A
morte e os insólitos em Diógenes Magalhães[1]
Márcio
Alessandro de Oliveira[2]
“O medo é o eterno companheiro do homem, e não há
indivíduo que não experimente a tortura do medo em diversas ocasiões da vida.
Aliás, herói não é aquele que não sente medo, e sim aquele que enfrenta o
perigo apesar do medo.” (Fausto Cunha, em prefácio do livro Neurose no Corpo.)
“Como querem que nos sintamos seguros nesse mundo
tumultuoso?”
(Diógenes Magalhães, 2006, p. 115.)
Resumo:
A poética do pernambucano Diógenes Magalhães (1924-?) explora a morte e os
insólitos, motivo por que esta investigação examina o modo como tais temas
comparecem num corpus formado por
poemas do livro Síndrome do Pânico
(2002) e excertos de Acuso! (1986) e Neurose no Corpo (2006), dois livros de
prosa. Uma vez que é preciso verificar se a literatura do autor pode ser
reduzida a sua neurose e sua biografia, usam-se fontes que fornecem traços
biográficos em consonância com afirmações que vão desde as ponderações de
Tzvetan Todorov às de Antonio Cândido, além das teorias de Pierre Bordieu, que
explicam a posição de Diógenes Magalhães no que o francês chamava de campo
intelectual. Coadunam-se princípios teóricos de tais estudiosos com a
metodologia, que consiste em, conforme a definição de François Jost (1994, p.
334-347), “diacronia e sincronia, analogias, dedução, indução, escolha de
temas, motivações e influências entre autores”. Como pesam os paratextos, quer
sejam autorais, quer não, a atribuição de sentidos às imagens inoculadas por
Diógenes Magalhães em seus versos (alternados entre decassílabos e livres) e em
seus desabafos em forma de prosa e as indagações em torno delas dependem de
tais paratextos tanto quanto o horizonte de expectativa do leitor e seus protocolos
de leitura, preparados para a singularização de imagens e para o uso especial
do idioma (a literaturidade). Estes geram o estranhamento na medida em que o
autor tem o poder de sair do lugar-comum sem deixar de revelar forte
intertextualidade com Augusto dos Anjos (1884-1914), com quem é inevitavelmente
comparado, e ligeira intertextualidade com Bram Stoker (1847-1912) e Mary
Shelley (1797-1851).
Palavras-chave:
Diógenes Magalhães. Fantasma. Insólito. Morte. Vampiro.
INTRODUÇÃO
Debruça-se este artigo
sobre um corpus[3] retirado
da obra do pernambucano Diógenes Magalhães, autor que nasceu nos anos 1920 e aparentemente
ficou à margem dos cânones brasileiros. O supracitado corpus é formado pelos seguintes poemas, extraídos do livro Síndrome do Pânico (2002): “Uma réstia de
alho para Drácula” (p. 161), “O monstro” (p. 158), “O convívio do silêncio” (p.
149), “Desintegração” (p. 91), “Maldição” (p. 94), “Necrotério” (p. 89),
“Pesadelo” (p. 87), “Encarnar, Desencarnar, reencarnar” (p. 68), “Síndrome do
Pânico” (2002, p. 86), “Reencarnação, queima de carma” (p. 6) e “Profecia.” (p.
52). Também foram selecionados trechos em prosa dos livros Neurose no Corpo, Acuso! e Meu Diário de Menino. A intenção da
presente análise é a de verificar o modo como a morte, o vampiro, o fantasma, os
cadáveres e outras representações do medo aparecem na literatura de Diógenes
Magalhães: Seriam meros sintomas neuróticos? Poderia a literatura do
pernambucano ser reduzida a um sintoma neurótico? Caso pudesse, isso apagaria
as cores locais? Estas permitem que se comprove que, mesmo que a literatura
introspectiva e subjetiva revele visões do eu e sua interioridade, a literatura
é historicamente condicionada, ainda que não seja uma cópia ou um espelho fiel
da realidade. Por ser necessário procurar pontos de contato com outros autores,
dentre os quais o que mais se destaca é Augusto dos Anjos (1884-1914), estabeleceu-se
que a metodologia consiste em “diacronia e sincronia, analogias, dedução,
indução, escolha de temas, motivações e influências entre autores” (JOST, 1994,
p. 334-47). Destarte, vai-se, conforme Tzvetan Todorov, da obra particular ao
gênero e do gênero à obra particular. “É legítimo observar, no interior de um
texto”, declara Todorov (2017, p. 151), “a relação que se estabelece entre a
cor do rosto de um fantasma, a forma do alçapão pelo qual desaparece, o odor
singular que deixa este desaparecimento”, e isso, é claro, vai ao encontro do
fato de que “toda uma infinidade de gêneros ou subgêneros híbridos em que a
irrupção do inesperado, imprevisível, incomum seja marca distintiva” (GARCÍA,
2012, p. 14 apud PETROV, 2016, p.
95). Esse trabalho de avaliação julga um caso particular (uma obra) para
confrontar os elementos com o que postula a teoria, de modo que se verifique o
que há de diferente e o que há de conhecido no texto. Dessa forma, vai-se do
particular ao geral (isto é: da obra específica ao gênero literário a que pertence)
e vice-versa. Como seus textos são muito introspectivos, será necessário
aplicar uma das três vias de projeção de Todorov: a biográfica. Esta não anula
a historiográfica. Do ponto de vista estrutural, é necessário destacar não
apenas os procedimentos estéticos, de que fala Viktor Choklovsk (1978, p. 39-56),
mas também a literaturidade (uso especial do idioma), de que fala Terry Eagleton
(2006, p.8-12) a propósito dos formalistas russos, nos poemas selecionados e
nos excertos de prosa por destacar. Também se faz mister identificar o binômio
imanência/transcendência. Serão levados em conta outros condicionantes do
horizonte de expectativas, do protocolo de leitura e da produção de sentidos, a
saber: os paratextos, quer sejam autorais, quer não.
1.
A
vida e a obra do autor
Muito
pouco se sabe a respeito da vida de Diógenes Magalhães. Embora ainda não tenha
sido possível examinar certas fontes primárias, tais como certidão de
nascimento, certidão de óbito e documentos pessoais, aqui e ali foram colhidos
dados biográficos, boa parte dos quais está nos livros Meu Diário de Menino, Acuso!
e Redação com base na Linguística (e não
na Gramática). Nasceu nos anos 1920 (em 1924), formou-se em Direito,
trabalhou no Banco do Brasil e dava aulas de Português em cursos preparatórios (possivelmente
para complementar a renda).
A
isso se soma a falta de reconhecimento no campo intelectual, conquanto
conseguisse vender muitos livros seus por conta própria, a ser verdade o
seguinte trecho de notícia do site
Overmundo, que se refere ao pequeno sucesso comercial do livro Redação com base na Linguística (e não na
Gramática):
O livro, em si, tem um acabamento bem
simples, com capa manual e impressão convencional. Pode ser encontrado
facilmente, pois a tiragem de dois mil exemplares desta sétima edição de seu
livro, feita no meio do ano passado, está longe de acabar. Mas alerta que a
edição anterior se esgotou em apenas um ano. Portanto, se quiser ter contato
com uma visão polêmica, sincera e interessante sobre o uso do português no dia
a dia, vale conferir a obra de Diógenes Magalhães. Que pode não ser famoso, mas
tem suas próprias armas para defender o que acredita ser um dos maiores bens de
uma nação: sua língua.
O livro dava prejuízo ao autor: “o
preço de venda”, informa o Overmundo,
“equivale a 2/3 do preço de produção. ‘É a minha depressão. Eu estou pagando
pra ver’, desabafou Diógenes[,]que,
em seguida, complementou: ‘Eu fiz tratamento para esta depressão, mas estou me
curando fazendo livros’”.
Diógenes
é um autor pouco ou nunca estudado: seu nome não aparece em manuais de Literatura
nem em artigos acadêmicos. Estaria acontecendo com ele o que aconteceu com
Augusto dos Anjos? Quais seriam os fatores do pouco reconhecimento a ele
dispensado? Sabe-se que se opunha aos valores estéticos de Mário de Andrade
(1893-1945), que, no dizer do pernambucano, usava um linguajar chué:
Como ficarão as Memórias Póstumas de Brás Cubas quando forem traduzidas para
“brasileiro”? (Sim, porque Machado de Assis escreveu em português, e portanto
os livros dele têm de ser traduzidos.) E A
Ilustre Casa de Ramires — como ficará? Todo aquele encanto do estilo de Eça
de Queirós desaparecerá quando o livro passar ao linguajar chué de Mário de
Andrade (MAGALHÃES, 1995, p. 57).
Diógenes também se considerava
linguista, e como tal defendia ideias extremamente conservadoras. Curiosamente,
foi rejeitado várias vezes pela Academia Brasileira de Letras,[4] conforme
notícia do site Overmundo (de 12 de
maio de 2006):
A carreira de Diógenes como escritor, em
verdade, é bem longa. Já publicou mais de vinte livros, entre prosa, poesia,
livros de estudos de línguas e outros. Alguns, inclusive, por grandes editoras,
como a Ediouro. Mas, quanto ao Redação...,
saiu independente (pelo próprio selo, chamado Edições Coisa Nossa) porque
ninguém se interessou em publicar. “Procurei as quatro maiores editoras do
estado, mas nenhuma aceitou”, afirmou, resignado. Ainda assim, tem motivos para
se animar: está concorrendo, pela 27ª vez, a uma cadeira na ABL. Conta,
inclusive, que em uma das votações passadas soube ter recebido seis votos. “Mas
eu faço por fazer, eu não quero mesmo entrar. Da 1ª vez, inclusive, foi de
brincadeira”, conta o escritor.
