BERNARDES,
Erick. Panapaná: contos sombrios. 1ª ed. Rio de Janeiro: Autografia,
2018, 94 páginas. ISBN: 978-85-518-1018-7.
Considerações sobre Panapaná
A função da arte é
comover. Quadro, escultura, sinfonia, poema ⸺ tudo isso é manifestação artística
destinada a provocar emoção: quanto mais comover, tanto mais autêntica obra de
arte será. A arte não deve transmitir mensagem, a não ser por mero acaso, por
mera coincidência.
No campo da
palavra escrita, a redação INFORMA e a literatura COMOVE. A poesia, mais do que
a prosa, deve comover pois se não fizer isto, não chega a ser poesia.
(Paratexto da
contracapa de Simbologia do Onírico, de Diógenes Magalhães.)
Prezado Erick:
Peço mil perdões por só ter começado
a ler o seu livro de contos em dezembro de 2022. Você me deu um exemplar de
presente há quatro anos (a não ser que, mesmo com as vacas magras, eu o tenha
comprado), antes de eu me mudar para o Espírito Santo (terra de um político tão
danoso para o avanço do país quanto o defunto Atanásio de Oliveira, do conto Olhos),
e no entanto eu não demonstrei a delicadeza de analisar sua prosa.
Acredito que a maioria das
impressões que vou registrar aqui sobre o homônimo conto de abertura do seu Panapaná
valha para a maioria dos outros, que, assim como o primeiro, exploram temas
sombrios, muito encontradiços na literatura e nas outras artes góticas[1].
No que concerne ao conteúdo, pode-se
dizer que, pelo menos na primeira leitura, naquela fase de interpretação mais
imediata, o tema central (o referente) do primeiro conto é a decomposição da
carne e da matéria. O macabro e a morbidez geram um cenário muito, muito
tétrico. Os que consideram isso de mau gosto fariam a você críticas análogas
àquelas que foram dispensadas à obra do autor do Eu, e isso porque o “mau
gosto de Augusto dos Anjos funciona normalmente na sua poética de recursos
tensos” (CÂNDIDO apud BARBOSA, 2010, p. 84-5). Estou, sabemos bem, categoricamente
desfiliado de qualquer corrente que condene o poeta paraibano (que, aliás, lia
Edgar Allan Poe).
Confesso que o conto de abertura
acabou (por assim dizer) conquistando a minha simpatia por causa do nome do
personagem central: Edgar. Em tese (e só em tese), não combina nem um pouco com
as cores locais do Maranhão (estado brasileiro em que, aliás, nunca estive),
mas, no Brasil, um país com tantos nomes estrangeiros e filmes ianques exibidos
à exaustão, podemos aceitar a máxima de Pero Vaz de Caminha de que, em se
plantando, tudo dá no Brasil: “a terra é tão boa... Sim, de um modo que era
quase uma maldição” (VERÍSSIMO, 1996, p. 21). Para ser honesto, devo dizer que
não me importo com cores locais: desde que saí do estado do Rio para me sentir
um estranho em qualquer parte do mundo, tenho me preocupado com o que é
universalmente belo e bom (e também com o que é universalmente feio e
grotesco), e isso, é claro, condiciona meus planos de curso (os conteúdos
programáticos), sem os quais não é possível proporcionar uma digna educação
linguística e literária.
O Edgar do conto Panapaná não
está numa aventura, e o final é confuso. Fiquei incomodado com isso: ou eu
deixei escapar algum elemento por falta de conhecimento prévio, ou o autor
deixou que o leitor imaginasse o final e uma explicação para o desfecho. É como
se aquele vendesse a este um aparelho com peças por encaixar, e é o leitor que
deveria fornecê-las e encaixá-las no aparelho. Por outro lado, não me lembro de
ter lido nada parecido antes num conto: a prosa extremamente enxuta (enxuta no
sentido de concisa) com um final confuso pode ser característica de uma linha
literária que eu ignore; contudo, parece que estou diante de um traço de originalidade.
