidades, devidamente cristalizadas, compõem a zona de desenvolvimento real; a divisão, por sua vez, está na zona de desenvolvimento potencial.

avaliação formativa: É usada para construir ou formar o conhecimento. Todas as atividades em sala são avaliações formativas. Seu objetivo não é proporcionar nota, mas sim fazer com que o aluno expanda a zona de desenvolvimento real. Está diretamente ligada ao método e, consequentemente, à metodologia de ensino.

avaliação somativa: Seu compromisso não é com o conhecimento, mas sim com atribuição e soma de notas.

Referências:

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WESTBROOK, Robert B; TEIXEIRA, Anísio. John Dewey. Trad. José Eustáquio Romão e Verone Lane Rodrigues. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangama, 2010.
               




[1] Faz-se mister distinguir pedagogo e pedagoga do pedagogista e da pedagogista: estes são necessariamente pesquisadores, ao passo que aqueles não.

[2] Tais especialistas confirmam o conceito de intelectual orgânico, de Gramsci. O senso comum conhece tal intelectual por outro nome: formador de opinião. O padre, o pastor evangélico, o economista que defende os ataques neoliberais à previdência, o especialista que fala de moda na televisão e, mais recentemente, o youtuber são formadores de opinião. Que eles se prestem a esse papel infame, coisa é que entendo muito bem: é condizente com sua mesquinha visão social de mundo; mas que profissionais da educação se prestem a esse papel, coisa é que admira e consterna (como diria Machado de Assis).

[3] O que a BNCC chama de TDIC (Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação) eu chamo de Tecnologias de Alienação das Massas Manipuladas Pelo Uso da Função Conativa da Linguagem (TAMMPUFC). Tal função, segundo Jakobson, consiste em alterar o comportamento do receptor da mensagem.

[4] O EaD também mantém forte vínculo com as tentativas ininterruptas de privatização da educação, que é um direito, e não uma mercadoria. Basta ver o sucesso do English Live. Anos de gerativismo e de outras correntes linguísticas não foram capazes de desmascarar as falácias dos cursinhos de idiomas.

[5] As educações escolares (a pública e a privada) herdaram os resquícios da herança da escravidão, da ditadura militar e, hoje, demonstram que conseguiram domesticar o magistério, cuja formação inicial e cuja formação continuada ainda são precárias. O pior é ver a identidade profissional que se construiu: A relação entre o escravizado e o cidadão gregos deu lugar à que havia entre o vassalo e o suserano; esta, por sua vez, foi substituída pelo conflito entre o empregado assalariado e o patrão quando o segundo (ou o protótipo do segundo) ascendeu de classe média mercantil a capitalista industrial. Hoje, testemunhamos um novo salto, dessa vez num abismo frio e lúgubre: o do empreendedorismo que é praticado pelo sujeito que se vê como empresário de si mesmo e que, no Brasil, marcado e até hoje prejudicado pelo regime trabalhista que Portugal aplicou na expansão marítima na contramão do progresso que a Grécia antiga jamais testemunharia (até porque mil anos antes ela aplicava o regime da escravidão), mistura-se com uma série de ideias capitalistas implementadas sem a mínima base, o que nos remete à tese de que em se plantando tudo dá, mas a ela se acrescenta que é como uma maldição. O professor brasileiro, é claro, não é imune a essa imitação servil do american way of life (estilo de vida estadunidense), razão pela qual ele, que há muito deixou de ser equiparado ao sacerdote, ao militar ou a outro agente ideológico de prestígio de Estado, passou a ser o desgraçado vendedor de aulas que tem sido nos últimos tempos, em que, com a regularidade do sol, sofre todos os efeitos danosos da mais-valia, e a isso reage da pior forma: aceita tudo e mais um pouco; até abre cursinho preparatório depois de internalizar a identidade de patrão ou “empreendedor”, como se construção de conhecimento fosse mercadoria. Quanto mais internaliza os valores burgueses, mais subproletarizado fica o magistério — e dessa condição, causada por uma série de fatores, advém uma cascata de efeitos que retroagem sobre a origem, condicionada pelo contexto geopolítico.

[6] Adoto o que diz Marilena Chauí (1997, p. 3), que define ideologia com os termos seguintes: “não é apenas a representação imaginária do real para servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes, como não é apenas a inversão imaginária do processo histórico na qual as ideias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante”. Também adoto o que diz Michael Löwy (1987, p. 12) (que distingue utopia de ideologia e ideologia de visão social de mundo): “O pensamento utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo explosivo. O sentido estreito e pejorativo do termo (utopia: sonho imaginário irrealizável) nos parece inoperante, uma vez que apenas o futuro permite que se saiba qual aspiração era ou não ‘irrealizável’”.

[7] Dermeval Saviani divide as tendências pedagógicas em não críticas, críticas e crítico-reprodutivistas. No entanto, nada me tira da cabeça que todas se dividem em antes e depois do movimento Escola Nova, que era útil aos liberais dos anos 1930.

[8] Paulo Freire era contra a ideia de tia: professora não é tia. Mas ele virou pai ao se tornar patrono da educação: Pai, padre, pátria, patrão, padroeiro e patronato... todas essas palavras são cognatas. Que ironia, não? Pior do que isso é saber que nem sequer era formado em Pedagogia. Na verdade, nunca cursou uma licenciatura: era bacharel em Direito.

[9] Afirma Antonio Cândido (1952, p. 4): “o individualismo foi e continua de certo modo querendo ser o eixo da moral burguesa”. Com efeito: um ensino voltado só para o aluno, além de ser psicologizante, forma uma geração egocêntrica e até narcisista, conforme as afirmações da pedagogista sueca Inger Enkvist. Além disso, o que se percebe em sala de aula é a ausência de vários conteúdos, a saber: os conteúdos conceituais (cuja ausência é causada pela falta de empenho nos estudos), os procedimentais (desvalorização do material didático) e os atitudinais (dano ao patrimônio escolar, desrespeito para com o professor). Sem essas bases, gera-se o otimismo pedagógico (um grave erro) e o professor fica sobrecarregado; por isso no site Nova Escola foi publicada uma notícia segundo a qual 66% dos professores adoecem. Paulo Freire já falava da licenciosidade, que tem sido a tônica do comportamento adolescente. Por essa e por outras razões é preciso levar em conta o que diz Dermeval Saviani, para quem os estudantes devem se apropriar dos saberes filosóficos e científicos, isto é: da cultura erudita; assim, será feita a ponte entre os saberes instituintes, que fazem parte da cultura dos alunos, e os saberes instituídos, representados pela escola.

[10] Uma pedagoga moderna certamente diria que o uso do teatro é uma “metodologia ativa”.

[11] Os Estudos Linguísticos, que, a meu ver, reforçam o banal, o pragmatismo, o imediatismo e a desliteraturização por escolherem os seus tão amados gêneros textuais difundidos pelas mídias de massa, tais como memes, panfletos e tweets, erram a mão ao fazerem tudo isso. Por mais que eles e a pedagogia moderna neguem, estão apenas girando em torno da realidade do aluno sem que ele tenha a oportunidade de conhecer outras realidades. 

[12] Graças ao último acordo ortográfico, escreve-se freirIano, e não freirEano.

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