Algumas
de suas teses e fundamentações poderiam ser discutidas, desconstruídas e até
aproveitadas nos Estudos Linguísticos (sobretudo numa linha de pesquisa que
contemplasse os comandos paragramaticais, de que fala o professor Marcos
Bagno). No entanto, essa possibilidade de pesquisa foge ao escopo deste
projeto, e só é aqui mencionada porque as teses linguísticas mantêm vínculo com
os escrúpulos estilísticos do autor pernambucano. Três são os fatores que podem
ter determinado sua marginalização na vida intelectual: a escolha de temas, sua
recusa em aceitar como digno o estilo de Mário de Andrade (recusa que é apenas
uma de várias amostras de suas concepções linguísticas e estilísticas) e suas
críticas à Academia Brasileira de Letras (doravante ABL), a qual, segundo
depoimento do autor registrado numa rede social,[5] não
era séria por ter apoiado Getúlio Vargas. Pode-se dizer que a posição que
ocupava no que Pierre Bourdieu chama de campo intelectual (formado por
editoras, críticos, leitores) era bastante singular. Com efeito: Pontuando a
dependência do intelectual em relação à imagem e ao julgamento que dele faz o
público, Bordieu afirma que ele pode rejeitar a personagem que ao intelectual
atribuem, mas não pode ignorá-la; a verdade do projeto criador é dada pela
recepção social, “porque o reconhecimento dessa verdade está contida num
projeto que é sempre projeto de ser reconhecido” (1968, p. 114). Contudo, há obras que tendem a criar o seu
público, ao passo que existem as que por ele são criadas. Para Bordieu,
“‘autores de sucesso’ são [...] os objetos mais [...] acessíveis aos métodos
tradicionais da Sociologia, já que se pode supor que as pressões sociais [...]
dominam em seu projeto intelectual” (1968, p. 115). Ora, Diógenes não se
sustentava com a literatura: sustentava-se com o salário de servidor do Banco
do Brasil. Segundo afirma o supracitado intelectual francês (1968, p. 105-45),
todo sentido público da obra é, como julgamento objetivamente instituído,
obrigatoriamente coletivo, e se dá nas relações entre o editor e o crítico, o
autor e o público, o autor e outros autores.
Assim, a relação do autor com qualquer obra é sempre uma relação
mediatizada por outra: a relação mantida pelo sentido público dela. Na
interdependência das partes integrantes do campo intelectual, algumas têm peso
funcional maior e atuam de maneira desigual para dar ao campo sua estrutura
particular, como no caso de agentes particulares (escritores) e sistemas de
agentes (como o sistema de ensino). Nas
interações entre essas partes, “existe quase sempre [...] uma pluralidade de
forças sociais, às vezes concorrentes, às vezes coordenadas, que [...] estão
aptas para impor suas normas culturais a uma extensão do campo [...]” (BOURDIEU,
1968, p. 127). Além disso, a estrutura do campo intelectual mantém relação de
interdependência com a estrutura das obras hierarquizadas segundo seu grau de
legitimidade. Uma vez que o autor de Síndrome
do Pânico não dependia de um público consumidor e distribuía seus livros
com o próprio selo, não tinha restrições. Tudo, pelo visto, em nome da
liberdade que lhe rendeu um semianonimato. Contudo, era reconhecido por Fausto
Cunha (1924-2004), que chegou a escrever o prefácio de Neurose no Corpo.
Infere-se
que, embora não pudesse ganhar a vida apenas com a literatura, conseguia
complementar a renda trabalhando como redator-fantasma, como ele mesmo relata
em Redação com base na Linguística
(2008, p. 64): “Durante muitos anos, ganhei a vida ‘consertando’ os escritos de
sujeitos que eram obrigados a redigir, e nada conheciam da técnica de redigir”.
E completa: “direi que vivia de passar para linguagem clara o que me era
trazido em sintaxe confusa, em termos abstrusos, em forma de redundâncias ou
tautologias. Eu era, portanto, redator-fantasma”
(2008, p. 65). É muito condizente a metáfora do redator-fantasma (também
conhecido como escritor discreto e consertador de originais).
Além
de sua posição política, pesam os temas, que são o que mais chama a atenção no
levantamento de fatores de marginalização, pois que demonstram
intertextualidade com Augusto dos Anjos, como no capítulo dezoito do livro Acuso!,[6] intitulado
“Você me convenceu: não sou mais do que um tonel de excremento” (1986, p. 142).
Ocorre que cada um dos capítulos de Acuso!
é uma carta em que o autor se dirige ao psicanalista, que não aplicou um
tratamento adequado (na verdade, não aplicou tratamento nenhum) ao neurótico
escritor. Este narra o seguinte (1986, p. 143):
Um dia, já na
terceira fase do “tratamento”, você me perguntou:
—
Por que esta insistência em comparar-se com um saco de excremento?
Respondi logo:
— Mas foi você quem me convenceu de que
não passo de um saco de excremento, duma cloaca, de uma fossa gigantesca!
Essa
queixa já permite o vislumbre de uma intertextualidade, que fica explícita no
mesmo livro, em que há alusão direta a Augusto dos Anjos:
Duvido que alguém tenha sofrido,
psicologicamente, mais do que eu. No físico, padeci relativamente pouco: tive
apenas lumbago, bursite e dor ciática, além de algumas cólicas intestinais; mas
psicologicamente padeço vinte e quatro horas por dia. Tudo me faz sofrer, mas a
pantofobia é minha companheira inseparável (para usar a expressão de Augusto dos Anjos) (MAGALHÃES, 1986, p.
98, negrito nosso).
Sua
neurose pode ser oriunda da frustração no campo intelectual, que vem da
“epigênesis da infância” (ANJOS, 2014, p. 98): nunca foi incentivado. No
paratexto autoral da contracapa de Meu
Diário de Menino, acha-se a seguinte declaração:
Regista ele [Diógenes] o seguinte, nos seus cadernos: Meu pai (...) não quer que
eu seja escritor, porque diz que os escritores (...) ganham pouco dinheiro e
acabam morrendo tuberculosos. Mesmo assim, o menino escritor escrevia. O primo
Vandero também o desencorajava: “Para que isso? Ninguém vai ler isso. Estás
perdendo tempo com essas tolices.”
É em Meu Diário de Menino (s.d., p. 201) que
também se registra a tônica de seu psiquismo, marcado pelo medo: “Sou apenas um
menino que sofre muito porque sou muito acanhado e vivo sempre com as mãos
frias de tanto medo que tenho de muita coisa”.
Um fato pode ser
particularmente marcante e interessante a qualquer crítica à obra de Diógenes
Magalhães, relatado pelo autor nos termos seguintes em Meu Diário de Menino (s.d., p. 81-2):
Um
dia um homem fez uma prateleira e botou uns livros nela para vender. Não era
uma livraria: era só essa prateleira com uns livros: o resto da loja vendia
outras coisas. Eu passei por ali e vi os livros, e logo quis comprar um para
ler. Pedi a minha mãe que me desse dinheiro para comprar um daqueles livros.
Ela me deu. Eu comprei o livro e levei para casa para ler. Mas o livro não era
para crianças: era uma história para gente grande. Mas assim mesmo eu estava
entendendo quase tudo: era a história de uma mulher que foi posta num
subterrâneo porque tinha feito uma porção de coisas erradas. Parece que o
subterrâneo estava cheio de fantasmas, e a mulher estava com muito medo. Quando
meu pai chegou da Prefeitura, eu estava lendo aquele livro.
—
Que livro é esse?
Eu
disse:
—
Foi um livro que eu comprei.
Ele
tomou o livro da minha mão, olhou a capa, leu uns pedaços da história, e disse:
—
Este livro não serve para crianças: é livro para gente grande.
Eu
disse:
—
Mas eu estou entendendo quase tudo.
Ele
disse:
—
É, mas não serve. Ficas lendo isto, e depois ficas impressionado... Não serve.
Então
ele guardou o livro para no outro dia levar para que eu não lesse mais. Fiquei
muito aborrecido e comecei a chorar. Meu pai disse:
—
Não precisas chorar. Vou levar o livro porque ele não serve para crianças.
Depois eu te trago outro que sirva.
Mas
nunca trouxe. E também nunca mais eu vi aquele que ele levou: não sei o que ele
fez com o livro: não sei se deu a alguém ou se jogou fora.
O
resumo do enredo bate com o de The Monk,
assim resumido pelo Professor Maurício Menon:
Uma cena como a
que se encontra em The Monk, em que a
noviça Agnes, após decobrir-se grávida, encerra-se com a ajuda de Ambrósio em
uma imunda cripta nas profundidades do convento, onde seu bebê nasce, morre e
apodrece em seus braços, certamente não desperta um sentimento de expansão, mas
sim de contração e pavor. As imagens ligadas ao horror estão sempre associadas
ao monstruoso, ao grotesco, à putrefação, a cadáveres gélidos e outras mais
que, geralmente, causam repugnância (MENON, 2007, p. 48).