(Talvez seja extraliterária a razão ou a
causa da extrema concisão, ou da concisão pura e simples: você precisava de um
narrador conciso, uma vez que você mesmo precisa financiar o seu médium, ou
seja: é você que custeia a sua mídia, ou seja ainda: é você que patrocina o seu
canal de comunicação, para usar a expressão de Roman Jakobson, e o seu canal é
aquele velho objeto conhecido como livro. Portanto, o livro (cujo acabamento é
de ótima qualidade), com 28 linhas por página, com suas limitações físicas, inerentes
que são ao papel, pode ter feito com que você, voluntária ou involuntariamente,
consciente ou inconscientemente, tenha decidido escrever de modo que pudesse
dizer mais com menos palavras. Isso reduz os custos de publicação. Ademais,
deve pesar o fato de o leitor do século XXI, a quem, de certa forma, apelamos
com temas do seu interesse, ser mais chegado a textos curtos. Talvez estejamos
diante de uma reação da literatura à desliteraturização, que é a perda do
prestígio da literatura. Para sobreviver, está se tornando mais enxuta.)
Na tensão que se dá entre a tradição
e a ruptura, em várias escolas de época, tais como o barroco, com seu ramo
gongórico, e o simbolismo, existem autores que nem sempre contam propriamente
uma história vibrante (talvez nem sequer contem história nenhuma). Panapaná (o
conto de abertura) injeta imagens lúgubres num ambiente possivelmente onírico:
sua ecfrase não está a serviço de um enredo (de modo que o final “confuso”
pouco importa): descreve um cômodo extremamente desconfortável (talvez até kafkaniano),
com mariposas, carniças, calor e cheiro de putrefação. Tudo isso, inevitavelmente,
é sinestésico. Os registros do narrador, portanto, chegam ao abstracionismo,
como diria Fausto Cunha, que fala disso em prefácio de um dos livros de
Diógenes Magalhães: “Na psicanálise”, escreve Fausto Cunha, “chama-se isto
associação livre de ideias; na Arte Literária, chama-se abstracionismo, ou
talvez surrealismo”. Coadunam-se com essa afirmação os dizeres que o próprio
Diógenes registra a respeito do poema Violões que choram, de Cruz e
Sousa: “Com ele [com o poema], mostrou Cruz e Sousa o que se pode fazer
com palavras puras, quando o autor possui talento; é uma peça bonita, bem
acabada, genial como tudo quanto escreveu Cruz e Sousa [...]” (2001, p. 59).
“Isto explica, aliás”, afirma o mesmo Diógenes (2001, p. 56),
o fato de um
leitor de pouca instrução literária não gostar dos livros dos grandes
escritores. Realmente, o leitor pouco instruído quer descobrir em cada livro um
enredo, uma aventura, passagens vivas, situações que façam vibrar, episódios
estranhos, etc., etc.; ora, não sendo este o caso de Memórias Póstumas de
Brás Cubas, por exemplo, o leitor pouco instruído sentir-se-á burlado
quando começar aquela obra de Machado de Assis. O que existe de melhor no livro
(que é justamente o estilo no sentido artístico) o leitor pouco instruído não
está em condições de saborear; e como, por outro lado, o livro não conta uma
história eletrizante (e até quase não conta história nenhuma), o leitor pouco
instruído o considera intragável.
Independentemente
de reconhecer uma história no poema Violões que choram, de Cruz e Sousa,
Diógenes tece uma verdadeira seda de elogios ao poema por não haver
necessariamente uma história ou uma intriga, elementos que, segundo o mesmo
Diógenes, são os que o leitor de pouca instrução literária busca.
Por sua extrema concisão e por sua
imagética, o Panapaná (o conto) pode muito bem ser um poema em prosa.
Segundo
a professora Olga Kempinska (2012, p. 170), o poema em prosa foi criado por
Aloysius Bertrand. No poema em prosa, não há propriamente uma narrativa, mas
nele se “encena a manifestação de uma subjetividade” (idem, ibidem, p. 170).
