sábado, 15 de maio de 2021

Do pessimismo de Augusto dos Anjos (1884-1914) ao otimismo de Rainer Rilke (1875-1926): um breve ensaio comparatista

 
Do pessimismo de Augusto dos Anjos (1884-1914) ao otimismo de Rainer Rilke (1875-1926): um breve ensaio comparatista
 

Márcio Alessandro de Oliveira[1]

                                      
           
            Ensina François Jost (1994, p. 334-347) que a escolha de temas e a influência entre os autores são métodos dos estudiosos da Literatura. É por tais métodos que pode ser comparada, por exemplo, a Literatura de Portugal com a do Japão. Para ele, tanto num estudo de literatura nacional como num estudo comparatista empregam-se métodos parecidos: diacronia e sincronia, analogias, dedução, indução, escolha de temas, motivações e influências entre autores. De acordo com o supracitado estudioso, o termo literatura comparada indica que a literatura deve ser comparada, mas não indica os termos de sua comparação, embora haja duas definições do termo: uma popular e outra acadêmica. Esta engloba obras que usam códigos de estética idênticos por terem se servido do mesmo idioma e por seus autores compartilharem a mesma formação cultural, ao passo que aquela é tautológica: a literatura portuguesa, por exemplo, é a literatura de Portugal. Não se trata de literatos de países diferentes, mas apenas de tempos diferentes, e cujas preocupações e língua usada são as mesmas. Segundo Jost, do ponto de vista técnico estamos muito mais no domínio da Weltiliteratur (literatura-mundo) do que no da literatura comparada, que pressupõe a existência de conceitos críticos modernos.  O autor chega a afirmar que seria melhor o uso do termo literatura global (que talvez se coadune com a ideia de inconsciente coletivo), pois suas diferenças específicas residem na sua natureza abrangente. Tanto num estudo de literatura nacional como num estudo comparatista empregam-se métodos parecidos, que são os já mencionados: a diacronia, a sincronia, as analogias, a dedução, a indução, a escolha de temas, as motivações e a influência entre autores (a intertextualidade). É por tais métodos que aqui serão comparados dois sonetos: um é o poema intitulado “Versos íntimos”, de Augusto dos Anjos; o outro, um soneto de Rainer Rilke, traduzido para o português por Geir Campos e Fernando Jorge. (Admite-se, em consonância com o legado da saudosa Lia Wyler, que a tradução, o texto de chegada, também é original, porque não existiria se não tivesse sido feita.)
            “Soneto”, afirmam as professoras Ana Tereza e Benedicta Aparecida (2003, p. 16), “significa ‘pequeno som’. Foi usado pela primeira vez por Jacob de Lentini, Escola Sciliana (séc. XIII), difundido por Petrarca no século XIV”. Como sabemos, também foi usado por Wiliiam Shakespeare e Edmund Spenser. Trata-se de uma poesia formada por catorze linhas ou versos. O soneto shakespeariano contém apenas uma estrofe, enquanto a maioria dos outros sonetos contêm quatro estrofes: dois tercetos (duas estrofes com três linhas em cada) e dois quartetos (duas estrofes com quatro linhas ou versos em cada). (Via de regra, cada linha do soneto contém, no máximo, dez sílabas poéticas, mas isso diz respeito à métrica e, portanto, à escansão.) Vejamos:
                                                                                        
VERSOS ÍNTIMOS
                                    
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
 
Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
 
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
 
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
 
Pau d’Arco, 1906
 
(Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias. 48. ed. especial revista e ampliada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 156.)
 
            Sabe-se que Augusto dos Anjos (1884-1914) sofreu muito; não é à toa que a maioria dos seus poemas é pessimista; da mesma forma, não é por acaso que, noutros poemas, tanto fala da morte, da matéria e da decomposição dos cadáveres. Boa parte de sua ruína pessoal pode ser atribuída à ruína da Fazenda Pau d’Arco, que era de sua família. A propósito de uma análise das imagens mórbidas e decadentes inoculadas nos versos de Augusto dos Anjos (que bem poderia estar ao gosto do Diabo, se o leitor permite o trocadilho), é indispensável o dizer de Emmanuel Pereira Filho (1972, p. 14):
 
A uma observação mais profunda, a inevitável conclusão a que se terá de chegar é que o tema da morte aparece em seus versos não como um fato considerado em si, mas como símbolo e, por absurdo que pareça, como símbolo de um aspecto da vida: a limitação do ser humano enquanto ser material, ou seja, essa contingência fatal de matéria, de que a morte é o mais absurdo e mais trágico capítulo. O que caracteriza portanto sua visão pessoal da verdade é um sentimento trágico da vida, fundado principalmente no eterno choque entre o ideal e o real, entre o espiritual (sem limites) e o material (limitado).  É desse absurdo dos constantes dualismos de que se entretece a existência (caracterizados sobretudo nos binômios espírito-matéria, vida-morte) que decorre sua interpretação agônica (no sentido unamuniano) da vida neste mundo.  E é disso justamente que se vão originar as duas outras notas características da sua visão pessoal: o sentimento de frustração e o sentimento de revolta.  De fato, os seus poemas se desenvolvem quase sempre através de símbolos que representam a espiritualidade frustrada sob o peso bruto da matéria contra o que o poeta reage com épica rebeldia (o que talvez explique sua popularidade paradoxal) numa atitude verdadeiramente “prometeica”, como a chamaria León Felipe.
 