Malgrado
o fato de as consultas à hemeroteca e aos sites
revelarem pouco material sobre o autor, assim como o Google Scholar, que, a seu turno, não fornece nenhum resultado de
busca em forma de link de texto
acadêmico, o que se depreende dos seus desabafos literários pode ser adicionado
ao que já se verificou no Orkut,
extinta rede social que abrigava uma comunidade dedicada ao escritor, que
chegou a interagir com seus leitores, aos quais revelou a razão de não ter
chegado a fazer parte da ABL. Se não se tem uma biografia, tem-se, ao menos, o
princípio de uma.
2.
Intertextualidade
melancólica com Augusto dos Anjos, imanência e transcendência: um diálogo entre
dois vencidos
Se Augusto dos Anjos,
possivelmente inconformado (sem deixar de ser fatalista, por mais paradoxal que
pareça), reduz-se à matéria, à decomposição e à finitude, motivo por que também
ficou à margem do campo intelectual, Diógenes Magalhães não é nem um pouco
diferente do outro naquele capítulo de Acuso!
cujo título é extremamente agressivo. Isso sugere que ambos os autores se
assemelham tanto pelos temas como pelo fato de terem sido marginalizados em
virtude da escolha dos próprios temas:[7] Augusto
por destoar visceralmente dos parnasianos; Diógenes, por não compactuar com o
ideário linguístico do Modernismo e por explorar a neurose e o insólito. Há,
porém, mais excertos que comprovam não só o fatalismo e a melancolia do
pernambucano, mas também sua relação com a morte, mencionada no capítulo
dezenove, “O menor mal de todos é a morte” (1986, p. 145-6):
Se você lesse o que escrevo, teria lido
isto que escrevi em 1977:
“Não deve ser por acaso que penso
tanto na morte. De nada me serviram todos esses anos de psicanálise. O
psicanalista não conseguiu mostrar-me o lado belo da vida: é que ele não tinha
o lado belo para mostrar”.
Se você lesse o que escrevo, teria
lido, no meu livro Neurose No Corpo,
a sugestão que dei aos cientistas para que acabassem com este mundo. Em poucas
palavras, é a seguinte a minha proposta:
Devem
os cientistas do mundo reunir-se, fabricar bombas de hidrogênio, e assentá-las
em pontos estratégicos da terra. Uma vez detonadas, as bombas destruirão a
humanidade inteira; e se sobrarem algumas pessoas, estas morrerão logo em
seguida, em consequência da poeira atômica.
No
mesmo capítulo (p. 146-7, negritos nossos), o autor fornece mais exemplos que
confirmam o fracasso do “tratamento”:
Vejamos mais alguns trechos de livros
meus, nos quais demonstro pessimismo, depressão, preocupação com a morte:
“Agora só quero o repouso da morte, que tudo supera; quero
desfazer-me na terra, lentamente, mansamente, como boa matéria desorganizada.” (1943.)
“Há uma visão fantástica em cada
planta, e um hálito de morte em cada
charco.” (1943.)
“O rio é de sangue, do sangue dos
bravos. Caminho desamparado no atoleiro de lama vermelha. Mortos, sempre novos
mortos, por toda a parte os encontro.” (1951.)
“Faço parte de um exército de
mortos-vivos, de homens que já morreram, conquanto não tenham sido enterrados.”
(1956.)
“Tenho encontro marcado com a morte
numa sexta-feira azul cheia de borboletas.” (1956.)
“Agora, na casa dos trinta, aguardo
tranquilamente a morte.” (1957.)
“Morrer hoje, morrer amanhã — pouco
importa. Que vale um dia a mais um dia a menos, para quem tem a eternidade pela
frente?” (1957.)
“Agora, é dormir: enquanto durmo, a
vida passa, e eu fico mais próximo da morte.” (1957.)
“Para uns estou morto: não posso
levantar-me do túmulo.” (1959.)
“Quando
vos digo, amigos meus, que isto não vale nada, tenho cá minhas razões: só
amarguras encontrei na vida.” (1977.)
“Não tenho nenhum motivo para estar
alegre; tenho, porém, muitos motivos para estar cabisbaixo e deprimido. Esta máscara de entusiasmo, que uso todos os
dias — não a posso tirar da face: entranhou-se nos músculos: já faz parte de
mim.” (1977.)
Mesmo num contexto
histórico em que se reconhece o descentramento do sujeito, ao apelar à ciência
e ao dizer com suas razões que a vida não vale nada, a subjetividade do autor
de Acuso! revela desgosto e amargura,
mas revela também certo racionalismo, típico de um sujeito cartesiano. Como diz
Maurice Blanchot (2011, p. 332):
a morte fala em
mim. Minha palavra é a advertência de que a morte está, nesse exato momento,
solta no mundo, que entre mim, que falo, e a pessoa que interpelo aquela surgiu
subitamente: ela está entre nós como a distância que nos separa, mas essa
distância é também o que nos impede de estar separados, pois nela reside a
condição de todo entendimento.
[...] Sem a morte, tudo desmoronaria
no absurdo e no nada.
Esse
fatalismo, análogo ao do poeta que canta a poesia de tudo quanto é morto,
sugere uma recusa à sociedade em que a morte se torna um tabu em virtude dos
valores burgueses. Tanto Augusto como Diógenes rompem com esse tabu. “A morte,
não o sexo, é agora o tabu que violamos — a ‘pornografia da morte’ causa-nos
excitação” (MARANHÃO, 1985, p. 10).
Os
trechos escritos por Diógenes Magalhães denotam certo cientificismo e
materialismo; contudo, ele não deixa de lado a alma ao dizer: “Mais de uma vez
pronunciei perante você a seguinte frase: ‘Se se pudesse fotografar a alma, e
se a minha fosse fotografada, sairia no papel toda aleijada’” (1986, p. 18).
Como ele mesmo diz, psicanálise é a análise da alma (1986, p. 27), embora declare
não ter sido tratado. Ao contrário:
[...] A
angústia, o medo, o terror, o desespero, tudo isso reunido me fez retornar
àquele antro de miséria humana, onde sou humilhado, esbofeteado, menosprezado,
e ainda pago para isso tudo. Sou igual ao masoquista que paga para ser
torturado.
O “psicanalista” não tem a mais
mínima consideração comigo. E quem
tem? Quem poderá ter consideração com um
saco de excremento? De mim, ele só quer
o dinheiro: nem as coisas que digo servem de ponto de referência. Nunca fez a menor alusão a um livro meu, a um
trecho escrito por mim, a uma personagem minha, ao nome de uma cidade ou a
qualquer imagem literária que eu por acaso tenha usado (MAGALHÃES, 1986, p. 27).
Além
disso, há uma pequena margem para a transcendência (até porque, em seu dizer, a
morte tudo supera), e não apenas para a imanência:
Com efeito, se existe vida após esta, se
existe espírito, e eu morrer primeiro do que você, meu fantasma permanecerá
nesse antro; se você ouvir estalidos, serei eu que estarei batendo nos móveis
para chamar sua atenção.
Foi isso que você fez de mim: um
dependente, um ser despersonalizado, que vem aqui rastejando para que você
escarre no meu rosto (MAGALHÃES, 1986, p. 76).
Diógenes
Magalhães deixa claro que não se mata de covarde: tem medo do além: não sabe se
há vida após a morte. Parte de sua agonia, portanto, é causada pela incerteza
ou pela possibilidade da transcendência. Já em Augusto dos Anjos ocorrem uma
tensão e uma tristeza engendradas pela finitude da matéria, contra a qual se
insurgia por, no íntimo, não se conformar com tal finitude, conquanto sofresse
em vida. Essa tensão pode ser explicada nos termos seguintes:
A uma observação
mais profunda, a inevitável conclusão a que se terá de chegar é que o tema da
morte aparece em seus versos não como um fato considerado em si, mas como
símbolo e, por absurdo que pareça, como símbolo de um aspecto da vida: a
limitação do ser humano enquanto ser material, ou seja, essa contingência fatal
de matéria, de que a morte é o mais absurdo e mais trágico capítulo. O que
caracteriza portanto sua visão pessoal da verdade é um sentimento trágico da
vida, fundado principalmente no eterno choque entre o ideal e o real, entre o
espiritual (sem limites) e o material (limitado). É desse absurdo dos constantes dualismos de
que se entretece a existência (caracterizados sobretudo nos binômios
espírito-matéria, vida-morte) que decorre sua interpretação agônica (no sentido
unamuniano) da vida neste mundo. E é
disso justamente que se vão originar as duas outras notas características da
sua visão pessoal: o sentimento de frustração e o sentimento de revolta. De fato, os seus poemas se desenvolvem quase
sempre através de símbolos que representam a espiritualidade frustrada sob o
peso bruto da matéria contra o que o poeta reage com épica rebeldia (o que
talvez explique sua popularidade paradoxal) numa atitude verdadeiramente
“prometeica”, como a chamaria León Felipe (FILHO, 1972, p. 14).
Diógenes,
que continuou “a ser o mesmo neurótico de sempre, assustado perante a ‘dureza
sobrenatural das coisas’ (como diria Eça de Queirós)” (MAGALHÃES, 1986, p.