A ser verdade a epígrafe desta
carta, o “enredo” de Panapaná (o conto) é mero acaso, já que o mérito da
prosa não está na história nem no referente. Pode-se dizer que o “enredo” é só
um pretexto para a produção de literatura, conforme o que diriam os formalistas
russos.
O conto intitulado Solo, por
outro lado, revela uma história mais delineada, nem um pouco onírica, com um
narrador que é quase uma 3ª pessoa, mas que está fora dos acontecimentos, que
giram em torno de Antenor Saldanha, um adúltero cujo destino é trágico e
solitário.
Já o conto Olhos revela uma cena muito
parecida com aquela em que Jonathan Harker encara Drácula no caixão. Vejamos o
que foi registrado no diário de Jonathan: “[...] parei e olhei para o
Conde. Havia um sorrido zombeteiro em seu rosto inchado que parecia me enlouquecer
[...]” (STOKER, 2018, p. 53). Ele (Jonathan) conclui a descrição da visão
do rosto do vampiro dentro do caixão: “A última visão que tive foi do rosto
inchado, manchado de sangue, com um sorriso fixo de malícia que provavelmente
vinha diretamente das profundezas do inferno” (idem, ibidem, p. 53). Já o seu Atanásio,
embora não seja um vampiro, também sorri dentro do caixão: “Quase a gargalhar
ele sorria impudente e imóvel (BERNARDES, 2018, p. 22).
Maria Michele,
por sua vez, é mais baseado em verossimilhança, com um princípio de contradição
(que não chega a comprometer a coerência interna): o narrador-personagem formara
com a tal Michele “meia década de amizade, das mais estranhas que alguém
poderia cultivar” (3º parágrafo, página 23), o que contrasta com “quatro
tentativas fracassadas de aproximação” (2º parágrafo, p. 23). Contudo, trata-se
de uma relação muito peculiar (ou idiossincrática) entre colegas de trabalho,
que, mesmo distantes, tinham lá a sua amizade, à sua maneira. (Nesse conto,
aliás, existe uma marca estilística que meio que satura o livro: começa com a
palavra impossível: o narrador, sempre que pode, diz: “Impossível isso”,
“impossível aquilo”.)
Numa coletânea de contos sombrios,
mesmo sem abrir mão de uma atmosfera noturna e lamuriosa, o enredo de André
do Sapato novo é um agradabilíssimo alívio cômico (e a comédia é um
gênero “baixo” na lógica aristotélica), embora a atitude do pobre e traído
André seja oposta ao comportamento de Antenor Saldanha, do conto Solo:
Antenor é o infiel, ao passo que André nunca traiu a amada. Uma vez que a
revolta de André é causada pelo fato de ter sido trocado por uma mulher, sua
ira contra o lesbianismo poderia ser um tema proscrito e rechaçado nos tempos
atuais, em que o pensamento totalitário coloniza tanto as mentes de direita
quanto as de esquerda, ainda mais quando se leva em conta o significado popular
da palavra sapatão. As patrulhas que praticam a cultura do cancelamento
estão aí para provar o que digo.
No interessantíssimo A punhalada,
ocorre a insólita tentativa de assassinato praticada por Xoxó, um sujeito que
bebe sangue de porco para incorporar um demônio. Tratar-se-ia de um autêntico
rito sobrenatural? Ou Xoxó teria apenas um surto psicótico? Aqui, o enredo,
mais do que o estilo, talvez mereça atenção especial. “Se
esses acontecimentos por muito tempo levaram a personagem e o leitor a
acreditar na intervenção do sobrenatural, é porque tinham um caráter insólito”
(TODOROV, 2017, p. 51). Para Tzvetan Todrov (2017, p. 52), há dois tipos de
sobrenatural: o que se dá em forma de sonho, alucinação, loucura ou drogas, e o
que é constituído por acontecimentos que não passam de ilusão ou que não passam
de fraude. Sendo ou não uma fraude, ou sendo apenas um surto psicótico,
insinua-se a possibilidade de haver sobrenatural, fundamental ao Gótico, “ainda
que ‘domesticado’ por molduras realistas — o sonho, a alucinação e o
entorpecimento. O elemento fantástico na ficção gótica permitiria o afloramento
de tudo o que é suprimido pelo discurso da realidade” (FRANÇA e SENA, 2014, p.