            Sim, mas, para a realização da comparação deste ensaio, é preciso analisar os Versos Íntimos, a que foi feita a primeira alusão, e que, como sugere o título, revelam o mundo interior do eu que dirige a palavra a um leitor. Pois bem: se os Versos Íntimos forem comparados com textos épicos e dramáticos ou com escritos narrativos, prevalecerá o mundo interior do emissor da mensagem, mundo do qual são evidências os pontos de exclamação, que dão mais expressividade às emoções que não pôde conter. No entanto, em nenhum momento encontramos marcas da primeira pessoa — nem do singular (como “eu”, “meu”, “minha”), nem do plural (como “nós”, “nosso”, “nossa”). Vemos o mundo interior do eu poético? (que é uma projeção do eu de carne e osso de Augusto dos Anjos). Sim, vemos, mas, como ficou dito, o soneto carece de marcas da primeira pessoa: nele elas estão ausentes.
            Existe, sim, a expressão de um eu poético: do contrário, nem existiria este ensaio. Vale acrescentar que o tal eu, mesmo que não possa ser confundido com o eu físico (um erro que seria tão absurdo quanto o de confundir ator com personagem ou, no caso das prosas de ficção, o autor com o narrador), não podemos negar que o eu lírico é uma projeção do eu de carne e osso. É o próprio Tzvetan Todorov que aplica as três vias de projeção, a saber: a que se baseia nos valores intemporais de bem e mal, a via historiográfica e a biográfica. Aqui, naturalmente, está sendo aplicada a biográfica. É óbvio que as vivências podem servir de inspiração, porém nenhum texto literário pode ser reduzido à vida do autor, mesmo quando “há [...] casos em que a biografia do autor acha-se em relação pertinente com sua obra. Apenas, para ser utilizável, seria preciso que esta relação fosse dada como um dos traços da própria obra” (TODOROV, 2017, p. 160). Do contrário, como bem ensina Antônio Cândido, seria possível o solipsismo. Antes de tudo, serve-se a poética dos arsenais de temas que lhe oferece a civilização global (cf. CÂNDIDO, 2014, p. 27-49). É inegável, contudo, que a vida de Augusto dos Anjos é um traço de sua obra.
            Além disso, se compararmos os versos de Augusto dos Anjos com poesias que também sejam líricas e contenham as tais marcas da primeira pessoa, veremos que o que mais se destaca não é o emissor nem a função emotiva, de que fala Roman Jakobson. O eu poético está se concentrando no receptor, isto é: no leitor, a quem faz comandos como quem dá ordens; chega até mesmo a usar a palavra amigo (um vocativo) para fazer contato direto (função fática). Assim, tenta influenciar o comportamento do leitor, a quem sugere que não há esperança de um dia melhor e que ninguém é digno de confiança. Portanto, prevalece a função conativa, que se destaca muito mais do que a emotiva.
            Restaria apenas a opção de fumar na lama, ou seja: no fracasso. Afinal, a mão que afaga é a que nos apedreja. Afagar é acariciar; escarrar é cuspir. Quem diz que nos apoia é, na verdade, a pessoa que nos trai e nos ataca. Trata-se de uma visão muito pessimista da vida, uma visão oposta à visão otimista que veremos no texto a seguir (no qual também estão ausentes as marcas da primeira pessoa):
 
Silente amigo, dos longes tão vários,
sente como ao teu sopro o espaço cresce!
Deixa-te, na armação dos campanários
sombrios, soar. Isso que te enfraquece
 
será uma força, com tal alimento:     
seja a metamorfose o teu caminho!
Qual o teu mais pungente experimento?
Se te amarga o beber, torna-te em vinho.
                     
Nesta noite de excesso, sê a magia
na encruzada dos sentidos; sê tu o
sentido que a tal encontro os levou.
 
E se o terreno te esquecer, à fria
e imóvel terra apenas dize: eu fluo!
E à múrmura água inquieta, dize: eu sou!
 
(Rainer Maria Rilke. In: ______. Poemas e cartas a um jovem poeta. Tradução de Geir Campos e Fernando Jorge. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p. 54.)
 