52-3), fornece evidências de atravessamentos ideológicos, que condicionam sua
produção: queixa-se da vida, que obviamente é pautada pelos valores de eficiência
e por todo o restante da ideologia burguesa (foi funcionário do Banco do Brasil
e professor de Português, embora fosse formado em Direito), a que está filiado
como alguém de classe média (informação encontrada num paratexto de Meu Diário de Menino). Em última
análise, sua crise neurótica pode ser um sintoma da crise dos valores burgueses.
O excerto seguinte evidencia uma defesa do monetarismo e, consequentemente, de
valores burgueses, os mesmos que na sociedade causam a infelicidade, o medo, o
mal-estar da civilização:
A isto, a este
conjunto de circunstâncias negativas, chama-se azar, quer você queira, quer
não. Volto a insistir: não estou
afirmando que existe um monstro de várias cabeças, garras de leão, asas de
condor, que deita fogo pela boca, chamado azar: o que existe é este conjunto de
circunstâncias que torna infelizes certas pessoas. Este conjunto de circunstâncias, que você
garante que não tem nome — tem nome, sim!
Chama-se azar. O próprio governo
(que não tem compromisso com o ocultismo) usa o termo azar, quando proíbe os
jogos de azar. A Bolsa de Valores não pratica jogo de azar, porque as transações,
lá, não são feitas ao acaso (e é possível ganhar sempre na Bolsa, ao passo que,
num cassino, é impossível ganhar sempre).
Se o indivíduo souber aplicar dinheiro na Bolsa de Valores, nunca
perderá um real, sequer. Por isso mesmo,
as operações da Bolsa não se confundem com os jogos de azar (MAGALHÃES, 1986,
p. 61, negrito nosso).
Por
outro lado, o fracasso, tão atribuído ao indivíduo pela lógica da meritocracia,
é arrancado da responsabilidade do indivíduo mais adiante:
Ora, o próprio
Governo usa a palavra azar, quando se
refere aos jogos de azar. O azar não é
um bicho com cabeça de águia, corpo de cavalo e garras de leão: o azar é um conjunto
de circunstâncias que fazem com que uma pessoa obtenha tudo (ou quase tudo)
quanto deseja, e isto sem o menor esforço, ao passo que outras se esforçam
loucamente para obter as mesmas coisas e o resultado é sempre negativo (MAGALHÃES,
1986, p. 74).
E
complementa a definição com os termos seguintes: “Azar é má sorte, é a falta de
boa sorte, é a desdita, é o que faz com que uns sofram muito, e outros não
sofram nada” (MAGALHÃES, 1968, p. 75).
3.
Imanência
e transcendência em poemas de Síndrome do
Pânico
A neurose do autor
pernambucano foi tema de Síndrome do
Pânico[8],
livro de poesias cujo poema de abertura, “Alvará.”, descreve o livro como sendo
“Leibnitz em gênero, número e caso;/ No sistema nervoso —— tudo péssimo:/ É
Schopenhauer com/ As Dores do Mundo” (2002, p. 9), e em cuja capa o horizonte
de expectativa e o protocolo de leitura do leitor empírico são condicionados
pelo paratexto que diz: “Poesia abstrata, bissexta, concreta, contraditória,
filosófica, maníaco-depressiva, negativa, paranoica, pessimista, simbolista,
surrealista”. Sob a rubrica de tal
descrição o autor deixa claro que não se trata de prosa. Portanto, Neurose é diferente de Pânico por naquele haver linhas
contínuas, indispensáveis à prosa, enquanto neste há versos — versos às vezes sem
rigor métrico, como os do poema “Maldição” (2002, p. 94), transcrito a seguir:
O ricochetear das balas
Nas pedras irregulares
Da rua sem nome.
O medo cheio de sombras,
Os arrepios de morte,
Os soluços de quem fica.
Cidade amaldiçoada,
Cães famélicos,
Vampiros e lobisomens.
Em cada esquina um fantasma;
Dos beirais me espiam gárgulas;
Dos meios-fios, zumbis;
Dos esgotos surgem miasmas;
Das fossas vêm sucuris.
Vale a pena viver assim?
Ficou dito que Diógenes
Magalhães deixa claro que não se mata de covarde por ter medo do além, ao passo
que Augusto dos Anjos se rebela contra a finitude da matéria. Esta, por sua
vez, é uma hipotética e agradável circunstância para o eu poético de Diógenes
(2006, p. 149):
O CONVÍVIO DO
SILÊNCIO.
Campa, carneiro,
catacumba,
Cova, jazigo,
mausoléu,
Sepulcro, tumba,
túmulo,
A derradeira
morada...
Aqui, sim:
A imobilidade, a
quietude,
A paz da
necrópole,
Do
sepulcrário...
O convívio do
silêncio...
†††††††††††††
Fantasmas num
cemitério?
Não, nunca,
Jamais,
Em tempo nenhum!
Com tanto
castelo medieval
Na Europa...
Com tanto
recanto lúgubre,
Tanta área
tétrica,
Tanta escuridão
maldita,
Ficar no
campo-santo,
Para assustar
alguém,
Seria
frustração.
2000, novembro.
Outro poema de versos
livres é um que demonstra semelhança temática com Augusto dos Anjos:
“Desintegração.” (com ponto final depois do título mesmo) (2002, p. 91, negritos
nossos), com a diferença de que até a alma sofre a decomposição:
Em
noites enluaradas
(Nas
outras —— não!),
Ouço
(não há remédio)
O
antirruído estranho
De
cidades mortas...
(Mortas
pela bruteza da guerra.)
Vejo
o brilho fúnebre dos fogos-fátuos
Nas
ruínas repugnantes;
Julgo
perceber o pranto
E
o ranger dos dentes
Das
viúvas e das filhas
Dos
guerreiros que se sacrificaram
Por
nada, nesta guerra inútil.
(Inútil
como todas as guerras.)
São
visões loucas,
São
fantasmas de fantasmas.
É
a antimatéria...
É a decomposição
do cérebro,
Da mente, da
alma, de tudo.
Não
resta nada:
Só
existe a dor.
1944.
Entretanto, o modo como
a morte pode ocorrer causa ansiedade e angústia:
PESADELO.
Silêncio
profundo
Amortalhava o
mundo.
Era o fim (eu
sabia), era o final,
O derradeiro
final...
Pesadelo!!!
Sou campeão:
campeão do pesadelo.
Tudo parado. A
campina imensa,
Quieta, vazia,
sem ninguém.
(Eu sozinho!)
Expectativa de
angústia.
Sim, sem dúvida:
era o fim.
Saber —— eu
sabia,
Mas como seria?
Pelo fogo? Pela
água?
Pela
desintegração atômica?
E, de repente,
Silenciosa
também,
Ei-la vem: surge
no céu
A aeronave de
outros mundos,
Enorme,
fabulosa,
Medonha,
impossível...
E para; não se
move.
Tão grande se
mostra,
Que era como se
tomasse
Todo aquele
espaço:
Dum horizonte a
outro.
E agora?
Quem por isso
jamais passou,
Quem nunca estas
coisas viu
Não sabe o que
significa
Sentir que tudo
se desfaz
Pela Vontade que
se chama Divina,
Aviso,
premonição, profecia... (MAGALHÃES, 2006, p. 87.)
Os versos de
“Necrotério.” (2006, p. 89) são quase do mesmo jaez, com a diferença de que
fica nítido o medo do além, que, em última análise, é o medo de o sofrimento do
eu continuar a existir depois da morte pela hipótese de a consciência ser
mantida — o que, neste particular, sugere a única diferença temática entre o
autor de “Psicologia de um vencido” e o escritor pernambucano, já que para este
a morte é alívio, ao passo que para aquele é justamente a certeza da finitude
que gera angústia:
A decomposição
que se espera
Não se
realizará.
Temo ficar de
novo em pé;
Temo sair
andando,
Fantasmagoricamente.
Trouxeram-me
para cá:
Não vim: fui
trazido.
Não pude fazer
nada:
Não me foi dado
reagir.
Saí da
verticalidade
Para o sentido
horizontal;
Agora a lanceta,
Sob o comando
apático do legista,
Vai exercer a
função:
Vai
despedaçar-me...
E depois?
Depois?! Não
sei.
Por
outo lado, permanece a visão da morte como consolo. Talvez o escrito que melhor
exemplifica tal expectativa de consolo seja o soneto abaixo (MAGALHÃES, 2006,
p. 86):
SÍNDROME DO
PÂNICO.
O que sinto, no
peito, permanente,
É o medo atroz,
universal,
De homem que
derrotado se sente
Da vida na
batalha desigual.
Portanto, o que
desejo, tão somente,
É da morte o
repouso natural:
Desfazer-me na
terra, lentamente,
Aos poucos
transformar-me em vegetal.
E começarei
tudo, novamente,
Dos vermes serei
grato festival.
A eles servirá o
pobre ente,
Que, vivo,
sempre foi inconsequente:
Na vida nada
fez: nem bem nem mal.
Viveu, sim, mas
não foi um ser vivente.