100). Ou o narrador-personagem está diante do sobrenatural, ou está diante de
um acontecimento que pode receber uma explicação racional. Na primeira
hipótese, temos o fantástico- maravilhoso, em que, inserido indubitavelmente na
diegese, existe o sobrenatural; já no segundo caso temos o fantástico-estranho,
que é apenas um falso fantástico, com direito a explicações racionais do jaez mencionado
pelo professor Júlio França, conforme o que postula Todorov (2017, p. 51)[2]. De qualquer forma, o
narrador-personagem é que não pode perder tempo com conjecturas: ele precisa subjugar
Xoxó para sobreviver. O assassino de porcos é assustador, e não importa se é
mesmo demoníaco ou apenas louco. Entretanto, declara Érico Veríssimo (1996, p. 21):
A imaginação dos
nativos povoou a mata com muitos duendes e demônios. Havia o Curupira, um
sujeito perverso que costuma fazer os homens se perderem para suga-lhes o
sangue. Parecia um índio pequeno, com dentes verdes e os pés virados para trás.
Havia também o Caapora ou Caipora, um gigante peludo de cara triste que costumava
aparecer comandando uma vara de porcos selvagens. Se você o encontrasse na mata
teria azar pelo resto da vida.
Em A hora da
estreia, além de um agradável e intertextual trocadilho (ou princípio de
trocadilho) com a literatura de Clarice Lispector, existe um traço autobiográfico,
sucedido por uma fatalidade que só pode ser fruto do medo causado pelo locus
horribilis que é o meio urbano. Ficcionar fatos da própria vida é assunto
para os Estudos Literários, e estou ciente de que não entendo do riscado.
Parece que se trata de tema de estudo abraçado por uma diretriz de pesquisa
relativamente pioneira (e não vejo como os Estudos Culturais possam dar
subsídios aos críticos que estudam autoficção ou ficção biográfica). De
qualquer forma, Erick, você prova que o literato pode se servir de suas
experiências cotidianas em sua produção literária; afinal, “há [...]
casos em que a biografia do autor acha-se em relação pertinente com sua obra.
Apenas, para ser utilizável, seria preciso que esta relação fosse dada como um
dos traços da própria obra” (TODOROV, 2017, p. 160).
No interessante Cento e treze,
o leitor é presenteado com a imagem de um Xangô de esquerda, para o desgosto do
narrador-personagem, que recebe a imagem da boca de Carlos PT, um barbeiro que
lhe conta a história de “Seu” Mangueira. É uma história mais engraçada que a de
Júlia, do conto seguinte, intitulado O texto, a testa e o carimbo que atesta.
Entre este e aquele lemos a tragédia de Walter, um advogado vítima da
desumanidade no conto Pobres animais. Temos um paradoxo: se as pessoas
preferem prestar socorro imediato a um cão e não a um humano, isso já seria
indício de que regredimos na escala evolutiva, enquanto os cães seriam mais
dignos de socorro por estarem moralmente acima de nós.
Em o País do futebol e Estranho
personagem, há um certo humor. No caso de Estranho personagem,
houve uma coincidência, já que eu estava acompanhando o desenho animado japonês
A Lenda de Zorro (Kaiketsu Zorro; tradução: O magnífico Zorro),
uma adaptação japonesa do personagem de Johnston McCulley (1883-1958). (É
sensacional a música de abertura!) Infelizmente, num mundo cheio de bravatas e
pouquíssimas bravuras, ninguém quer seguir o exemplo de Zorro. O personagem
Josué tem apenas um complexo ou mania de grandeza mesmo. Que pena.
