Considerações sobre Penélope dos trópicos
“Segue-se a história
herdada de Atlantis
Todo começo é o caos
A raça humana, eterna mutante nasce ao plano
astral.”
(Deborah Blando.)
“Mesmo na noite
mais triste
em tempo de
servidão
há sempre alguém
que resiste
há sempre alguém
que diz não.”
(Manuel Alegre apud Erthal.)
Márcio Alessandro de Oliveira
Talvez não haja
muito que acrescentar ao que já fica dito nos paratextos (presentes na orelha e
na contracapa), e os paratextos (tais como sinopses, prefácios e posfácios)
sempre condicionam os horizontes de expectativa do leitor e os seus protocolos
de leitura. Não obstante, a importância da crítica é a avaliação de um texto
literário, que, sendo único e inédito, é um caso particular entre tantos outros
casos particulares, com semelhanças e diferenças que podem ou não ser
suficientes para que sejam enquadrados no mesmo gênero: Sem essa avaliação não
é possível determinar a que gênero pertence o escrito literário, em que o autor
fica trabalhando durante anos até que seja publicada a mensagem. Trata-se da
relação entre uma obra em particular e o geral (ou gênero). Sem a avaliação
(que tem de ser fundamentada em teorias literárias e por elas guiadas) também
não é possível saber que inovações um autor, dentro das leis do gênero, e
dentro da tensão entre a tradição e a ruptura, proporciona à Literatura, o patrimônio
arruinado incessantemente pelos currículos escolares. É dessa maneira que se
compõem as fortunas críticas da obra de um autor, fortunas que se tornam
teorias literárias. É dentro de tal viés que tentarei examinar o novo romance
de Luciana Hidalgo (1965), que é mesmo um poema em prosa. A análise se divide em
dois eixos, a saber: 1. o eixo das ideias (ou do conteúdo); 2. o eixo
concernente à forma e aos procedimentos estéticos. O primeiro merece um estudo
sob a luz do que Marilena Chauí afirma sobre ideologia e sobre o mito fundador
do Brasil. Este último conceito é indispensável, porque é explícita a
intertextualidade com os mitos gregos. Antes, porém, que se faça um estudo em
dois eixos, é preciso analisar questões externas à literatura, poque elas
condicionaram um trabalho que Luciana, movida por aquele impulso interior de
que nos fala Antonio Cândido (e que alguns poderiam chamar de insight ou
de inspiração), exerceu nos mais recentes cinco anos.
Questões extrínsecas à literatura
Quem acompanha
Luciana Hidalgo no Facebook sabe os motivos por que seu novo romance
saiu com um selo inédito (o da Editora do Silvestre). Isso é um dos
sinais de que o mundo editorial está na mão de um mercado totalitário, que oferece uma prosa
fútil para leitores igualmente frívolos, formados em escolas que apenas
confirmam e reforçam a desliteraturização (a perda do prestígio da literatura). Um adolescente do
terceiro ano do ensino médio, por exemplo, corre o risco de nunca entrar em
contato com a obra de Lima Barreto (1881-1922). Dificilmente ficaria
interessado pelo romance O Passeador (2011), também de Luciana Hidalgo.
Essa é a miséria do que Pierre Bordieu (1968, p. 105-45) chama de campo
intelectual, no qual estão os leitores, os críticos, os editores, a imprensa e
tantos outros integrantes, e no qual a escola não cumpre o papel que deveria
desempenhar.
Talvez uma das funções da escola seja a de
evitar a proliferação dos fanqueiros literários, que se vendem para o mercado.
Machado de Assis define o fanqueiro literário nos termos seguintes:
[...] é uma
individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência
uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade.
Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas
probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o
pudor da consciência [ASSIS, 1859-1863-1946, p. 14].
Entretanto, os procedimentos estéticos da
literatura culta estão presentes na literatura de massa (que, por pedantismo,
os acadêmicos chamam de paraliteratura, termo que esconde a palavra subliteratura,
um substantivo mascarado por um eufemismo hipócrita): “Há também o best-seller
de boa qualidade técnico-literária, que não reduplica diretamente nenhuma outra
grande obra ou o real-histórico” (SODRÉ, 1988, p. 59). Portanto, não se trata
de inferiorização nem de desqualificação do que os acadêmicos, em seu
pedantismo impenitente cultivado em torres de marfim, chamam de paraliteratura.
O
trabalho de avaliação julga um caso particular (uma obra) para confrontar os
elementos com o que postula a teoria, de modo que se verifique o que há de
diferente e o que há de conhecido no texto. Dessa forma, vai-se do particular
ao geral (isto é: da obra específica ao gênero literário a que ela pertence) e
vice-versa. Destarte, examina-se “um livro que toma seu valor de outros livros,
que é original se não se parece com os outros, que é compreendido porque é o
reflexo dos outros” (BLANCHOT, 2011, p. 316). Ademais, vale lembrar:
O autor que
escreve especialmente para um público, na realidade, não escreve: é esse
público que escreve, e, por essa razão, esse público não pode mais ser leitor;
a leitura o é apenas em aparência, no fundo é nula. Daí a insignificância das
obras feitas para serem lidas — ninguém as lê. Daí o perigo de escrever para os
outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los a eles mesmos: é que
os outros não querem ouvir suas próprias vozes, mas sim a voz de um outro, uma
voz real, profunda, que incomoda como a verdade [BLANCHOT, 2011, p. 317].
O romance de Luciana Hidalgo chega
ao abstracionismo, como diria Fausto Cunha, que fala desse tipo de fenômeno em
prefácio de um dos livros de Diógenes Magalhães: “Na psicanálise”, escreve
Fausto Cunha, “chama-se isto associação livre de ideias; na Arte Literária,
chama-se abstracionismo, ou talvez surrealismo”. Coadunam-se com essa afirmação
os dizeres que o próprio Diógenes registra a respeito do poema Violões que
choram, de Cruz e Sousa: “Com ele [com o poema], mostrou Cruz e
Sousa o que se pode fazer com palavras puras, quando o autor possui talento; é
uma peça bonita, bem acabada, genial como tudo quanto escreveu Cruz e Sousa [...]”
(2001, p. 59). “Isto explica, aliás”, afirma o mesmo Diógenes (2001, p. 56),
o fato de um
leitor de pouca instrução literária não gostar dos livros dos grandes
escritores. Realmente, o leitor pouco instruído quer descobrir em cada livro um
enredo, uma aventura, passagens vivas, situações que façam vibrar, episódios
estranhos, etc., etc.; ora, não sendo este o caso de Memórias Póstumas de
Brás Cubas, por exemplo, o leitor pouco instruído sentir-se-á burlado
quando começar aquela obra de Machado de Assis. O que existe de melhor no livro
(que é justamente o estilo no sentido artístico) o leitor pouco instruído não
está em condições de saborear; e como, por outro lado, o livro não conta uma
história eletrizante (e até quase não conta história nenhuma), o leitor pouco
instruído o considera intragável.
Independentemente de reconhecer uma
história no poema Violões que choram, de Cruz e Sousa, Diógenes tece uma
verdadeira seda de elogios ao poema por não haver necessariamente uma história
ou uma intriga, elementos que, segundo o mesmo Diógenes, são os que o leitor de
pouca instrução literária busca. A protagonista de Luciana Hidalgo está atenta
à plasticidade, às cores, às formas e aos aromas, que ela recorta de um jeito
muito dela. Além disso, Penélope monitora a própria produção cerebral;
portanto, é cartesiana; chega a ser anti-pós-modernidade, já que a
pós-modernidade (ou hipermodernidade, ou modernidade líquida) é marcada pelo
não-racionalismo.
Das ideias ou do conteúdo:
um resumo
Se eu tivesse de
destacar o principal referente (o tema central) de Penélope dos trópicos,
eu diria que é a busca pessoal pela utopia, que, por definição, é formada por
um lugar e por um tempo inexistentes e ideais: existem só nas ideias (ideias, e
não ideologias). É essa busca que lança a heroína numa história em que ela está
sempre tecendo considerações sobre os fatos e as mazelas que assolam o país:
está sempre a fiar e a desfiar considerações sobre fatos, mitos, lugares e
pessoas. Ainda não estou certo quanto à categoria em que possa encaixar
Penélope (a protagonista): é uma personagem plana (sem mudanças no psiquismo e
nos gestos) ou esférica (com evolução interior e
exterior)? Certamente é uma arquiteta, além de ser uma órfã cujos pais lhe
proporcionaram uma formação que, pelo visto, fica só na ficção mesmo: o pai era
professor de Latim; a mãe, de mitologia, e os dois eram lentes (professores
universitários).
A história começa a ser narrada numa
praia, em que Penélope, mulher balzaquiana que deve ter nascido aproximadamente
em 1990, e pertence a uma geração de “humanos moldados por apresentadoras
alouradas e abestalhadas” (HIDALGO, 2022, p. 137), de “cabelos pretos e fartos”
(HIDALGO, 2002, p. 33), é a única humana que acompanha a única gaivota que não
voa (sem indícios de que tenha crescido ouvindo Lua de Cristal).