Mais
uma vez, o eu poético de Diógenes Magalhães confirma o que dizia o seu eu
empírico, que aparece em Acuso!: é
desejável a morte: prefere a finitude ao além. O poema acima está mais próximo
de “Psicologia de um vencido” na medida em que ambos os textos são enquadrados
no gênero soneto, mas se distanciam por retratarem a finitude de modos
praticamente opostos. O único ponto de
igualdade temática está em que as duas poéticas trabalham com a certeza da
finitude, isto é: com a decomposição da matéria. Para a desdita do autor de Síndrome do Pânico, foi ele “doutrinado
para crer na Eternidade,/ Na vida depois da vida,/ E no sofrimento que recai
sobre/ Quem tal coisa faz” (MAGALHÃES, 2002, p. 124), como atesta o eu poético
de “Lamentações do escritor frustrado”, um de seus poemas. Coaduna-se tal
atitude, que reforça a coerência interna de um livro de poemas surrealistas (os
quais, em tese ou por definição, não são necessariamente lógicos), com o que o
poeta afirma em “Problema? Não!”: “Não tenho medo a ti, ó Morte!/
Definitivamente: não!/ O medo que me consome/ É daquilo que encontrarei/ Depois
que eu for/ Considerado morto” (2002, p. 67). O eu lírico (que, neste caso, por
motivos biográficos, confunde-se com o eu empírico) teme continuar vivendo. O
que ele deseja é o silêncio, o repouso, de modo que o perturba qualquer
possibilidade de transcendência, em conformidade com o já analisado poema “O
convívio do silêncio.”.
Os versos que Diógenes
mais usa são os livres; entretanto, há sonetos decassílabos nas páginas, como
no soneto acima, apesar de conter um verso de oito sílabas poéticas. É
interessante e curioso notar que os poemas em que se espera o consolo há mais
rigor formal na medida em que, mesmo que cada verso não assuma uma métrica
rigorosa, eles assumem a forma de soneto, ao passo que “Pesadelo” e “O convívio
do silêncio” apresentam menos rigor formal. Trata-se, pois, dos procedimentos
estéticos de que Diógenes Magalhães lança mão para singularizar os objetos e as
imagens que inocula em sua poesia. Com efeito: Diz Viktor Chklovski (1978, p.
39-56) que, se há imagem poética, há singularização. Segundo essa proposta, o
objetivo da imagem poética não é o de ser um predicado para sujeitos variáveis
nem o de possibilitar o reconhecimento ou compreensão do que ela representa,
mas sim o de criar uma percepção particular do objeto. Em última análise, uma
divisão e uma métrica clássicas são usadas ou descartadas por Diógenes de
acordo com a necessidade de singularizar objetos através de imagens com o
propósito de causar o estranhamento por meio do uso especial do idioma
(literaturidade), de que fala Terry Eagleton (2006, p. 8-12). O estranhamento,
como se sabe, é o que acontece quando o leitor vê um objeto prosaico de um modo
inédito ou como se o estivesse vendo pela primeira vez.
O
estranhamento está vinculado não só à forma e ao estilo, mas também ao binômio
imanência/transcendência e, portanto, aos elementos estruturais ou componentes
do conteúdo, como nos versos abaixo, em que comparecem o medo do além e o medo
da falta de tranquilidade:
Encarnar,
Desencarnar, Reencanar...
Sim, para que
isto?
De que me serve
isto?
Por que estou
aqui?
É frustração...
Tudo quanto faço
me sai falho.
Para que,
portanto, isto?
É a queima do
carma.
É o Outro Lado
implacável.
É o Além...
E se não existir
o Além?
Falo: não me
respondem...
Olho: não vejo
ninguém...
Dezembro de
1998. (MAGALHÃES, 2006, p. 68.)
Seriam os fantasmas a
prova da transcendência? (cuja inexistência causa revolta em Augusto dos Anjos,
mas cuja suposta existência apavora Diógenes Magalhães, que teme e reprova
qualquer forma de vida após a morte, até mesmo a reencarnação). A crítica
metrificada à existência após a morte está em outro soneto (2002, p. 69):
Reencarnação,
queima de carma:
Caminhar
vagarosamente no infinito,
Nas esferas do
exemplo singular,
Deitar vozes ao
guardar o rito.
No sentido
pasmoso de encantar.
Grandes sapos
grudados na parede,
Com intuito
senil de me espantar,
Tola gente no
embalar da rede,
No futuro vazio
do avatar.
Reencarnação
fatídica, segura,
Para queima
certa, profética, do carma.
É a desgraça de
toda criatura.
É o destino
maldito do retorno,
O encontro das
vítimas de outrora,
Para a vingança
do silêncio morno.
Os
versos mais angustiados são os que apresentam menos rigor formal na métrica de
cada verso e na distribuição deles nas estrofes.
Em “Profecia.” (2002,
p. 52, negritos nossos), o autor, assim como em “Desintegração.”, não poupa a
alma do aniquilamento:
Eu sei: andam
fantasmas no teu quarto,
Andam sombras
errantes, alvadias,
Desejos
incontidos de heresias
Em ruínas de
engodos e de enfarto.
Teu cérebro é
qual trecho gotejante
De carne que se
esvai feita em fatias,
E se acaso
resistes é que os dias
Não se afastam
do olhar da incauta amante.
Agora que
endoideces na alquimia
Das
interpretações de puro encanto,
Hás de ver o que
te espera certo dia:
Decomposição da
alma que fazia
Planos de bom
viver e de acalanto;
Miséria,
podridão, vida vazia.
Malgrado
o fato de Augusto dos Anjos preferir o soneto e sua métrica modelar — o que
comprova que tal gênero, como uma das espécies animais que não desaparecem
quando se adaptam, “adaptou”-se ao “ambiente” moderno desde que se salvou da
insurreição romântica contra os esquemas formais dos gêneros clássicos — a
liberdade formal de Diógenes Magalhães na poesia e os procedimentos
estilísticos abstracionistas ou surrealistas apontados por Fausto Cunha
aproximam o reservado escritor pernambucano, que é do século XX, do escritor paraibano
do século XIX não só no que concerne aos temas, mas também no que diz respeito
a um atributo caro a ambos os literatos: o individualismo, a valorização
daquilo que é um valor burguês (e que causa a problemática taxonômica dos
gêneros literários), pois que tal liberdade estilística, que permite tanto o
emprego do soneto decassílabo como o uso de versos livres, é sinal da
valorização do ego do artista, que desde que se livrou das amarras da
aristocracia exige para si um reconhecimento (BORDIEU, 1968, p. 105-45). Ocorre
que “o individualismo foi e continua de certo modo querendo ser o eixo da moral
burguesa” (CÂNDIDO, 1952, p. 4). É essa
valorização que faz com que os dois autores acabem falando do que dá título ao
único livro de poesias de Augusto dos Anjos: o eu, dependente que é da matéria,
cujo destino certo é a decomposição na opinião de ambos os poetas, conquanto
estes, deixando que cada verso caia “gota a gota, do coração”, como diz Manoel
Bandeira (1955), sempre esperassem por algo mais na vida, para citar Bram
Stoker (1847-1912), mesmo que o que aguardassem fosse apenas a morte. É que a
vida “se resume a uma constante espera por algo mais, e não tem nada a ver com
o que estamos fazendo, e a morte é a única certeza que podemos esperar”[9] (STOKER,
2014, p. 69).
4.
O
vampiro e outros insólitos em Síndrome do
Pânico numa perspectiva biográfica e temática
Se o eu poético de
“Maldição” (2002, p. 94) diz: “Em cada esquina um fantasma;/ Dos beirais me
espiam gárgulas; Dos meios-fios, zumbis; Dos esgotos surgem miasmas; Das fossas
vêm sucuris”, então o leitor é apresentado a uma atmosfera urbana cujos perigos
são representados por imagens de seres fantásticos, como fantasmas, gárgulas e
zumbis, e por sucuris, que seriam um elemento autóctone. É possível concordar
com Tzvetan Todorov (2017, p. 162) quando afirma:
A distinção
entre inconsciente coletivo e individual, quer seja ou não válida em
Psicologia, não tem a priori nenhuma
pertinência literária: os elementos do “inconsciente coletivo” misturam-se
livremente aos do “inconsciente individual”, seguindo-se as análises do próprio
Penzoldt.
Contudo,
ao enunciar a divisão de temas feita por Penzoldt, o mesmo Todorov (que, aliás,
fala dos temas do eu), antes de fazer a afirmação do excerto acima, lembra que
nem sempre os sintomas neuróticos do autor se manifestam fora da obra, o que
quer dizer que a neurose fica registrada, em alguns casos, apenas dentro do
texto literário. No caso de Diógenes, o caráter autobiográfico de seus
desabafos literários evidencia que a sua neurose está tanto dentro quanto fora
da literatura. Seja como for, parece adequado reconhecer dos temas “um duplo
lugar: o inconsciente coletivo e o inconsciente individual. No primeiro caso,
os elementos temáticos se perdem na noite dos tempos; pertencem à humanidade
toda sendo o poeta mais sensível a eles” (TODOROV, 2017, p. 161). Também parece
adequada a divisão dos temas em categorias propostas por ensaios sobre
literatura fantástica que não aquelas presentes nos postulados de Penzoldt, que
Todorov vê como sendo qualitativamente diferentes das dos outros. “Enquanto a
maior parte dos autores classificavam os temas em rubricas como: vampiro,
diabo, feiticeiras etc., Penzoldt sugere agrupá-los em função de sua origem
psicológica” (TODOROV, 2017, p. 161). Tal origem, como ficou dito, seria dupla.