A ponte, o passado e os vãos é
uma interessante reflexão sobre a exploração da classe trabalhadora,
exemplificada pela construção da ponte Rio-Niterói no tempo da ditadura
militar. (Sabe-se que aquela ponte sempre vai marcar a memória de quase todo
aluno da FFP que tenha de ir ao outro campus da UERJ.) A tensão entre
mito e história combina muito bem com a intertextualidade: é possível notar a influência
de Camões e a do poema Mar português, de Fernando Pessoa
Os contos Olhos de infância, Homo
sapiens e Monstrengo aproximam-se uns dos outros devido à crítica à
pós-modernidade, marcada pela falta de crença na razão.
Déjà Vu, por sua vez, aborda
temas muito banais, mas com um humor que só situações degradáveis exigem quando
é necessário um canal que dê vazão aos desgostos gerados pelas circunstâncias
que não controlamos.
Em Máscaras, o pando de fundo
histórico, tecido com origens italianas e ibéricas, reconstrói um pouco as
influências que a Europa possa ter no nosso carnaval. Mais uma vez o leitor
fica diante do sobrenatural: Armindo e os parentes apareceram mesmo nas visitas
realizadas pelo narrador-personagem? Ou seria tudo uma alucinação dele?
Já em Eveready não cabe a hipótese
de alucinação, conquanto seja possível interpretar a “felinotropia” da
protagonista como sendo um símbolo da transformação da menina em mulher. De tal
transformação vêm os conflitos edípicos (ou vêm os conflitos que se dão à
maneira de Electra). A mãe tem de aceitar a transformação da filha.
Em O Cassino do Mimi encontramos
dois garotos que se veem em situações de gelar o sangue. Cheguei a cogitar de
algum vislumbre de semelhança entre esse conto e A queda da casa de Usher,
de Edgar Allan Poe, mas foi só um princípio de vislumbre mesmo. O conto de
Edgar pode representar a decadência da aristocracia. Não vejo isso em O
Cassino do Mimi ⸺ até porque, neste país, qualquer “nobre” de matriz étnica
europeia tem origem plebeia: a linhagem sanguínea não impediu que fossem
comprados, aqui e ali, títulos de nobreza. Maldita burguesia!
Por outro lado, em Beemote ⸺ o meu
conto favorito da coletânea ⸺, o leitor conhece um edifício que, mesmo em pleno
funcionamento, é uma herança com dupla opressão: a que sofreram os escravizados
e a que sofreram os cristãos-novos. Ambos os elementos são elementos do Gótico
brasileiro (conforme as explicações mais abaixo). O narrador envolve com
maestria o leitor numa atmosfera de fundo histórico com intensa tônica de
satanismo. Insisto, contudo, em dizer que a história, mesmo sendo de arrepiar,
importa menos que a imagética, que provoca e assusta o leitor. (Ainda que
aleguem que existe o pacto ficcional, a função conativa da linguagem, de que
nos fala Roman Jakobson, é sempre acionada por qualquer mensagem humana, e tal
função é acionada quando o texto afeta as emoções, as opiniões e o
comportamento do receptor; veja-se o caso do filme A Paixão de Cristo,
que, apesar do pacto ficcional, não impediu que espectadores sentissem
mal-estar.) Não cheguei a ficar apavorado, porém sei que o conto é capaz de o
fazer. Eu jamais o leria em sala de aula devido ao totalitarismo de algumas
seitas evangélicas ⸺ e isso certifica a qualidade da prosa.
Tenho de destacar os elementos góticos
brasileiros, que ficam patentes na Fazenda Colubandê, a começar pelo trecho
seguinte: “Sentiam dor, mas eram escravos, melhor era obedecerem” (BERNARDES, 2018,
p. 61). A isso se soma a perseguição aos cristãos-novos. Como afirma o saudoso
professor Fernando Monteiro de Barros Jr.: “[...] o Gótico brasileiro
segue os mesmos parâmetros do Gótico sulista norte-americano, já que o Brazilian
Gothic, assim como o Southern Gothic, apresenta em suas narrativas o
legado fantasmático de uma sociedade marcada pelo sistema escravocrata [...]”