“Desnorteada”, diz o narrador (p. 13), “ela [Penélope] saltita pelas
espumas das ondas num traçado todo torto”. O contraste entre a humana e a
gaivota poderia muito bem ser o abismo que separa os dois animais na escala
evolutiva, uma vez que Penélope, que pondera sobre o código genético dos
transeuntes da orla ao mesmo tempo que avalia as formas, as cores e os outros
atributos físicos dos outros humanos, obviamente está num patamar superior,
apesar de admitir que aqueles corpos são carnavalizados e bestiais. Isso faz
dela um consolo para o leitor, possivelmente deprimido diante de tanta sordidez
humana. A protagonista é uma agulha no palheiro. Trata-se de uma corporificação
da presença humana: ela une o trabalho intelectual ao braçal (ou, se o leitor
preferir, une o trabalho espiritual ao corporal), muito embora ela, como a voyeur
e andarilha que é, seja “capaz de embarcar nos pensamentos mais delirantes
mesmo sabendo que depois fica difícil voltar, recuar, retomar itinerário mais
razoável” (p. 15). O uso da razão, conforme o registro da seção anterior, é um
dos mais acentuados atributos do romance. O excesso de trabalho mental deve
levar a protagonista a exercitar o corpo em caminhadas e natações. Infere-se
que ela precisa disso para não padecer: “Ultimamente”, diz o narrador (p. 15),
“tem se esforçado para vigiar tudo que seu cérebro produz, do lixo mais fétido
à beleza mais sublime”. Se a mente vazia é oficina do Diabo, uma mente
sobrecarregada, sem esforço físico, também o é. É como se a personagem tentasse
aliviar a tensão da mente com exercícios físicos. Neste ponto, o romance é bem
educativo, sem a pretensão de qualquer pedagogia moralista. Não é à toa que
“tem de fazer esforço hercúleo para subir, um esforço que requer alguma
teimosia dos músculos, certa simpatia dos nervos, ou seja, toda uma sinfonia
fina e bruta dos instintos mais primários” (HIDALGO, 2022, p. 30); não é por
acaso que fica “numa luta que é também bravia dança com a correnteza” (idem,
ibidem, p. 31). Sem esforço físico proporcionado pelos exercícios da natação, o
corpo de Penélope padeceria. Ela, cujas “ideias têm a natureza esvoaçante das
gaivotas” (HIDALGO, 2022, p. 19), deve seguir à risca o mote que diz “corpo
são, mente sã”. Busca o equilíbrio entre “o peso do pensamento e a leveza do
movimento” (idem, ibidem, p. 19).
Conquanto as observações de Penélope
não sejam tão mórbidas quanto as imagens que Augusto dos Anjos inoculava em sua
poética, cujo tema era a decomposição, fica patente a diferença entre o
grotesco e o sublime no trecho seguinte (p. 35):
É uma cena meio
grotesca em que uma gaivota não difere muito de um abutre. E pensando bem, se
diferença houvesse entre os dois, seria a favor do abutre, já que a gaivota
come seres ainda vivos enquanto o abutre pelo menos espera que morram. De uma
forma ou de outra, Penélope confirma o que achou de primeira: é uma imagem feia
e melancólica.
Com efeito: “O grotesco é um olhar acusador
que penetra as estruturas até um ponto em que descobre a sua fealdade, a sua
aspereza” (SODRÉ, 1980, p. 72). É claro que não se deve confundir o horror,
gerado que é pelo grotesco, com o terror, gerado pelo sublime. Pessoalmente,
não me atrevo a encarar ondas tão fortes como as que Penélope enfrenta (sou
igual ao personagem Theo). A imensidão do mar, assim como o alto de uma
montanha, gera admiração, mas também causa certo medo, que podemos chamar de
terror. Analisemos as explicações do professor Maurício Menon (2007, p. 47):
David Punter
(1996) demonstra a importância do tratado de Burke a respeito do sublime pelo
fato de ali haver a primeira tentativa de se estabelecer a conexão entre o
sublime e o terror. Decorre daí a influência do escrito de Burke sobre a obra
de Radclife, que soube colocar em prática nos seus romances aquilo que ele
havia sistematizado.
O sentimento de
terror despertado em uma personagem pode, por extensão, também ser despertado
no leitor. Tome-se, por exemplo, a descrição de uma personagem sendo perseguida
em meio a uma paisagem, cortada por serras escarpadas e nevadas, contendo
abismos imensuráveis. A grandeza do lugar gera nessa personagem um sentimento
de incerteza, de terror, há uma expansão dos sentidos dela face ao ambiente,
aliado ao nervosismo da perseguição. Um sentimento análogo ao vivido pela
personagem pode também ser despertado no leitor, dentro do pacto emocional que
este faz com a leitura [MENON, 2007, p. 47].
Já o horror, “ligado a um outro tipo de
estado emocional”, diz o professor Maurício Menon (2007, p. 47), “tende a
retrair ou até aniquilar a faculdade humana diante do objeto do qual é emanado”.
Penélope, é claro, prefere as gaivotas, porém a escolha é justificada, uma vez
que elas ensinam à humana minimalista “o valor dos destinos curtos, dos voos
breves ao longo da costa, sem grandes afoitices mundo afora, sem migrações
exageradas (os voos de cabotagem por assim dizer)” (HIDALGO, 2022, p. 35,
negrito meu). A aparente leveza das aves forma um binômio com o peso das
agruras diárias: “as disputas do trabalho, as reuniões de condomínio, os
neofascistinhas das redes sociais” (HIDALGO, 2022, p. 35).
Curiosamente, Penélope flerta com Antônio
(cujo nome, pelo visto, também é de origem grega) e dorme com ele, que também
faz parte da massa bestializada que tem arruinado o país. A burrice dele fica
explícita em alguns trechos, dos quais destaco este: “ele falando sem parar,
ela pensando sem falar” (p. 25). (Se para conquistar mulheres eu tivesse facilidade
e talento equivalentes aos que ela tem para arranjar homens, eu seria um
Ulisses cobiçado por várias Calipsos.) Neste ponto, há apenas
heteronormatividade, sem qualquer influência grega de Lesbos ou francesa de
Baudelaire. Seria muito artificial.
Se “só os deuses socorrem/ Com seu exemplo
aqueles/ Que nada mais pretendem/ Que ir no rio das coisas”, que há de ser o rio
formado unicamente pelo senso comum, então Penélope, que se põe a nadar contra
a imunda maré totalitária que inunda o Brasil, se vê merecedora do tal socorro
contido no mote pessoano (muito embora ela não tenha nem sequer um princípio de
vestígio de vontade ou pretensão de ser levada pelo fluxo da correnteza do
senso comum, não num mar tão agitado): “Penélope não sabe bem por quê, mas tem
fé” (HIDALGO, 2022, p. 33). Ela é tão cartesiana, que até gostaria de saber a
razão ou a causa da própria fé. Saber isso é exigir racionalidade, que nem
sempre se coaduna com a fé. O narrador prossegue: “Uma fé interesseira, pode
ser, mas já é um tipo de fé. Acha que quanto mais acredita nos deuses mais eles
acreditam nela. E por ela trabalham dobrado [...]” (idem, ibidem, p. 33).
Não a vejo como camicase ou ousada, até porque ela se identifica com a leveza e
os voos breves e sem afoitices das gaivotas; no entanto, há uma tensão entre o
real (externo ao indivíduo) e o ideal (interno e até inconsciente). Na página
anterior (p. 32), o próprio narrador já antecipara a explicação para a fé,
ainda que essa tal não o exija: “Cada um possui o deus que pode, o deus que
consegue escutar. Tem quem o chame de daemon, orixá, santo ou anjo da
guarda. Tem quem o chame de alter ego ou supergo”. As palavras daemon e orixá
já revelam o sincretismo e a brasilidade da prosa, posto que revelam duas
matrizes modelares (ou modeladoras) da sociedade brasileira.
É interessante notar que “o seu deus
protetor, o surfista ao lado ou o deus protetor que tomou a forma do surfista
ao lado” (HIDALGO, 2022, p. 33) não a convence de desistir do seu rumo. A
heroína não é convencida pelo canto da sereia, isto é: não desiste de nadar
contra as ondas: ela não segue o fluxo do senso comum, podendo este ser um mar
de idiotas (embora pudesse ser um rio de tolices de que alguns pudessem ser
tirados pelo exemplo dos deuses, cuja altivez Penélope tem, à maneira dela).
Quando ela nota que o surfista ri dela, ela não esmorece. Isso e o “diálogo”
entre ele e Penélope fizeram com que eu me lembrasse do Cântico Negro,
de José Régio: é como se o surfista dissesse: “Vem por aqui”, e Penélope
respondesse: “Não, não vou por aí!”. Pois é: se navegar é preciso, nadar também
o é: nadar é preciso, resistir é preciso. O mar e sua força sublime, divina, não
a intimidam. Ademais, ele é emblemático na medida em que é o local de origem da
vida (além, é claro, de exercer a função escatológica de banheiro planetário,
num ciclo possivelmente iniciado no que chamam de sopa primordial).