Restam, é claro, duas ressalvas de Todorov: 1ª: uma distinção só pode ser
válida em literatura quando é fundamentada em critérios literários, e não na
existência de escolas de Psicologia (2017, p. 162); 2ª: “há [...] casos em que
a biografia do autor acha-se em relação pertinente com sua obra. Apenas, para
ser utilizável, seria preciso que esta relação fosse dada como um dos traços da
própria obra” (TODOROV, 2017, p. 160). Ora, no caso de Diógenes, a biografia é
um dos traços fundamentais da sua literatura. Obra nenhuma pode ser reduzida a
um conjunto de sintomas numa análise realizada do ponto de vista desta ou
daquela escola de Psicologia — daí a importância dos procedimentos estéticos,
de que fala o já citado Viktor Chklovski (1978, p. 39-56), e da literaturidade,
enunciada por Terry Eagleton (2006, p. 8-12). A afirmação de Todorov pode ser
um aviso contra o reducionismo, de modo que também se tornam importantes as
orientações metodológicas de François Jost. O que se propõe é um estudo
comparatista justificado pelas semelhanças temáticas entre dois autores que, em
seus respectivos tempos, não foram devidamente reconhecidos, o que denota a
diacronia metodológica. Um está situado
no fim do século XIX e no início do século XX, ao passo que o outro está na
modernidade do século XX e parte do século XXI.
De acordo com François Jost (1994, p. 334-347), o termo literatura comparada indica que a
literatura deve ser comparada, mas não indica os termos de sua comparação,
embora haja duas definições do termo: uma popular e outra acadêmica. Esta engloba obras que usam códigos de
estética idênticos por terem se servido do mesmo idioma e por seus autores
compartilharem a mesma formação cultural, ao passo que aquela é tautológica: a
literatura portuguesa, por exemplo, é a literatura de Portugal. Não se trata de
literatos de países diferentes, mas apenas de tempos diferentes, e cujas
preocupações e língua usada são as mesmas. (Mais adiante, será vista
intertextualidade entre Magalhães e Stoker e entre o pernambucano e Mary
Shelley.) De acordo com Jost, do ponto de vista técnico estamos muito mais no
domínio da Weltiliteratur
(literatura-mundo) do que no da literatura comparada, que pressupõe a
existência de conceitos críticos modernos.
O autor chega a afirmar que seria melhor o uso do termo literatura global (que talvez se coadune
com a ideia de inconsciente coletivo), pois suas diferenças específicas residem
na sua natureza abrangente. Tanto num estudo de literatura nacional como num
estudo comparatista empregam-se métodos parecidos: diacronia e sincronia,
analogias, dedução, indução, escolha de temas, motivações e influências entre
autores. Movido por um impulso interior, Diógenes, que não usou apenas a sua
interioridade por não ser possível o solipsismo, serviu-se do arsenal de temas
oferecido pela civilização em sua poiesis,
que obviamente não é um espelho fiel da realidade, em consonância com os
arrazoados de Antonio Cândido (2014, p. 27-49).
Conforme
a teoria de Nick Groom (2012, p. 76-77),[10] o
poema “Maldição”, assim como tantos outros, apresenta obscuridades: a
arquitetônica (gárgulas) e a espiritual (os fantasmas). O autor também menciona
outras categorias, entre as quais estão as criptas, as tumbas e outras imagens
de que se serve Diógenes em sua poesia. A morte, é claro, é uma delas.
Conquanto
o cenário de “Maldição” seja urbano, enquadra-se num comentário feito sobre o
personagem Dr. Cláudio, do romance O
Ateneu, de Raul Pompéia:
Na atualidade da
literatura brasileira, vista em imagens violentas e chocantes, simbólicas e às
vezes herméticas, ilustrada pela putrefação e estagnação dos charcos e dos
pântanos, onde os pássaros fogem dos miasmas e as árvores, receosas, se
debruçam sobre si mesmas, o Dr. Cláudio sente falta de uma verdadeira obra de
arte
(SANTIAGO, 1978, p. 94-5)
A
poética de Diógenes Magalhães expressa os medos de um brasileiro e, portanto,
os medos de sua sociedade. Afinal,
A nossa crítica,
rudimentar antes de Sílvio Romero e do Naturalismo, participou do movimento [de afirmação nacional] por meio do
“critério de nacionalidade”, tomado como elemento fundamental de interpretação
e consistindo em definir e avaliar um escritor ou obra por meio do grau maior
ou menor com que exprimia a terra e a sociedade brasileira (CÂNDIDO, 2006,
p. 123).
Obviamente as imagens
insólitas de Magalhães não são exclusivamente brasileiras. Trata-se, pois, de
elementos estrangeiros ou empréstimos, ainda que bem “transplantados”. Como diz
Érico Verissimo (1996, p. 21), que parodia a máxima de Pero Vaz de Caminha de
que, em se plantando, tudo dá no Brasil: “a terra é tão boa... Sim, de um modo
que era quase uma maldição”.
Os “transplantes” mais
proeminentes e bem-sucedidos realizados pelo autor de Síndrome do Pânico estão nos dois poemas transcritos a seguir:
UMA
RÉSTIA DE ALHO PARA DRÁCULA.
Onde
quer que eu pise,
No
campo de neve,
Fica
sempre a marca do meu sangue...
Sangue
fraco,
De
homem anêmico,
De
negroide subnutrido
(Na
classificação dos ianques).
Mas
é este o sangue que tenho,
Era
o que eu tinha,
Para
dar ao vampiro,
Ao
núncio do Conde Drácula,
Que
me atacou de improviso,
E
me rasgou a carótida.
Cadáver
não sangra:
Logo,
portanto, por conseguinte,
Não
morri,
Não
sou cadáver,
E,
como tal,
Não
poderei ser vampiro...
Em
que ficamos?
2001,
janeiro.
(MAGALHÃES,
2002, p. 161.)
O
MONSTRO...
...chama-se
Frankenstein...
Não!
Não! O nome é outro.
Frankenstein
é o cientista
Que
confeccionou aquilo...
Aquilo —— o quê?
Todos
sabem: um monstro!
Monstro?
Por que monstro?
Porque
foi fabricado com pedaços de cadáveres
Que
o cientista juntou,
Suturou
pouco a pouco
Uns
aos outros, e então
Surgiu
um homem...
Não
era perfeito:
Quem
olhasse de perto veria
Imperfeições;
Mas
quem visse de longe,
E
não soubesse do caso,
Aceitaria,
de bom grado,
A
contrafação.
E
o clone?
Ah,
o clone é perfeito:
Não
pode ser chamado de monstro:
O
clone é o indivíduo geneticamente igual a outro,
Mas
produzido por manipulação genética,
Sem
atividade sexual.
(Já
existem muitos por aí,
Vivendo
entre nós,
Mas
ninguém percebe nada;
Justamente
porque eles
São
perfeitos.) (MAGALHÃES, 2002, p. 158.)
No poema sobre Drácula,
compartilha-se uma contradição: o eu poético tem um sangue anêmico e, por não
estar propriamente vivo ou sadio, já é praticamente um morto, razão pela qual
não pode ser transformado em vampiro. Seu sangue vale tanto quanto um alho. O desagradável
caráter racista encontra um pano de fundo histórico: o funcionário público
explorado e exaurido, que tinha de dar aulas de Português para complementar a
renda, ficou enfraquecido por causa da neurose e da depressão. O vampiro que
vem e suga as forças pode ser a representação do explorador que pratica a
mais-valia. Vale lembrar que Drácula é ícone do século XIX, século da Lei Áurea
no Brasil, cuja herança maldita, segundo o sociólogo Jessé Souza, é a da
escravidão:
O passado que nos domina não é a
continuidade com o Portugal pré-moderno que nos legaria a corrupção só do
Estado, como o culturalismo dominante até hoje entre nós nos diz. Nosso passado intocado até hoje,
precisamente por seu esquecimento, é o
do escravismo. Do escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas
classes populares, que tornaram impossível uma sociedade minimamente
igualitária como a europeia. Foi precisamente porque a Europa não teve
escravidão que Norbert Elias pôde construir o processo civilizatório europeu a
partir da ruptura com a escravidão da antiguidade (SOUZA, 2017, p.
151, negritos nossos).
5.
Imanência,
transcendência e insólitos em Neurose no
Corpo
A respeito do livro Neurose No Corpo, demonstra-se nele
perícia no uso de procedimentos estéticos, os quais talvez aproximem os
registros do narrador-personagem do poema em prosa, o qual, segundo a
professora Olga Kempinska (2012, p. 170), foi criado por Aloysius Bertrand. No
poema em prosa, não há propriamente uma narrativa, mas nela se “encena a
manifestação de uma subjetividade” (KEMPINSKA, 2012, p. 170), ainda que Neurose seja uma narrativa
autobiográfica. No livro, porém, prevalece a poética na forma de estilística e
inoculação de imagens, porquanto em suas páginas conseguiu o autor elaborar “trechos que aparentemente não têm enredo
definido. Na psicanálise, chama-se isto associação livre de ideias; na Arte
Literária, chama-se abstracionismo, ou talvez surrealismo” (CUNHA, 2006, s. p.,
negritos nossos). Fausto Cunha, no mesmo prefácio do livro, também afirma:
Não há dúvida
quanto ao domínio da estilística pelo autor, nestas páginas de angústia: vai
ele do estilo clássico ao jornalismo burilado.
Vê-se, quase, uma demonstração de força, mas inteiramente espontânea,
sem nenhuma preocupação de exibicionismo.