(2014, p. 82, negrito meu). “O passado que nos domina”, afirma o sociólogo
Jessé Souza (2017, p. 151),
não é a
continuidade com o Portugal pré-moderno que nos legaria a corrupção só do
Estado, como o culturalismo dominante até hoje entre nós nos diz. Nosso passado
intocado até hoje, precisamente por seu esquecimento, é o do escravismo. Do
escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas classes populares,
que tornaram impossível uma sociedade minimamente igualitária como a europeia. Foi
precisamente porque a Europa não teve escravidão que Norbert Elias pôde
construir o processo civilizatório europeu a partir da ruptura com a escravidão
da antiguidade.
O Gótico Brasileiro seria diferente do
Gótico no Brasil: este apresentaria elementos estrangeiros, como os que se
encontram em Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, que naquele livro
de contos oferece histórias que não se passam no Brasil, enquanto aquele empregaria
as cores locais.
Por tudo quanto aqui fica dito, posso
afirmar que sua prosa é ágil e concisa, além de muito agradável. Embora na
crítica literária eu não goste do que, a meu ver, é a supervalorização das
cores locais, as letras gonçalenses têm sorte por você emprestar ao município o
seu talento. Você conseguiu se servir de temas góticos e tétricos sem excluir o
que a sua região e a sua biografia lhe oferecem. Você é testemunha de seu tempo
⸺ uma testemunha que, com engenho e arte, fez um trabalho que cumpre a função
de comover, conforme o postulado escolhido como epígrafe desta carta-resenha. Parabéns!
Sinceramente,
Márcio
Alessandro de Oliveira [3]
Guarapari,
ES. 22 de dezembro de 2022.
Referências
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Augusto. Eu e outras poesias. 48. ed. especial revista e ampliada. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
BARBOSA,
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história da literatura brasileira. Tradução de Maria da Glória Bordini. 3.
ed. São Paulo: Globo, 1996.
[1] Nick Groom (2012, p. 76-77) divide
as obscuridades em sete categorias para que sejam propostas ao romance gótico:
metereológicas (névoas, nuvens, vento, chuva, tempestade, fumaça, escuridão,
sombras, melancolia), topográficas (florestas impenetráveis, montanhas
inacessíveis, abismos, desfiladeiros, desertos, charnecas destruídas, campos de
gelo, oceano sem limites), arquitetônicas (torres, prisões, castelos cobertos
de gárgulas e ameias, abadias e priorados, túmulos, criptas, masmorras, ruínas,
cemitérios, labirintos, passagens secretas, portas trancadas) materiais de
tecido ou para o corpo (máscaras, véus, disfarces, cortinas ondulantes,
armaduras, tapeçarias), textuais (enigmas, rumores, folclore, manuscritos
ilegíveis e inscrições, elipses, textos quebrados, fragmentos, linguagem
coagulada, polissilabismo, dialeto obscuro, narrativas inseridas, histórias
dentro de histórias), espirituais (mistério religioso, alegoria e simbolismo,
ritual católico romano, misticismo, maçonaria, magia e ocultismo, satanismo,
feitiçaria, invocação, condenação) e psicológicas (sonhos, visões, alucinações,
drogas, sonambulismo, loucura, personalidades divididas, identidades erradas,
duplos, desarranjos, presenças fantasmagóricas, esquecimento, morte,
assombrações).
[2] O mesmo Tzvetan Todorov (2017, p.
30) afirma: “Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem
diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento [como o surgimento
de um fantasma ou de uma assombração] que não pode ser explicado pelas leis
deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas
soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da
imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o
acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse
caso a realidade é desconhecida para nós [...]”.
[3] Licenciado em Letras (Português e
Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor
efetivo de duas redes públicas. Currículo na Plataforma Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/0328708771235302>.
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