O romance é enviesado? Tratar-se-ia de um
panfleto? Talvez, mas o crítico que apontar o dedo já estará sendo panfletário.
É nos capítulos 2º e 3º que fica ainda mais patente a postura crítica e
antifascista de Penélope. No 2º, descobrimos uma cidadã que, como toda cidadã,
adulta, senhora de si, tem de garantir o ganha-pão, apesar dos incômodos do
exterior do apartamento, herança deixada pelos pais, falecidos que são por
causa de um trágico acidente de automóvel; no 3º, vemos a arquiteta em ação,
porém sua ação é abstrata: se o eu poético de Camões se contenta em amar em
pensamento, Penélope não chega a apresentar seus desenhos a alguém que os possa
concretizar com tijolos. Vejamos:
No 2º capítulo, depois de um
contraste entre o entorpecimento do sono e o despertar matinal, evidenciado que
é na cena em que a protagonista “cai bruscamente do mundo dos sonhos” (p. 41),
o narrador registra algumas imagens oníricas geradas pela mente de Penélope em
conformidade com o modo como ela se lembra delas, e não no momento em que foram
geradas durante o sono. O espaço físico que ocupa, no entanto, não é menos
interessante do que o onírico: em seu apartamento, descobrimos Teco, o melhor
amigo de Penélope, amigo que perdeu o irmão gêmeo quando este morreu num
acidente de carro; também descobrimos os outros amigos dela, que lhe fazem uma
visita em virtude do seu 30º aniversário.
Ela e Teco analisam uma favela:
Apesar das
estruturas frágeis e dos materiais precários, nem sob grandes tempestades essas
casas escorregam morro abaixo, pelo menos desde que Teco e Penélope as
observam. Imaginam por isso existir toda uma ciência secreta por trás das
construções empilhadas. Ou, quem sabe (diz Teco), é Héstia, deusa protetora das
moradias, quem as resguarda, pouco ligando se aqueles que as construíram têm ou
não inscrição num conselho regional de engenharia [HIDALGO, 2022, p. 52].
Conhecemos um pouco da utopia
(utopia, e não ideologia) de Penélope, que remete o leitor a uma reminiscência
do seu tempo de universitária, em que arquitetara uma pólis grega urbana e
moderna em seu TCC:
[...] A
partir das necessidades diárias dos moradores da favela, a aluna aplicada teve
a ousadia de pensar, projetar e montar a maquete de uma pólis grega a ser lá implantada.
Ah, Penélope. Trabalhou duro no
ambicioso projeto que conservaria o já construído sem derrubar uma só parede,
mas acrescentaria: uma ágora para grandes encontros coletivos; uma acrópole lá
no alto do morro onde os deuses mais loucos e dionisíacos ficariam à vontade em
seus caprichos, mandos e desmandos [HIDALGO, 2022, p. 53].
O sonho da jovem
arquiteta foi um sonho em que “a arquitetura servisse de base para um sistema
educacional de excelência no estilo da Atenas clássica, calcado nas artes e nos
exercícios físicos”
(HIDALGO, 2022, p. 54). Afinal, a pólis imaginária dela “deveria ser a síntese
do humano e do divino” (idem, ibidem, p. 54).
Aparentemente, apesar do epíteto de
Penélope e de toda a sua areté, não percebe a arquiteta que existe a
herança da escravidão, de que nos fala Jessé Souza. Ela, que tem uma tara
pelo futuro como “a curiosa otimista que ela tenta ser” (HIDALGO, 2022, p. 57),
por inadvertência ou por falta de memória, esquece que em outras
Cidades-Estados da Grécia a educação não era tão verbal, posto que os
espartanos eram mais lacônicos, mais voltados para o corpo e para as artes
guerreiras e, portanto, menos prolixos. Além disso, é da Grécia que vem a noção
ocidental dominante de escravidão. Com efeito: a “democracia” grega era para
poucos, porque poucos eram os cidadãos; entretanto, sabe-se que a relação entre
o cidadão e o escravizado grego deu lugar à que havia entre o suserano (o
senhor feudal) e o servo (o vassalo); esta, por sua vez, deu lugar à relação
que existe entre o patrão e o empregado. (Como chegamos ao empresário de si
mesmo, com Uber e tudo, eu não sei, nem Marx, porém os sociólogos e os
economistas intelectualmente honestos já devem estar se debruçando sobre a
pergunta munidos do novo salto que a humanidade está dando dentro do
capitalismo financeiro e do neoliberalismo.) O regime da escravidão foi
desenterrado pelos portugueses, que, desprovidos do legado de Viriato, marcaram
o Brasil
com o atraso de um regime que já tinha deixado de existir na Europa uns mil
anos antes de Cabral chegar a esta terra, em que Zumbi dos Palmares, à sua
maneira, resistiu à escravidão tanto quanto Viriato resistira, na Lusitânia, à
tirania dos romanos. Entretanto, Penélope tem o mérito ou a virtude de
alimentar um sonho em que, nas comunidades espoliadas (as favelas), haja o
oposto do que são as circunstâncias da infraestrutura (formada que é pelas
moradias, pelo transporte, pela distribuição de alimentos e por outras
condições materiais de vida) e da superestrutura (com destaque para a educação,
uma educação que ela deseja para todos, mas que a classe média conservadora e
reacionária, que se considera elite, na verdade abomina; tal classe elogia tal
educação da boca para fora, como quem admira um ornamento arquitetônico qualquer).
Em suma: ela quer que a barbárie e a espoliação deem lugar aos seus respectivos
opostos, mesmo que a cultura grega seja uma das raízes ideológicas de toda a
segregação social e espacial, ou, para usar outros termos, a razão cultural (cultural,
e não natural) de toda essa desrazão, que gera tanta injustiça. Se tivessem
dado ouvido a Sócrates, o homem mais justo da Grécia, os gregos teriam se dado
conta de que o antídoto estava no próprio veneno, já que a noção de cidadania
poderia ter sido estendida aos escravizados, que obviamente também eram dotados
de linguagem, cognição e sentimentos. Em outras palavras: o próprio pensamento
grego poderia ter se corrigido, mas, infelizmente, Sócrates, assim como Jesus,
pagou um preço muito alto por ser justo e por seu “crime-pensamento”, para
citar George Orwell.
Precisamos estabelecer algumas conjecturas
a respeito de conceitos que permeiam Penélope dos trópicos e no romance
se manifestam explicitamente sem que sejam desnudados. Tais conjecturas merecem
uma seção exclusiva, porém, com o espírito de Macunaíma, digo “Ai, que
preguiça”, e deixo que críticos mais experientes e mais gabaritados do que eu
deem continuidade à tecitura dos fios que estou puxando a partir de agora:
Em primeiro lugar, temos de distinguir
utopia de ideologia. Michael Löwy (1987, p. 12) pode esclarecer a diferença:
O pensamento
utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações sociais, o que
lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo
explosivo. O sentido estreito e pejorativo do termo (utopia: sonho
imaginário irrealizável) nos parece inoperante, uma vez que apenas o futuro
permite que se saiba qual aspiração era ou não “irrealizável”.
Sabe-se que, no Antigo Regime da Idade
Média, e até mesmo antes dele, na própria Grécia e em outras regiões em que se
desenvolveram sociedades da pré-história e da Idade Antiga, era tudo baseado na
ordem religiosa e na linhagem sanguínea. A revolução inglesa (cujo fim foi a
revolução gloriosa), a independência dos E. U. A., a revolução francesa, a
revolução Meiji, a utopia iluminista, tudo isso marcou o início da idade
contemporânea por ter rompido com sistemas baseados em linhagem sanguínea e
ancestralidade, tão do gosto da aristocracia que se dizia nobre. A burguesia
viu que essa ordem “natural” da sociedade, na verdade, era produto da cultura,
e portanto era passível de mudança: era injusta. Com efeito: “a burguesia,
classe em ascensão, vai se manifestar como uma classe revolucionária” (SAVIANI,
2021, p. 32). Assim, faz a “defesa da igualdade dos homens como um todo e é
justamente a partir daí que ela aciona as críticas à nobreza e ao clero” (idem,
ibidem, p. 32). Sendo assim, a burguesia, com suas críticas ao sistema
aristocrático, não fazia ideologia: pelo contrário, ela criticava a ideologia
ao propor a sua própria utopia, que consistia numa sociedade baseada no mérito
e na liberdade, e não na ancestralidade. É por esse movimento utópico e
revolucionário que a figura do servo dará lugar à figura do cidadão (conquanto,
hoje, num fluxo que ironicamente vem do rompimento com o Antigo Regime, o
cidadão esteja se tornando cliente do Estado). A ideologia é silenciosa:
silencia o que é ao se apresentar como religião, ordem natural das coisas ou
até mesmo como “ciência”. Trata-se do status quo, que a burguesia
questionou com o movimento iluminista. Com efeito: a ideologia
não
é apenas a representação imaginária do real para servir ao exercício da
dominação em uma sociedade fundada na luta de classes, como não é apenas a
inversão imaginária do processo histórico na qual as ideias ocupariam o lugar
dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário
social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam
para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa
aparência (que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou
falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo
histórico, é o ocultamento ou dissimulação do real. Fundamentalmente, a
ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos
“ensinam” a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas
nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que
pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e
o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique
pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a
identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular
universalizada, isto é, a imagem da classe dominante [CHAUÍ, 1997, p. 3].