As palavras fluem com segurança incomum, e o leitor sente que está
diante de autêntico estilista, que aprendeu — no convívio permanente com os
livros, e devido ao fato de viver longamente fechado sobre si mesmo com medo de
contactos — a fazer com o idioma o que bem deseja.
Esse leitor fechado
sobre si mesmo talvez seja o que mais se aproxima do leitor ideal, de que fala
Pierre Bordieu (1968, pp. 105-45). Tal introspecção permite mais um paralelo
com Augusto dos Anjos, um indivíduo “de poucos amigos, enrustido, abrindo-se só
com os íntimos, e com estes afável e prestativo, sua personalidade, contudo
forte, como que se apagava diante de estranhos” (BARBOSA, 2010, p. 66).
Talvez o título já
prepare o horizonte de expectativa do leitor para uma compreensão materialista
do escrito: a neurose está no corpo, e não no espírito ou na alma. Talvez não
se trate propriamente de um poema em prosa, mas o binômio se faz presente com
bastante força em algumas passagens:
Como eu
referisse ao psicanalista o meu medo aos fantasmas, a tortura que experimento
de manhã, quando, sozinho no quarto de banho, faço a minha higiene, ele me
sugeriu que eu escrevesse um conto sobre fantasmas. Escrever é libertar fantasmas,
dizia Dostoiévsqui [...] (MAGALHÃES, 2006, p. 120).
Mais uma vez,
encontra-se o medo da transcendência. Todavia, houve margem para uma leve
provocação aos materialistas: “Suponhamos que o leitor seja desses que não
acreditam numa segunda vida além da presente. Isto de almas de outro mundo são
patranhas [...]”. (MAGALHÃES, 2006, p. 122). Tal provocação fica mais patente
na reminiscência seguinte (2006, p. 118):
Perguntei
um dia a um ateu:
—
És capaz de entrar, à meia-noite, sozinho, num cemitério?
—
Bem, eu... (começou ele).
—
...Basta (interrompi). Já me respondeste.
O medo do além remete à
infância:
Desde criança,
tive grande medo aos entes sobrenaturais, mas somente quando estava sozinho; e
como quase sempre havia alguém perto de mim, eu não sofri muito.
Quando me
separei da Valquíria [...], passei a morar sozinho num apartamento, e então o
medo, à noite, enchia de fantasmas o ambiente. Eu telefonava para Lenora (sim:
Lenora) e pedia, rogava, suplicava que viesse dormir comigo, mas nem sempre ela
podia vir.
[...] A noite
era das aparições, das assombrações, dos avejões, dos espectros, dos fantasmas,
das viagens, das visões. Mas [...] nunca vi nada. Também não ouvia nada, pois
os barulhos que me chegavam aos ouvidos podiam ser imediatamente explicados. E
não sentia cheiro de nada: sentia, sim, uma como presença, como se de repente
eu fosse ver um ente desconhecido e altamente perigoso (MAGALHÃES, 2006, p.
156-7).
Diante
do exposto, é inegável que Diógenes Magalhães, assim como Augusto dos Anjos, é
um mestre da poética do medo.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Não há dúvidas
de que a poética do pernambucano Diógenes Magalhães é uma poética do medo por
excelência. Contudo, uma vez que esta análise se pautou por considerações de
Tzvetan Todorov, não pode a poesia do autor de Síndrome do Pânico ser reduzida a um sintoma neurótico, ainda que a
neurose do autor se manifeste fora de sua literatura, razão por que a biografia
é traço fundamental de sua catártica arte literária, que foi iniciada pelo impulso
interior inerente ao artista e assumiu a forma de desabafos. Da mesma forma,
não se pode reduzir a literatura de Diógenes Magalhães a sua interioridade,
porque é inadmissível o solipsismo. Usa o literato brasileiro o arsenal de
temas que a civilização ofereceu ao seu inconsciente por meio da barbárie da
civilização e por meio da intertextualidade, que atravessa fronteiras na medida
em que Drácula e Frankstein são transplantados em versos brasileiros cujo autor
consegue inocular imagens de uma cidade repleta de sucuris. O reducionismo se
torna inconcebível na medida em que se veem os procedimentos estéticos do autor
no manejo do idioma, ao qual, conforme os formalistas russos, dava um
tratamento especial. Cria-se, dessa forma, a possibilidade do estranhamento: o
autor proporciona um frescor novo e uma singularização a imagens e temas já
conhecidos: ele não fica no lugar-comum. Pode-se dizer que, além disso, o eu
poético teme a transcendência e prefere a finitude ao além, o que torna
coerente o teor de suas mensagens. Em outras palavras: é assim que garante a
coerência interna do material coletado, evidenciada também pelos paratextos
autorais e por outros condicionantes do horizonte de expectativa do leitor. No
que concerne à finitude da matéria, opõe-se a Augusto dos Anjos, de quem também
se diferencia por não usar apenas o verso decassílabo. Os trechos de Neurose no Corpo, por sua vez, poderiam
se aproximar do poema em prosa devido ao que Fausto Cunha chama de
abstracionismo, de que Diógenes lança mão para dar voz a sua própria
subjetividade. Suas qualidades artísticas, porém, não foram suficientes para
lhe dar mais visibilidade no campo intelectual, de que são provas dois fatos: o
de só ter contado com seus próprios recursos para publicar seus livros e o de
ter sido rejeitado pela ABL.
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APÊNDICES
Adeus,
meio acadêmico!
Diante de tantas
denúncias contra professores universitários; diante de tanto extremismo da
esquerda e da direita (extremismo, e não radicalismo); diante de tantas
evidências de déficit de compreensão de texto; diante da lógica segundo a qual
o aluno é um cliente (que sempre tem razão); diante da falta de lógica na
atualização insana do Lattes; diante
do fato de que a universidade pública introjetou e passou a aplicar, com a
regularidade do sol, os valores de produtividade do neoliberalismo
mercadológico, motivo pelo qual age como se fosse uma ORGANIZAÇÃO privada por
meio da gestão (conforme a vontade da Escola de Chicago), e não como se fosse
uma INSTITUIÇÃO pública (na concepção da Escola de Frankfurt); diante de que o
meio acadêmico é a fogueira das vaidades, de que fala Tom Wolfe; diante do fato
de que nos campi há muita hipocrisia;
diante do fato de muitos universitários carecerem de ritos de passagem e de
maturidade; diante das evidências de duplipensamento (contradição); diante da
mediocridade dos que não sabem enunciar nem explicar os conhecimentos de que
supostamente são porta-vozes; diante do fato de muitos lentes formarem
professores para o ensino básico sem que jamais tenham lecionado em tal nível
de ensino; diante da subproletarização dos professores universitários que
aceitam contratos temporários; diante do fato de haver bolsas raras e
irrisórias para pesquisadores dos Estudos Literários; diante do oba-oba
sociolinguístico; diante da hipocrisia dos acadêmicos que “defendem” a escola
pública e matriculam os filhos em escola particular; diante da incapacidade de
entender que a política e a ideologia são o oposto da ciência; diante do fato
de os ativismos tomarem conta dos campi
e do fato de fazerem ganhar o debate quem fala mais alto; diante do fato de que
quem TRABALHA na pesquisa não recebe décimo terceiro, nem férias, nem direito à
licença; diante do fato de que no século XIX havia pesquisas proporcionalmente
superiores aos trabalhos que têm sido feitos; diante da liberdade do
diletantismo; diante das imposições dos periódicos, cujas regras de formatação
de texto nem sempre acatam as NBRs (as normas da ABNT); diante do fato de o Lattes não ser garantia de pensamento
crítico; diante do fato de a esquerda ser colonizada por ideias do
neoliberalismo; diante do fato de toda a crise ter sido iniciada muito antes da
ascensão de Bolsonaro; diante do fato de o meio acadêmico ter ajudado a chocar
os ovos do basilisco que está nos dando o bote; diante do fato de as horas em
qualquer biblioteca serem muito mais valiosas do que as horas em áreas externas
da universidade; diante do fato de que na educação básica sou efetivo, razão
por que tenho direitos básicos, como férias; diante do fato de os alunos do
Sexto Ano serem maleáveis e compreensivos (atributos inexistentes nos ativistas
de Iphone dos campi), decidi que não farei mais nenhuma pós-graduação. Agradeço a
todos que me deram as oportunidades. Agora, caminharei sozinho. A melhor forma
de fazer pesquisa é seguir os passos da professora Minerva, do mundo de Harry Potter: farei um trabalho
diletante semiautodidático, sem prazos, sem Lattes,
sem pressa (a inimiga da perfeição), sem pressão.
(Guarapari, ES. 27 de
janeiro de 2021.)
O
Príncipe da Redação
(A
Diógenes Magalhães.)
“Master!
Apprentice!
Heartborne,
7th Seeker
Warrior!
Disciple!”
(Tuomas
Holopainen)
Koch, Bakhtin e Marcuschi, silêncio!
Agora Sua Alteza em transcendência
É louvado por seus experimentos:
Sua perícia merece reverência.
Sua empiria e posicionamento
Geram valiosa doutrina, essência
De um saber em pleno funcionamento
Acima d‘outros posicionamentos.
Mestre e discípulo do vate Camões,
Leitor de Anjos ao gosto do diabo,
Retalhador de estúpidos bordões
— Esse é Vossa Alteza, que aos
despachos,
Memorandos e ofícios das seções
Vai filologicamente dos clássicos,
Que perlustra com suas assombrações,
As quais dão à pena as suas funções.