            Acabamos de ler um poema originalmente escrito em alemão por um autor que nascera em dezembro de 1875, em Praga (capital da República Tcheca), no antigo Império Austro-Húngaro, e morreu em 1926, na Suíça.
            Rainer Maria Rilke escreveu um soneto, que, como todos os outros sonetos, é lírico. Se comparado às literaturas épica, dramática e narrativa, o texto acima usa um pouco mais a função emotiva, já que todo lirismo é uma forma de manifestar o eu interior. Vemos até exclamações, que usamos quando não conseguimos nos conter, ou seja: quando não conseguimos controlar os sentimentos nem as emoções que borbulham dentro de nós. No entanto, quando comparado com a esmagadora maioria dos outros sonetos e com a grande maioria dos outros poemas líricos, a poesia de Rainer Rilke concentra-se muito, muito mais no leitor, que é o receptor da mensagem. Com efeito: o eu poético dirige a palavra a alguém a fim de incentivar ou encorajar esse alguém; portanto, tenta mudar o comportamento do receptor da mensagem, de modo que a linguagem desempenha a função conativa ou apelativa. “Sê tu” quer dizer “Seja você”: o verbo está no imperativo; logo, fica claro que o eu poético faz comandos, ordens ou sugestões: É como se ele dissesse ao amigo: “Transforme-se em vinho [...];/ seja você a magia [...]/ seja você o sentido”, ou seja: é como se o poeta dissesse: “Seja você a razão e o sentido da vida, erga a cabeça e não desista”. Quem não conhece a expressão passar da água para o vinho? Talvez Rilke seguisse à risca a ideia de vontade de potência, de Nietzsche.
            Enquanto Augusto dos Anjos corre o risco de deixar deprimido (ou mais deprimido) o leitor real (e não o que ele imaginara durante a elaboração dos Versos Íntimos), Rainer Rilke, com um cenário de silêncio (uma alusão sutil à audição) e sombrio (alusão à visão), e com ligeira sinestesia ou ligeiro princípio de sinestesia, pretende levantar o ânimo de quem lê seus versos, que afirmam a vida, ao passo que a poética augustiana canta a morte. Contudo, semelhanças há no que concerne à imagética: tanto o autor brasileiro quanto o europeu injetaram ou inocularam imagens de objetos bastante concretos e materiais, tais como lama, terra e água. Seriam tais imagens um fruto do cientificismo e do materialismo reinantes do início do século XX? Se sim, caberia a aplicação da via de projeção historiográfica?
            Seja como for, o valor desta comparação está muito abaixo do valor dos escritos literários. Afinal, não pode a crítica tomar o lugar do seu objeto de estudo. Além disso, é igualmente certo afirmar que a literatura não segue a lógica utilitarista, a lógica burguesa e de mercado: é intrínseco o valor da arte literária, que, como ficou dito, está acima da fortuna crítica e da metacrítica. O valor da comparação está em que confirma a intertextualidade ou até mesmo a singularidade que dois ou mais autores mantêm entre suas obras. Daí a importância da escolha de temas, mencionada por Fraçois Jost. Ademais, é preciso saber que sempre há “um livro que toma seu valor de outros livros, que é original se não se parece com os outros, que é compreendido porque é o reflexo dos outros” (BLANCHOT, 2011, p. 316).
            Os dois autores aqui mencionados podem nunca ter lido a obra um do outro, o que torna descartável a hipótese de influência ou de intertextualidade entre ambos os poetas, mas mesmo assim uma parte do que afirma Maurice Blanchot se aplica a eles.
 
(Guarapari, ES, 7 de maio de 2021.)
 
Referências
 
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 48. ed. especial revista e ampliada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
 
BLANCHOT, Maurice. A Literatura e o Direito à Morte. In: ______. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
 
CÂNDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In: ______. Literatura e sociedade: estudos de Teoria e História Literárias. 13. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014.
 
FILHO, Emmanuel Pereira. Estudos de Crítica Textual. Rio de Janeiro: Edições Gernasa, 1972.
 
JOST, François. Uma filosofia das letras. In: COUTINHO, Eduardo F.; FRANCO, Tânia (orgs.). Literatura Comparada. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
 
OLIVEIRA, Ana Tereza Pinto de; REIS, Benedicta Aparecida Costa dos. Minimanual Compacto de Literatura Portuguesa: teoria e prática.  1. ed.  São Paulo: Rideel, 2003.
 
RILKE, Rainer Maria. Poemas e cartas a um jovem poeta. Tradução de Geir Campos e Fernando Jorge. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
 
TODOROV, Tzvetan. Tipologia do Romance Policial. In: ______. As estruturas narrativas. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006.
 
______. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2017.
 
WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
[1] Nascido em 10/5/1990, no Rio de Janeiro. Criado em Duque de Caxias (RJ). É licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de duas redes públicas. Mora no Espírito Santo há dois anos e vive no município de Guarapari há um ano. Currículo na Plataforma Lattes: < http://lattes.cnpq.br/0328708771235302>.

Nenhum comentário:

Postar um comentário