Penélope não se
limita ao modo imediato como os sentidos e a consciência captam a realidade,
mas o leitor desavisado pode confundir os gestos dela com atitudes de viés
ideológico. É óbvio que a definição que Marilena Chauí confere ao termo ideologia
é abrangente, e por isso mesmo ele não anula outros conceitos. Não conhecemos a
ideologia, mas apenas manifestações ideológicas (religiões, pseudociências, certas
regras de conduta), que nunca são vistas como ideologia. É que ela (a
ideologia) sempre silencia o que realmente é. Até que ponto o narrador (que é
onisciente), Penélope, Teco e outros personagens quebram tal silêncio?
Eles não devem ser totalmente imunes aos
formadores de opinião da mídia, cuja tarefa é justamente a de confirmar os
atravessamentos ideológicos (os quais se infiltram na esquerda e na direita sem
que disso se deem conta os tais espectros ou ramos políticos, subdivididos em
outros ramos ou ramificações). Nenhum deles deve ser totalmente imune (nem os
deuses seriam), até porque, de acordo com Marilena Chauí, o mito é suporte de
ideologias, em especial o mito fundador, que, por definição, conta a origem de
seres e lugares. (Creio que todo mito seja fundador.) Ocorre que, como no jogo
infantil do telefone sem fio, o mito é sempre a variante de
uma narrativa mais antiga, que é a variante de outra, que veio de outra
também... O mito que deu origem às outras variantes, o mito primordial, só
sobrevive através das variantes das diferentes gerações, numa reprodução
fantasmática. Na verdade, o “primeiro” mito é mais uma variante de um mito mais
antigo. No que concerne a um país, sabe-se que Roma tem um ou dois mitos
fundadores (Rômulo e Remo, Eneias). No caso do Brasil, o mito fundador é
resumido nos termos seguintes (condizentes com a definição de Marilena Chauí):
somos um país tropical, com um povo ordeiro, alegre, sem violência. Trata-se,
pois, do mito da não-violência brasileira, isto é: de um mito segundo o qual
somos, por natureza, um país ou uma população sem violência. Esta, por sua vez,
está sempre no outro, um “não”-brasileiro, um cidadão de segunda classe ou uma
subgente sem classe. Até que ponto Penélope confirma tal mito fundador? E até
que ponto ela o desmente? Quanto mais ela se filiar a ele (mesmo que involuntariamente,
por força do silêncio e do poder de convencimento que a ideologia exerce no
inconsciente), mais ela confirmará a ideologia; quanto mais ela o desmentir,
mais apta ela estará para desmascarar a ideologia.
O narrador não se refere aos
neofascistinhas como sendo brasileiros na medida em que não usa a expressão brasileiros
neofascistinhas; por outro lado, é dispensável a expressão de dois termos:
é óbvio que a fração do povo carnavalizado a que o narrador se refere é uma
fração da população brasileira. Para tal fração, violentos são apenas os “subversivos”,
os “esquerdopatas”, os “não”-brasileiros. Portanto, Penélope dos trópicos
refuta o mito fundador e, consequentemente, refuta a ideologia (nestes
particulares, pelo menos). A personagem Penélope tem a virtude de identificar a
miséria moral e intelectual do tempo e do espaço em que ela atua. Contudo, como
já ficou dito, ela não é totalmente imune à ideologia, nem ao mito: ela é poiesis,
mas também é mímesis nas leis da verossimilhança. No 2º capítulo (p. 43,
destaques meus), encontramos o seguinte parágrafo:
Já nesse pedaço
penelopeano de mundo é tudo bem diferente. Parece que o povo já nasce partido,
confuso, e tem de se virar, sendo e estando, estando e sendo, na quizumba
que é a vida a quarenta 40 graus. É muito provável que o excesso de
calor, da exposição ao sol, tenha um dia rachado o verbo, terra seca,
fraturando assim a existência nos trópicos (isso explicaria muita maluquice
por aí).
Não seria o
excerto acima uma reinvenção ou reprodução do mito fundador? Somos um país
abençoado por Deus, de clima propício para a
produção agrícola e para o trabalho braçal e acrítico?
Penélope (a personagem) está longe de ser
um Macunaíma de saias, até porque ela tem um caráter muito bem definido; está
mais perto de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, muito embora ela vá buscar
sua utopia nos gregos antigos, e não nas raízes indígenas e autóctones do
Brasil.
Stuart Hall volta-se para a questão de
como o “sujeito fragmentado” é colocado em
termos de suas identidades culturais. Admite o autor que as culturas
nacionais se constituem numa das principais fontes de identidade cultural.
Depois de citar Roger Seruton e Ernest
Gellner, declara que as identidades nacionais, contudo, não são coisas
com as quais nós nascemos, mas são
formadas e transformadas no interior da representação (cf. HALL, 2006, p.
50-1). Elas também não são tão homogêneas como as representações fazem crer, e
Macunaíma é um herói que representa bem a ausência de homogeneidade e também a
falta de originalidade por ser ele uma cópia, conforme o depoimento do próprio
Mário de Andrade, que também admite o duplo sentido da falta de caráter do
herói Macunaíma no seguinte excerto, tirado do segundo prefácio:
E resta a questão
da falta de caráter do herói. Falta de caráter no duplo sentido de indivíduo
sem caráter moral e sem característico. Está certo. Sem esse pessimismo eu não
seria amigo sincero dos meus patrícios. É a sátira dura do livro. Heroísmo de
arroubo é fácil de ter [ANDRADE, 2012, p. 168].
Penélope, além de ter um caráter bem
definido, está mais do que atenta às mazelas do país, o que confirma o que diz
Antonio Cândido:
A filosofia
cósmica e superficial, que alguns adotaram certo momento nas pegadas de Graça
Aranha, atribui um significado construtivo, heroico, ao cadinho de raças e culturas
localizado numa natureza áspera. Não se precisaria mais dizer e escrever, como
no tempo de Bilac ou do conde Afonso Celso, que tudo é aqui belo e risonho: acentuam-se
a rudeza, os perigos, os obstáculos da natureza tropical. O mulato e o negro
são definitivamente incorporados como temas de estudo, inspiração, exemplo. O
primitivismo é agora fonte de beleza e não mais empecilho à elaboração da
cultura. Isso, na literatura, na pintura, na música, nas ciências do homem [CÂNDIDO,
2014, p. 126].
A respeito da estátua der gute Mensch,
o homem pretensamente superior: não seria essa estátua uma ekfrasis que
confirma um antigo mito brasileiro? Não seria ele o que Mário de Andrade
idealizara em Macunaíma? Vejamos: “E estava lindíssimo na Sol da lapa os
três manos um loiro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus”
(ANDRADE, 2012, p. 37). Luciana Hidalgo recorre não só à miscigenação física,
mas também à união de personalidades: “Tinham, os meninos Tico e Teco,
equilíbrio invejável. Juntos formariam segundo Penélope o humano perfeito (algo
próximo do der gute Mensch fantasiado por seu pai)” (2022, p. 48).
Contudo, se a falta de caráter representada alegoricamente pelo personagem
Macunaíma pode ser entendida tanto como falta de identidade nacional quanto
falta de retidão de conduta, então não seria absurdo conferir ao romance de
Mário de Andrade uma interpretação segundo a qual os três manos seriam uma
tentativa de indicar que a miscigenação seria o caminho para um novo homem
nacional entre tantos outros no cenário global: um ser humano evoluído a partir
da mistura. O tal homem superior, porém, está mais a favor da eugenia e do
racismo, e a protagonista bem o sabe: ela “sempre se espanta com esse ideal de homem
superior, tara finíssima daquela civilização a.C. tão ilustrada e
bem-intencionada. Se soubessem no que o tal ideal de homem superior daria [...]”
(HIDALGO, 2022, p. 92). Sabe-se bem que o super-homem foi a base para a
barbárie, para o massacre de vários povos, e Penélope sabe bem o perigo que
representa tal ideal de “homem superior”. E Luciana Hidalgo (2022, p. 94) se
aproxima de Mário de Andrade no excerto abaixo:
Detalhes do homem
superior vêm logo ao papel enquanto o rosto é enigma. Ela imagina uma profusão
de feições: do índio, do branco, do preto, do mameluco, do mulato, do cafuzo.
Assim, em série, na ordem da chegada de cada um a esse continente ⸺ e dos
acasalamentos sucessivos entre eles ao longo dos séculos (eles, os ancestrais
de Penélope).
Teco, cujo irmão gêmeo é falecido, é
quem presenteia Penélope com um exemplar de Paideia, livro que a mãe
dela lia para a menina.