Tem um saber de experiências feito.
Pernambucana é a sua raiz,
Desenvolvida sob olhar estreito,
O olhar alheio de gente infeliz,
De gente que nunca leu um soneto,
Mas que tenta ditar a diretriz
Da ignorância e de seus maus efeitos.
Mas o real saber não quer maus feitos.
Sendo eu simples bruxo em treinamento
No duro labor do ímpar Assis,
Seu livro é guia do meu pensamento,
Que não sou discípulo de Avis.
No ofício de poções e encantamentos,
Mestre real e alquimista aprendiz.
Com clareza, tinta em firme seguimento;
Tristeza, pena a pena em sangramento.
Faz distinção: a Arte de Escrever
Não é a Técnica de Redigir.
Mil rascunhos, mil lições por fazer,
Mil contrafações antes de exibir
O escrito definitivo por ler.
Só o literário pode conferir
Sol ao não-literário e conceder
Ao redator estilo de valer.
Sai da desliteraturização,
Ainda que separe a estilística,
Conjunto de regras de criação,
Da técnica, de outra composição:
Esta, de natureza não artística,
É diferente daquela, em que a ação
Do escritor é que nem a de um pintor
De telas; paredes ao redator.
A pena, que pode mais do que a espada,
Conta com dicionários, tira-dúvidas,
Dicionários de regência; e, amparada
Dessa forma, dá uma forma antirrústica
Ao conteúdo sublime, ideia temperada
Na razão, na lógica taciturna.
Sendo avesso a alguns usos da palavra,
Está muito acima das silabadas.
Bem, bem abaixo está o remendão,
O jornalistazinho de dar dó.
Chega ao inevitável: conclusão
De premissas (a maior e a menor).
É pelo infalível silogismo em ação
Que chega à ímpar coerência mor
E evita o jornalismo e o jargão:
Não é dos ianques um servil cão.
E banha de luz em tinta da aurora
O leitor com soberbo literário.
Clareza e simplicidade de outrora,
Concisão, correção, lei do unitário
E circunspecção na sua retórica;
Vigor, rimas e ecos no itinerário
Da revelação de imagens simbólicas,
Injetadas em lira melancólica.
Faz mais que juízos de realidade:
Toma partido, ainda que aos partidos
Diga um sonoro não com propriedade.
A índole do idioma, verdade
Que conhece como sol repartido,
Faz indagar: donde a genialidade?
Razões que homem não tem conhecido,
Mesmo longe do medieval período.
Esse é Diógenes, esse é o mistério,
O Enigma do Príncipe da Redação.
Revela-se positivista e bem sério,
Mas, porque não aceita o nosso mundo
Tal como é (por ser ele um despautério,
Um lugar de burrice muito imundo),
Muda-o, não-mudo, em revolução
— Revolução-Poiesis-Redação.
Na sua revolução-redação,
Isto é: no nobre uso da palavra,
Que vai à lírica composição,
É marxista sem que sequer o saiba!
É mais que Bilac, mais que a promoção
De Almeida, Quintana, Oliveira, arcádias,
Mariano, ABL e é mais que os medonhos
Que o atormentam. É técnico em sonhos!
Príncipe da Redação, Rei dos Reis
Da nobre estilística, cuja voz,
Mesmo que abafada e sem sua vez,
Vai ser cantada e espalhada entre nós
E a todo poeta-aprendiz cortês
Àquele que se banhou de mil sóis
Em solidão e transbordou mercê
Qualquer de qualquer supérfluo dizer.
(Guarapari, ES, 20 e 23 de março de
2020.)
[1] Concluído em Guarapari, ES, em
janeiro ou fevereiro de 2020. Última revisão: Guarapari, ES, 31 de janeiro de
2021.
[2] Nascido em 10/5/1990, no Rio de
Janeiro. Criado em Duque de Caxias (RJ). É licenciado em Letras (Português e
Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor
efetivo de uma rede pública. Mora no Espírito Santo há dois anos e vive no
município de Guarapari há quase um ano. Currículo na Plataforma Lattes: < http://lattes.cnpq.br/0328708771235302)>.
[3] Os sugestivos A Noite Decepada, Simbologia do Onírico e As
Horrendas Faces da Neurose, títulos listados nos paratextos autorais com a
rubrica “Livros de Diógenes Magalhães”, ficaram de fora deste exame, mas
poderão ser contemplados por estudos posteriores. Ocorre que, como será dito
mais adiante, o autor precisou se firmar no campo intelectual sozinho: imprimia
os livros por conta própria e os vendia por um preço tal, que chegava a levar
prejuízo, ainda que não se tenha notícia de falência. Seus livros se acham
apenas em sebos.
[4] De acordo com Millôr Fernandes,
a ABL se compõe de 39 membros e um morto rotativo.
[5] A rede social é o Orkut. Até o
momento de elaboração deste artigo, não foi possível visualizar a comunidade de
leitores e admiradores, com os quais Diógenes chegou a interagir. A eles revelou
a razão por que não foi aceito pela ABL.
[6] Ainda que não se trate de uma
prosa de ficção, o que só pode ser afirmado com base na confiança que o leitor
deposita no autor, que admite que não tem como provar o que aconteceu, o fato é
que Acuso! demonstra as
características indispensáveis ao livro ao qual se queira dispensar a
classificação de literário: é uma escrita em que existem o cuidado com o idioma
e criatividade imaginativa, mesmo que não se trate de ficção. A valorização a
ele conferida é baseada nesse e noutros critérios, como a escolha de temas e o
estilo, cuidadosamente empregado pelo autor, conforme ele mesmo afirma no
prefácio.
[7] Mesmo hoje há certa resistência
à poética de Augusto dos Anjos. Antônio Cândido é quem a manifesta. “Um grande
crítico de geração seguinte”, diz Assis Barbosa (2010, pp. 84-5), “Antônio
Cândido, não concordaria nem com Manuel Bandeira [que, segundo Assis Barbosa, colocara o autor de ‘Psicologia de um
vencido’ em posição de primeira grandeza] e muito menos com Otto Maria
Carpeaux [que considerava Augusto o mais
original e mais independente dos poetas brasileiros]. E toca num ponto que
julga definitivo para a condenação do poeta: o seu propalado mau gosto. ‘Augusto
do Anjos [diz o autor de Literatura e
Sociedade] não é dos poetas que amo, embora lhe admire a magia verbal e sinta a
grandeza de seu abismo interior. O Sr. Manuel Bandeira, num traço iluminante,
aproxima-o de Euclides da Cunha, a cuja família espiritual sem dúvida pertence.
Penso que ele representou admiravelmente, como Euclides, a nossa inclinação
verbalista, criando uma retórica por vezes bela e concebendo a realidade como
cidadela misteriosa que é preciso abordar com torneios algo alucinantes de
expressão. Não é à toa que Otto Maria Corpeaux, apaixonado do barroco, veio a
se entusiasmar no Brasil por este rebento do velho tronco gongórico, constante
em nossa literatura sob as suas formas mais discursivas e superficiais. O mau
gosto de Augusto dos Anjos funciona normalmente na sua poética de recursos tensos.
Quase desesperados, e a grandeza do seu drama queima como um fogacho nem sempre
suportável’.” A arbitrariedade e a subjetividade de uma crítica ainda estão
patentes em pareceres que ao poeta atribuam as características bom e mau. É o que atesta Emmanuel Pereira Filho (1972, p. 14) em seus Estudos de Crítica Textual: “ou Augusto
dos Anjos foi bom poeta com todas as palavras que empregou (e talvez
principalmente por tê-las empregado), ou foi mau poeta, o que é o mesmo que
dizer que não foi poeta”.
[8] Esse livro de versos contém
muitos poemas que também figuram em outro livro de poesias de Diógenes
Magalhães: Simbologia do Onírico.
[9] Em inglês, lê-se isto: “For life be, after all, only a waitin’ for
somethin’ else than what we’re doin’, and death be all that we can rightly
depend on”.
[10] Nick Groom (2012, p. 76-77)
divide as obscuridades em sete categorias para que sejam propostas ao romance
gótico: metereológicas (névoas, nuvens, vento, chuva, tempestade, fumaça,
escuridão, sombras, melancolia), topográficas (florestas impenetráveis,
montanhas inacessíveis, abismos, desfiladeiros, desertos, charnecas destruídas,
campos de gelo, oceano sem limites), arquitetônicas (torres, prisões, castelos
cobertos de gárgulas e ameias, abadias e priorados, túmulos, criptas, masmorras,
ruínas, cemitérios, labirintos, passagens secretas, portas trancadas) materiais
de tecido ou para o corpo (máscaras, véus, disfarces, cortinas ondulantes,
armaduras, tapeçarias), textuais (enigmas, rumores, folclore, manuscritos
ilegíveis e inscrições, elipses, textos quebrados, fragmentos, linguagem
coagulada, polissilabismo, dialeto obscuro, narrativas inseridas, histórias
dentro de histórias), espirituais (mistério religioso, alegoria e simbolismo,
ritual católico romano, misticismo, maçonaria, magia e ocultismo, satanismo,
feitiçaria, invocação, condenação) e psicológicas (sonhos, visões, alucinações,
drogas, sonambulismo, loucura, personalidades divididas, identidades erradas,
duplos, desarranjos, presenças fantasmagóricas, esquecimento, morte,
assombrações).