Ela
constata que
zumbis, alienígenas, lobisomens, vampiros e outras bestas futuristas
imaginárias nem são necessários em totalitarismo algum, só no cinema. As bestas
humanas de sempre dão conta do recado entre iguais, encarnando e encenando
tragicamente violências, injustiças e atrocidades. E pensar que tudo isso
acontece num país-tropical-abençoado-por-deus à luz de um sol impiedoso que não
pode ser mais o culpado de toda a barbárie. Não mesmo [HIDALGO, 2022, p. 60].
O trecho acima
invoca o mito fundador. A personagem está ciente dos
cordiais-mestiços-carnavalizados, manipulados pelos
bárbaros-corruptos-inclementes (cf. HIDALGO, 2022, p. 60).
É no 2º capítulo que conhecemos os
cordiais que compõem o grupo de amigos da protagonista, que os recebe no
apartamento em virtude do seu 30º aniversário, além de sabermos de Daniel, seu
tio, que é mais uma referência do que um personagem. Conhecemos: Heitor, um
militar autoritário e abandonado pela família, a qual foi vítima do
autoritarismo de Heitor; Ana e Joana, dadas ao esoterismo; o pai de Teco.
É no 3º capítulo que descobrimos um
novo cenário (e possivelmente um 3º núcleo): a biblioteca universitária em que
Penélope começa a trabalhar graças à intervenção de Rita. (Esta, por sua vez,
acaba sendo um tipo de pós-criação, já que é uma personagem que acaba revelando
um pouco mais do passado de Penélope.) Trata-se da biblioteca da universidade
onde os pais da balzaquiana lecionavam. Ela estava cansada dos desvios de
função a que tinha de se sujeitar para manter um ganha-pão (seus pais lhe
deixaram apenas um apartamento, de modo que não é rica nem privilegiada). É
nessa biblioteca que ela desenha a Biblioteca Ideal. Estaríamos diante de uma
influência exercida por Jorge Luis Borges? (autor do conto A biblioteca de
Babel):
Para que sua Biblioteca
Ideal não carregue esse peso expressionista, decide incluir no projeto um
grande vitral de cores claras. De novo apaga tudo. Opta por uma enorme
claraboia cobrindo toda a parte de cima do salão de leitura, parede a parede,
de um vidro translúcido que convide o sol a incidir feito faca nos leitores. De
modo a lembrá-los permanentemente em que trópico estão, ou seja, de onde vêm e
até onde podem ir. Ela quer seus Leitores Ideais inundados de luminosidade e
calor [HIDALGO, 2022, p. 81].
Como ex-auxiliar de uma biblioteca
pública destruída no bairro onde cresci, não posso deixar de sentir extrema
simpatia por Penélope e sua Biblioteca Ideal. Ao recusar uma arquitetura
europeia, ela exalta as cores autóctones. Talvez o sonho de
Penélope ilustre bem esse complexo de vira-lata contra o qual ela luta: vendo
que a arquitetura não é adequada para o Brasil, ela começa a trabalhar num
projeto só seu, embora chegue a se trair ao decidir incluir um grande vitral,
marca de uma arquitetura gótica e, portanto, europeia. A luz, é claro,
simboliza um iluminismo pessoal na eterna luta contra as trevas da ignorância.
São Miguel venceu o Diabo, mas o Iluminismo ainda não chegou ao Brasil. Essa
opção pela luz solar também desmente um mito segundo o qual o sol atrapalharia
a leitura, atividade à qual não seríamos (nós, os brasileiros) chegados devido
ao mesmo sol, “que peca/ Só quando, em vez de criar, seca” (PESSOA, 1986, p.
188-9).
É comovente que, dentro do 3º
capítulo, mencione-se o “Seu” Eduardo, “que ganha uma miséria, mas na dúvida e
na fé, na alegria e no desânimo, na cortesia e na injustiça, na dignidade e na
cordialidade, continua a sorrir” (HIDALGO, 2022, p. 94). É ele que se aproxima
do homem superior. Também é emocionante a homenagem à Marielle Franco na página
95.
É no 3º capítulo que conhecemos o
condomínio e os condôminos de Penélope. Nessa parte, conhecemos “Seu” José e
Severino. Este vinga-se da classe média ao se emancipar com um rito que
consistia em expressar raiva danificando carros e deixando registros do uso da
razão. Pode-se dizer que Severino está para Penélope dos trópicos assim
como Dona Plácida está para Memórias Póstumas de Brás Cubas (2021, p. 213),
com a diferença de que ele consegue emancipar-se ou libertar-se da opressão de
gente tão mesquinha.
No 4º capítulo ocorre uma
manifestação contra o neofascismo em forma de bolsonarismo. Uma mulher negra
(que bem pode ser mais uma homenagem a Marielle Franco), de vestido vermelho, é
perseguida por um policial; daí o título tauromaquia.
É no 5º capítulo que sabemos que Penélope
participou da manifestação, e que tanto ela quanto a moça de vermelho foram
covardemente agredidas pela polícia, que abusou de sua autoridade “como quem
chuta cachorro morto” (HIDALGO, 2022, p. 111). Penélope se recupera do spray
de pimenta na moradia de Lucas, seu namorado passageiro ou efêmero. Ele filmou
tudo e praticamente abandonou a protagonista na correria. (Se o trágico mito de
Édipo carrega uma lição moral para prevenir incesto, o spray de pimenta
deve ter ensinado a Penélope que não deve confiar em qualquer um que se diga
revolucionário.) Fez questão de publicar o vídeo na Internet sem saber se isso
afetaria o emprego da namorada. Só atraiu o interesse de Penélope por ler O
Capital, um critério de escolha sugerido pelo próprio Teco, ainda que este
antipatize com aquele.
Decididamente o 5º capítulo é o de
que menos gosto: Lucas é só mais um ativista de Iphone que bem poderia
ser um representante da classe média pequeno-burguesa que se diz progressista,
mesmo que seja filho de assalariado. Isso, porém, não é o único incômodo: o
narrador descreve o coito com metáforas que invocam conceitos marxistas. Isso é
o mesmo que politizar o sexo, ou é o mesmo que sexualizar a política. Essa
moeda de duas faces é enganosa: é ouro de tolo: não favorece a luta contra os
totalitarismos. Não estamos diante da politização da arte, que seria um escudo
contra a estetização da política: estamos diante de um tipo de politização que
une Damares e as feministas de esquerda, já que tanto um lado quanto o outro
politizam o sexo e reprimem-no. Ora, o sexo é instinto primário, de modo que
tanto Lucas (homem culto de esquerda) quanto Antônio (homem inculto, alienado e
inocentemente útil à direita) servem aos mesmos fins da procriação. Se o
narrador informasse que ambos os homens são ruins de cama, ou que ambos são
bons enquanto um é melhor, sem recorrer a imagens de caráter político, eu veria
de um narrador um registro limpo, livre de politização desnecessária.
Quando lê passagens de O Capital,
Lucas revela que não está em dia com as formas mais recentes de capitalismo.
Parece que ele não percebe que o pensamento de Marx tem de ser criticado,
analisado sob a luz dos dias de hoje. Se tivesse lido Thomas Piketty (2014, p.
17), saberia isto: “Marx cometeu o erro de não explorar todas as possibilidades
de que dispunha”. Lucas não reconhece os erros e os acertos de Marx, cujo
trabalho é, sim, relevante até aos dias de hoje, principalmente quando se leva
em conta o alto patamar de riqueza privada que se observa desde os anos 1970 e
1980 nos países ricos (cf. PIKETTY, 2014, p. 18). O aumento de salário, os
direitos que as lutas trabalhistas conquistaram, o erro que foi o totalitarismo
de Stálin, nada disso Lucas observa: ignora (ou finge ignorar) tudo isso.
Também ignora (ou finge ignorar) que o ócio é fundamental para que o
trabalhador seja um consumidor (como quando, por exemplo, se diverte,
anestesiado, no shopping). Em última análise, Lucas
está para o romance Penélope dos trópicos assim como Marechal está para Rio-Paris-Rio
(e Marechal só não é um ativista de Iphone de classe média
pequeno-burguesa porque não havia a tecnologia nos anos 1960, nos quais se
estabelece a diegese de Rio-Paris-Rio).
A meu ver, dois poemas de Fernando
Pessoa descrevem perfeitamente bem Lucas. O primeiro deles começa assim (1986,
p. 2020):
ONTEM À TARDE um
homem das cidades
Falava à porta da
estalagem.
Falava comigo
também.
Falava da justiça
e da luta para haver justiça
E dos operários
que sofrem,
E do trabalho
constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que
só têm costas para isso.
O tal homem é hipócrita: quer apenas um
pretexto para externar a raiva, que não combina com o comportamento estoico do
eu-poético. (O estoicismo há de ser a forma mais antiga do que hoje chamam
popularmente de “de-boísmo”; na linguagem vulgar, ficar “de boas” é fica
tranquilo, sereno.) O homem revoltado repete o gesto em outra ocasião, narrada
no segundo poema, uma sequência da história do primeiro (1986, p. 233):
ONTEM O PREGADOR
de verdades dele
Falou outra vez
comigo.
Falou do
sofrimento das classes que trabalham
(Não do das
pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça
de uns terem dinheiro,
E de outros terem
fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da
sobremesa alheia.
Falou de tudo
quanto pudesse fazê-lo zangar-se.
É tão leviano o gesto de expor a
imagem de Penélope, que o leitor chega a antipatizar com ele na maior parte do
tempo. Teco acompanha as imagens num bar, e chega a sofrer de indigestão, uma
reação escatológica e aceitável. Lucas não perguntou se Penélope queria ser
filmada enquanto era atacada covardemente pela polícia. Não é por acaso que
Teco antipatiza com Lucas, que é muito diferente de tio Daniel; são até quase
opostos. Quanto à repercussão, Penélope se tornou “heroína nacional. Quer dizer,
heroína de uma parcela menor da nação, já que a parcela maior dessa mesma nação
elegeu democraticamente o governo de extrema direita que aí está [...]”
(HIDALGO, 2022, p. 130). Mas ela “ri de volta num desprezo total pelos
insultos” (idem, ibidem, p. 131); e meio que se vinga (e o leitor ético também)
dos detratores que a insultam, conforme este registro: “O que ela pensa deles é
muito pior do que aquilo que pensam dela” (idem, ibidem, p. 131).
Surge uma tensão quando Teco vai
buscar Penélope na moradia de Lucas: “este divide pessoas em duas espécies:
humanos demais e humanos de menos” (p. 135); aquele “divide os humanos em duas
espécies: humanoides e cretinoides” (p. 135). Na persuasão de que “um
intelectual que não pensa além dos interesses da sua própria classe não é um
intelectual” (HIDALGO, 2022, p. 134), Lucas, é claro, não considera Teco, amigo
de infância de Penélope, um intelectual. (Curiosamente, para Gramsci, o
intelectual com poder de convencimento é aquele que convence o público a
aceitar o senso comum ou a ordem “natural” das coisas. Trata-se do intelectual
orgânico, também conhecido como formador de opinião. Atores, padres, pastores
evangélicos, youtuberes, cantores, atores, atrizes ⸺ todos eles são
intelectuais orgânicos na medida em que podem influenciar a opinião e o
comportamento de muitas e muitas pessoas; não é por acaso que, acatando o
esquema behaviorista do estímilo-resposta-reforço, a indústria publicitária
contrata famosos que possam falar bem deste ou daquele produto. Podem ser
capitães do mato do poder, mas não usam chicote: usam prestígio, influência e,
em alguns casos, usam o diploma. Muitos economistas defendem o neoliberalismo e
o ataque à previdência fiando-se no prestígio que lhes confere o diploma. Teco,
mesmo que não saia dos interesses de sua vidinha de classe média, pelo menos
não defende o capital: não pratica a desonestidade intelectual.)
Os três humanos (Lucas, Teco e
Penélope) deixam o ambiente tenso: “O duo é saudável; o trio, nocivo” (HIDALGO,
2022, p. 137). Acredito que ela se traia depois (como veremos mais adiante).
No 6º capítulo, Penélope vai a um
parque, um jardim botânico, na esperança de encontrar Frederico Olavo, que vê o
pai (um deputado de extrema direita) ser preso por corrupção. Antes, porém, de
descobrir que o primeiro é filho do segundo, ela tece conjecturas penelopeanas.
“Esquerda que é esquerda”, diz o narrador (2022, p. 150), “leva flor pra
polícia e exige julgamento digno pro cidadão”. Sim, mas qual é a esquerda a que
se refere o narrador? A extrema esquerda? A esquerda das pautas identitárias? A
esquerda da cultura totalitária do cancelamento? A esquerda defensora da
coalizão em forma de Estado do Bem-Estar Social e Social Democracia? A
propósito: em nenhum excerto estão as expressões coalizão, Estado
do Bem-Estar Social, Social Democracia e neoliberalismo.
Penélope chega a fazer uma analogia entre o absolutismo e as formigas,
exploradas pela rainha, o que é coerente com seu caráter. (Não a censuro, é
claro, porque eu mesmo fiz isso em 2021 numa dessas rodas de conversa. Até a
natureza pode ser politizada de vez em quando.)
Talvez a cena mais marcante (depois
daquela em que duas turistas cantam uma música infantil) seja aquela em que o
clima fica mais hostil do ponto de vista da temperatura mesmo: “o sol do
meio-dia e o calor úmido do verão, sem uma brisa sequer, a sufocam” (HIDALGO,
2022, p. 152). Fico a me perguntar: a sensação de desconforto seria causada
apenas pelo clima ou pela temperatura? Talvez sim, mas isso se coaduna com a
violência que Penélope e tantos outros brasileiros sofreram na mão do
bolsonarismo. De qualquer forma,
Na atualidade da
literatura brasileira, vista em imagens violentas e chocantes, simbólicas e às
vezes herméticas, ilustrada pela putrefação e estagnação dos charcos e dos
pântanos, onde os pássaros fogem dos miasmas e as árvores, receosas, se debruçam
sobre si mesmas, o Dr. Cláudio sente falta de uma verdadeira obra de arte [SANTIAGO,
1978, p. 94-5].
Talvez os objetos
grotescos mencionados no comentário acima, relativo ao personagem Dr. Cláudio,
do romance O Ateneu, de Raul Pompéia, resuma um pouco das imagens
tropicais que Penélope tanto analisa. A barbárie bolsonarista está “numa
paisagem fúnebre e doentia” (SANTIAGO, 1978, p. 95); contudo,
Penélope mantém intacta a sua razão, que ela usa maravilhosamente bem.
Para o alívio da protagonista, não
aparece Frederico Olavo (um dos usuários da biblioteca onde Penélope trabalha),
o que a poupa da presença de outro neofascista.
No 7º capítulo, Penélope finalmente
conhece Theo, professor de Grego que lidera um grupo de gregófilos. Apesar da
enorme atração que possa exercer a premissa em que estão calcadas as reuniões,
não se trata de uma seita. Também não é um grupo de autoajuda, conquanto seus integrantes
se consolem e busquem apoio uns nos outros diante das agruras causadas pelo
bolsonarismo e pelas outras distopias totalitárias mundo afora. Com efeito:
Quanto mais leem,
pensam, discutem, mais especulam. Penélope está deslumbrada. Idealizam uma nova
organização onde o Estado fincaria raízes intelectuais, políticas e éticas na
filosofia, na poesia, na música e em corpos sólidos, guerreiramente exercitados
para guerras que se zeus-quiser nunca serão necessárias [HIDALGO, 2022, p.
167].
Entretanto, parece que aqui há um
pequeno arranhão que talvez possa atingir a coerência interna do romance:
Sabemos que Penélope considera bom o duo; rejeita o trio por ser nocivo.
Acontece que isso cai por terra quando “De repente enxerga uma saída de
emergência ao país: a união do caráter ético-intelectual de Theo à revolução
social-braçal de Lucas e ao espírito crítico-esculachado de Teco. Do meio-termo
sairá a luta justa” (HIDALGO, 2022, p. 168). Mas há mais: a protagonista cita
de cor uma frase de Paideia: “A trindade grega do poeta, do homem de Estado
e do sábio encarna a mais alta direção de uma nação” (p. 174).
Rita, a bibliotecária, informa à
Penélope que a biblioteca fora invadida e danificada por criminosos, que no
patrimônio picharam símbolos nazistas, slogans racistas e ameaças de morte (p.
177). É óbvio que o ataque ao patrimônio é um ataque ao pensamento crítico, que
os bolsonaristas odeiam com todas as forças. Felizmente, Rita conseguiu
assegurar o emprego de Penélope. Ela, conhecedora que é das ideias de Freud,
sabe que “num linchamento sabe-se mais sobre o linchador do que sobre o
linchado” (2022, p. 169).
No 8º capítulo descobrimos que Theo
e Penélope formam um casal. Amam-se enquanto uma pandemia gera o extermínio de
milhões. É óbvio que se trata de uma questão global, e não nacional. Theo
cogita de levá-la à Grécia. Ela, porém, não quer “voos mais altos, distantes da
costa” (p. 186). Diz o narrador: “Talvez por intuir que mortais levem vidas
igualmente bestas em outras paragens, outras línguas; partir pra quê?” (p. 186).
Isso pode não ser muito otimista para quem tenta ser otimista, mas poderia
muito bem ser um tapa de pelica no complexo de vira-lata de tantos brasileiros.
No 9º e último capítulo, descobrimos
que o vendedor de mate é o “Seu” Eduardo, que agora tem sob sua tutela um
sobrinho. “A percepção do abismo social”, diz o narrador (p. 197), “que separa
o vendedor de mate dos frequentadores dessa praia dói diariamente em Penélope”.
Teco zomba disso:
É disso que Teco
mais debocha nela e em Theo. Na areia onde tantos se divertem, vaidosos em suas
silhuetas, festeiros, anestesiados, o casal pensa na próxima reunião gregófila,
agora em endereços alternados para fugir à perseguição de neofascistas pirados.
Os dois continuam a crer em reuniões, manifestações, ações, apesar da
frustração por não mudarem nada (ainda) [HIDALGO, 2022, p. 197].
Os gregófilos são espionados e
perseguidos. Meu trecho favorito é este (páginas 198 e 199):
[...]
quando o delegado incluiu Platão na lista de subversivos alegando a sua
intenção em fundar uma República comunista no país, a imprensa ridicularizou e
ninguém mais levou a sério. De acordo com os autos, o filósofo grego era um
estrangeiro perigoso a ser imediatamente deportado. Nunca foi encontrado;
escafedeu-se o tal.
Só, o trecho acima
já vale o tempo dedicado à leitura. Se por uma longínqua hipótese fosse ruim
todo o restante da prosa, o excerto que aqui fica compensaria tudo. Penélope, é
claro, não desiste: “A ideia de Penélope é promover uma barulhenta ode à
democracia, ao direito de pensar, ao dever de dizer. E tudo isso porque, é
sabido, os paraidiotas odeiam livros e quem os lê” (HIDALGO, 2022, p. 199-200). Penélope está muito
consciente de que
O jogo de gato e
rato corre solto na dark web, na web oficial, nas redes
sociais, nas universidades, nos ambientes de trabalho. O governo nem precisa
gastar dinheiro em caçadas a opositores já que uma tropa de idiotas civis, ou paraidiotas
(segundo Teco), faz o serviço de graça por pura idiotice pessoal, engrossada
pela idiotice coletiva [HIDALGO, 2022, p. 198].
Theo compara a Penelope obscura,
ave nativa que meio que invoca Gonçalves Dias, com a Penélope humana (p. 201).
Estão em risco de extinção ambas as Penélopes. Depois que ela observa a linha
do horizonte, que “não mais desloca nem pontilha nem tremula” (HIDALGO, 2022,
p. 202), passamos a descobrir mais tecidos do pensamento penelopeano. A tecelã,
é claro, nunca perde o fio de Ariadne, nem se deixa intimidar por minotauros
bolsonaristas. No mar ou na terra, ela resiste com valentia: é inabalável sua
determinação em não se curvar e em não esmorecer. Isso faz dela uma personagem
plana? (sem transformação interior). Talvez sim, mas ela já tinha tudo o que
era preciso. A única transformação que a aproxima de uma personagem esférica é
o fato de ela e Theo firmarem um namoro: estava sozinha (ou até solitária)
havia bastante tempo. É simbólico que o nome de seu amado seja esse. Ela
finalmente se harmoniza com as relações entre a imanência e a transcendência, e
isso fica evidente na descrição da casa de máquinas, que vê na linha do
horizonte, e “que abriga todas as rodas das fortunas” (HIDALGO, 2022, p. 203).
“Na visão visionária de Penélope”, diz o narrador (p. 203), “cada mortal existe
simultaneamente lá cá acolá”. (Tal máquina não foi ilustrada pelo Sr. Mauro
Bitar, infelizmente.) Os deuses, segundo essa visão, assistem aos mortais,
“assim como humanos assistem às suas tvs com maior ou menor interesse” (idem,
ibidem, p. 203). Os humanos sisifam, isto é: fazem um trabalho de Sísifo.
Realmente, quem combate o mal torna a combatê-lo, e isso porque quem o pratica
torna a praticá-lo: “Era importante [...] lutar, e recomeçar a lutar, e
continuar a lutar, porque somente assim o mal poderia ser acuado, embora jamais
erradicado” (ROWLING, 2005, p. 504). Isso, é claro, é cansativo; não é por
acaso que
Penélope gostaria
que a humanidade caranguejasse menos, pegasse uma reta, seguisse uma planilha
evolutiva sem retrocesso. Assim como gostaria de ver o Museu das Emoções
Singelas, a Biblioteca Ideal, a pólis na favela em frente ao seu apartamento.
Infelizmente a sua Penelópolis
nunca sairá da maquete [HIDALGO, 2022, p. 205].
Ela é, afinal, uma
arquiteta, e não uma engenheira; por isso é coerente que ela faça mais
abstrações e aposte em gestos simples, sem repercussões nas redes sociais.
Talvez este seja um segundo traço de mudança interior, porém não a considero
uma personagem esférica, embora, é claro, ela gire em torno do próprio eixo. É giratória
(por assim dizer), porém é plana: não vejo uma transformação radical, isto é:
uma mudança drástica nas raízes. Se isso acontecesse, ela poderia abandonar
seus escrúpulos e ignorar o mal por comodismo ⸺ e decididamente ela não faz
isso. Como o mal e todo o resto são cíclicos, não são necessários guias nem
bússolas, conforme a última frase do romance: “As grandes (penelopescas)
aventuras só existem para mostrar que o ponto de chegada é exatamente o da
partida” (HIDALGO, 2022, p. 206).
A cena final é a de uma reunião na
praia: Penélope, Theo e os amigos estão reunidos. Juntos, contemplam o pôr do
sol.
O que a protagonista vê no mar do
último capítulo (p. 204) é um mar calmo, num estado que é praticamente o oposto
do estado do mar do primeiro capítulo. Nas águas consegue enxergar fatos
históricos; os animais que devoram e os que são devorados; a escravidão que
marcou o Brasil; Atlas... Isso tudo meio que se coaduna com o trecho da canção
de Débora Blando, que inseri nesta resenha como epígrafe. Essas livres
associações entre o mar, o sol, a evolução, a história da humanidade, a vida e
os ciclos que isso tudo forma me levam à canção. Todavia, no que concerne à
situação específica do bolsonarismo e a todos os gestos de resistência que
Penélope demonstra, é preciso admitir que ela é “alguém que resiste”, “alguém
que diz não”, conforme os versos do poeta português Manuel Alegre. Claro está
que a própria autora também resiste. Com efeito: “há [...] casos em que
a biografia do autor acha-se em relação pertinente com sua obra. Apenas, para
ser utilizável, seria preciso que esta relação fosse dada como um dos traços da
própria obra” (TODOROV, 2017, p. 160). Contudo, a via de projeção biográfica
não há de sobrepujar a via historiográfica: as duas se completam, porém é esta,
e não aquela, que salta aos olhos do crítico na hora de escolher os métodos de
análise e serve melhor ao propósito de compreender o romance, que conforta o leitor
que está triste por causa dos vários signos de ruína que temos testemunhado nos
mais recentes seis anos (2016-2022).
Da forma e dos procedimentos estéticos
Já antecipei o debate desta seção na
primeira, em que menciono os fatores externos à Literatura e o abstracionismo.
Antes, porém, que passemos ao exame de algumas evidências da qualidade da
forma, vejamos a divisão da estrutura em nove capítulos (que, ao contrário dos
outros romances da autora, contam com títulos, e que talvez sejam uma alusão às
nove musas):
entre gaivotas abutres e humanos
[p. 11];
um corpo terrestre em rotações
inebriantes ao redor do próprio eixo [p. 39];
aquela que pretende e é pretendida [p.
77];
tauromaquia [p.
109];
das revoluções que percutem em
corpos como poemas [p. 117];
círculos concêntricos num redemoinho
de rosas [p. 143];
os gregófilos
[p. 161];
penelopeia [p.
181];
ποσειδων [Poseidon]
[p. 189].
Os núcleos (ou cenários) são estes: a
praia, o apartamento de Penélope, a biblioteca, o interior do condomínio de
Penélope, as ruas da manifestação, a casa de janelas azuis (onde se reúnem os
gregófilos) e a moradia de Lucas. O narrador, é claro, só estará onde ela
estiver (com exceção do trecho em que Severino está celebrando intimamente a
própria liberdade na praia). Trata-se de um narrador observador onisciente, em
3ª pessoa (e talvez ligeiramente intruso).
Hidalgo há de ser o oposto de Coelho Neto
(o qual, aliás, eu nunca li), o parnasiano da prosa, mas, como seguidora de
Lima Barreto, ela concretiza o ideário parnasiano de Olavo Bilac, a saber: o de
limar e sofrer sem que isso transpareça no texto final, em que não há
artifícios, nem exibicionismo, nem beletrismo, nem barroquismo.
Segundo a professora Olga Kempinska (2012,
p. 170), o poema em prosa foi criado por Aloysius Bertrand. No poema em prosa,
não há propriamente uma narrativa, mas nele se “encena a manifestação de uma subjetividade”
(idem, ibidem, p. 170).
Penélope (o romance),
apesar de estar longe daquela coloquialidade ultrajante de Mário de Andrade e
seu Macunaíma (a prosa, e não o personagem), atinge um registro meio
vulgar, de que são provas os termos bunda e putas. Isso, é claro,
deve-se à onisciência do narrador, que, mesmo sendo uma terceira pessoa,
registra opiniões de uma primeira. Uma vez que, dentro da polifonia formada por
vozes de personagens de classe média, o narrador onisciente só diz o que permite
a autora, obediente que é ao princípio da verossimilhança, surge essa
coloquialidade, que não é leviana nem escandalosa, mas não chega a ser
agradável o tempo todo. (Por que a classe média só conhece os níveis mais
vulgares de registro linguístico? Falta repertório, apesar do dinheiro que sai
do bolso dela para cair no bolso de escolas particulares.)
Mesmo sendo leve e fina, com períodos
simples, sem preciosismo, o fato é que a pontuação deixa a desejar aqui e ali.
Os autores que deixam de usar sinais de notação sintática de propósito devem
fazer isso na persuasão de que estão sendo modernos e progressistas, porém
acabam sendo medievais ou antiquados, porquanto a notação
sintática seja um avanço da tecnologia mais preciosa da humanidade, a saber: a
escrita. Os antigos e os medievais não usavam vírgulas, porque não as
conheciam. No caso de Luciana, chega a ser bastante curioso isso: há nela uma
francofilia. Pois bem: segundo a
Arte de pontuar (1953, p. 13), de Alexandre Passos, pode ser atribuída aos
franceses a evolução da notação sintática: “Os Românticos brasileiros e
portugueses, pelos seus principais representantes, porfiavam em bem aplicar os
sinais de pontuação, talvez por influência da leitura de livros franceses [...]”.
O leitor acaba tendo de prover o que lhe foi negado pela autora, como
quem compra um aparelho eletrônico com peças por encaixar. Parece que, em nome
do estranhamento, que consiste em fazer com que o leitor lance um novo olhar
para o objeto mimetizado na literatura, como se pela primeira vez o visse, os literatos
passaram a adotar e os críticos literários passaram a adorar certas liberdades
estilísticas, que não são licenças poéticas, pois que nem sempre embelezam o
escrito. Nova Crítica, impressionismo crítico, estruturalismo, formalismo russo
⸺ qual dessas correntes considera bonito a supressão de sinais? Parece que os
críticos escutaram o galo, mas não escutaram bem onde, e certos autores também ⸺
e Saramago é um deles. É como se, em nome de uma liberdade individual, não
importasse mais um legado preservado por gramáticos e filólogos. O
máximo que pode a autora brasileira fazer é, “na medida exata em que há uma
Literatura Brasileira” (FILHO, 1972, p. 285), usar “uma Língua Literária
Brasileira” (idem, ibidem, p. 285), embora, é claro, essa questão estilística
seja intertextual em virtude da influência que autores exercem uns sobre os
outros em determinada época (daí as expressões estilo de época e escola
de época, tão caras aos Estudos Literários), sem restrição territorial. A
língua, do ponto de vista estrutural, é a mesma; o uso nacional brasileiro não
se afasta tanto do de Saramago: muitos modernos e pós-modernos insistem em
desprezar o uso de certos sinais de pontuação. Se idioma e alfabeto são coisas
distintas (com o alfabeto latino é possível, por exemplo, escrever palavras de
qualquer idioma), então a notação sintática também é “independente” de qualquer
idioma, posto que ela se internacionalizou; contudo, é filologicamente
preservada pela gramática de cada idioma. Que novidades existem? Não há nada
novo sob o sol. Até os discursos diretos, que formam os diálogos, ficam na mão
do narrador: não há travessões. Vejamos alguns excertos em que os sinais de
pontuação, inseridos entre colchetes, ficam por conta do leitor:
Só aos poucos discerne quem é quem[,]
o que é o quê [p. 99].
O que é real[,]o
que é irreal: importância pouca [p. 102].
Ao que Joana chama Ana[,]que
chama Clara[,]que chama Bernardo[,]que chama Heitor[,]que
chama Rafael[,]que chama um monte de gente [p. 102].
E andou[,]andou[,]andou[,],
cada vez mais rápido, contra tudo[,]contra todos, braços pra frente[,]pra
trás[,]pros lados [p. 123].
Não vou censurar quem disser que
estou sendo mísero e mesquinho por me incomodar com ninharias de notação
sintática, até porque o critério de Luciana Hidalgo é rítmico e estilístico, e
não gramatical, nem filológico. Apenas chamo a atenção para um fenômeno que
José Saramago, de certo modo, também manifestava e me incomoda.
Por falar em sintaxe, há uma questão
de regência nominal no início do capítulo tauromaquia (p. 111): “Na
justiça, na injustiça, contra ou a favor do Estado”. Um purista “corrigiria” a
frase; assim: “Na justiça, na injustiça, contra o Estado ou a favor dele”.
Entretanto, um poema em prosa não
pode se prender tão só aos aspectos acima, de modo que se tornam fundamentais e
até imperativos o ritmo e a sonoridade. O leitor fica satisfeito com a
expressão Teco do boteco e outros bons achados, tais como quiasmos, aliterações
e onomatopeias (que estão inseridos aqui e ali, assim como alguns versos): “Deuses
que vivem de apostas num bando de mortais vulneráveis
como se assistissem a uma corrida de pangarés capengas.
Num dia protegem os valentes e castigam os covardes, noutro dia protegem
os covardes e castigam os valentes” (HIDALGO, 2022, p. 18, destaques meus).
Mas há mais:
A
ventania varre incautos do céu, da areia, do mar [p.
19].
[...]
dos mitos gregos, e eles são muitos, restam farrapos míticos
[p. 19].
Para
complicar, a sua língua ligeira e leviana é presa [p.
20].
[...]
a menina se viu obrigada a aceitar a atenção de todo e qualquer vizinho solidário
à sua solidão [p. 63].
Mesmo que possa ser reducionista,
existe um conceito de ekphrasis segundo o qual ela é a descrição pura e
simples de seres, objetos e acontecimentos, conforme Álvaro Gomes (2015, p. 20).
Pois bem: encontramos em Penélope dos trópicos (o romance) a descrição
de bibliotecas e paisagens urbanas e naturais, além da descrição do homem superior.
A linha do horizonte desenhada acaba sendo uma luva, assim como a rosa dos
ventos, que aparece duas vezes. Tratar-se-ia de experimentos concretistas ou
neoconcretistas? Tudo isso, é claro, cai muito bem na história de uma
personagem que é, afinal, uma desenhista.
(Os detalhes físicos de Penélope não
são apresentados todos de uma vez, tais como a tatuagem e o fato de ser adunco
o nariz: meio que ficam espalhados nos capítulos.)
A imagética, é claro, não deixa a
desejar (e falar dela é falar de ekphrasis). Uma das imagens mais
instigantes e assustadoras está no 2º capítulo, em que a protagonista aceita, a
contragosto contido, um abraço de Heitor, o militar machista que colhe os
frutos amargos e adoecedores de sua ideologia funesta:
Ela não gosta. E
se aceita o gesto desajeitado é só porque a remete ao abraço atemporal do
universo. Numa leitura recente, Penélope entendeu que o espaço sideral é
gelatinoso, molengo, e se inclina, e se curva, e se
debruça sobre a Terra envolvendo todos os seres num abraço cheio de escuridão [HIDALGO,
2022, p. 65, destaques meus].
O polissindetismo
à maneira de Bilac reforça o sentido que o excerto acima produz. O teor
sombrio, no entanto, nem sempre é a tônica quando se trata de descrever o
binômio formado por opressores e oprimidos. A catarse proporcionada pela
libertação de Severino, por exemplo, chega ao ápice na passagem abaixo:
O fiapo de lua
minguante no céu escuro de início reforça seu pessimismo, mas logo traz à
memória a namorada de adolescência deixada pra trás. E a jura feita: estivessem
onde estivessem, caso vissem no céu aquela lua fininha pendurada no vazio, lá
se imaginariam sentados juntos, lado a lado, pernas balançantes na escuridão.
Dez anos de cidade haviam apagado a lua no céu e a jura na terra [HIDALGO,
2022, p. 103].
Severino não esqueceu o sonho. Sua
imagem sob a lua e tantas outras sempre se coadunam com a forma que ganham.
Considerações finais
Com relação ao mito fundador (e não apenas
à intertextualidade explícita com a literatura e a mitologia gregas), Penélope pode
ser um no cravo e outro na ferradura. Ela reforça esse mito em alguns pontos,
mas também o desmente em outros. Paradoxal? Sim, mas a própria Luciana, em
entrevista ao Bondelê (a partir dos 26 minutos e 51 segundos do vídeo),
já pontuou que escreve para conviver com o mundo e para entendê-lo, o que gera
uma certa conformação. Ela mesma admite, de viva voz, que nisso existe um
paradoxo. Sendo Penélope seu alter ego, nada mais coerente.
Sou muito grato por Penélope existir,
embora ela seja ficção. É um consolo num país tão arruinado. Resta saber se,
fora dos trópicos, existem outras Penélopes quase extintas no mundo editorial.
(Guarapari,
ES. De novembro de 2022 a 2 de janeiro de 2023, 2º dia do 3º mandato de Lula. Os
cães ladram, a caravana passa. Revisão mais recente: 4 de novembro de
2023.)
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